Um "mulherão", na definição dos alunos da turma A do 5º ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Martha Wartenberg, de Novo Hamburgo, é uma mulher independente, trabalhadora — e que trabalha onde quiser —, guerreira, que tem opinião própria e sabe o que quer, especialmente respeito.
O significado desses dizeres no cartazete afixado próximo à entrada da instituição do bairro Canudos, na periferia da cidade do Vale do Sinos, é uma das maiores conquistas do professor Luiz Fernando Lamb Balon, 29 anos: propostas pedagógicas criativas permitiram que as crianças descartassem ideias absurdas entranhadas desde cedo, como a de que as meninas são menos inteligentes do que os meninos, e se transformassem em ardorosas defensoras dos direitos femininos. O projeto Todos por Elas conquistou o primeiro lugar na categoria escola pública do 7º Prêmio RBS de Educação, iniciativa do Grupo RBS e da Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho, além de menção honrosa na categoria gênero.
O trabalho inscrito por Balon foi desenvolvido ao longo de 2019, mas os primeiros movimentos começaram em 2018, com a mesma turma, que cursava então o 4º ano. As gurias estavam em minoria na classe, e o docente percebia que isso dificultava o entrosamento com os colegas, as manifestações em voz alta e a prática de exercícios físicos. "Empoderamento feminino", pensou Balon, e tocou em frente.
— Por que as mulheres não são tão valorizadas hoje em dia? — provocou.
Entre outras atividades, o grupo montou uma linha do tempo que permitiu visualizar, no decorrer de diferentes épocas, como as mulheres foram subjugadas e excluídas de momentos decisivos como o das eleições, sem poder votar. Os alunos se espantaram.
Surgiram discussões sobre a cultura do estupro, os feminicídios. Notícias sobre casos de violência divulgadas na imprensa eram debatidas no colégio. Começaram a despontar relatos pessoais.
— Minha mãe, quando usa short, é chamada de vagabunda — revelou um aluno.
— A minha mãe se separou por sofrer violência do meu pai — contou outro.
Houve momentos em que foi preciso fazer uma pausa ou trocar de atividade, dado o alto nível de emoção que as conversas incitavam.
Conforme avançava no conteúdo, Balon captou sinais de resistência por parte de algumas famílias.
— Minha mãe não concorda com isso! — protestou um integrante da turma.
— Meu pai não achou isso muito legal — contou um colega.
O professor tinha certeza da necessidade de seguir o programa previsto.
— Se não for a escola para desconstruir essas questões, eles vão crescer achando que aquilo ali é o certo. A turma ficou muito crítica, muito questionadora — recorda Balon, que, em 2018, ganhou menção honrosa no Prêmio RBS de Educação com o projeto Lugar de Mulher É... .
Em 2019, ele pediu para continuar com a turma no 5º ano. Nasceu, então, o Todos por Elas, com o intuito de expandir o alcance das mensagens que vinham sendo introjetadas em cada um, extrapolando os limites da sala de aula: era necessário empoderar familiares, os professores e os demais alunos do colégio. As famílias leram trechos do livro 50 Brasileiras Incríveis para Conhecer Antes de Crescer, de Débora Thomé. Juntos, pais e filhos mostraram talento na confecção de maquetes: a cantora Elza Soares sentada, ao microfone, diante da plateia; a bailarina Ana Botafogo posando em frente ao espelho; uma igreja com altar, bancos, santos e fiéis para a recém-canonizada Santa Dulce dos Pobres.
Balon disseminou o conteúdo de autores atualíssimos, como a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, convidando pais e mães a lerem pelo menos um trecho de Para Educar Crianças Feministas — Um Manifesto. Os mais empolgados percorreram todas as páginas.
— Bah, profe, fazia cinco anos que eu não lia um livro! — confidenciou alguém.
Com a iniciativa Liberte um Texto, uma gaiola circulou pela Martha Wartenberg com textos sobre mulheres. Quem desejasse poderia retirar um papelzinho — e fazer o que quisesse com o conteúdo. Alunos colaram os dizeres na agenda ou postaram imagens no Instagram, passando adiante as reflexões. Com o Varal das Cientistas, professores e funcionários eram convidados a observar, em monóculos, fotos de pesquisadoras famosas, como Marie Curie, Rachel Carson, Patricia Barth, Esther Lederberg, Mae Jemison, Sylvia Earle, e, na sequência, a procurar a biografia referente a cada uma delas que pendia de uma corda estendida na biblioteca.
Enquanto isso, o 5º ano A seguia imerso em pesquisas. Os estudantes confeccionaram um jogo da memória sobre os diversos tipos de violência contra a mulher, com base na Lei Maria da Penha, realizaram uma hora do conto sobre Malala — A Menina que Queria Ir para a Escola, de Adriana Carranca, e criaram histórias em quadrinhos.
Uma das atividades mais bacanas foi a análise de letras de músicas que estão na boca da garotada. Canções de funk, sertanejo, pop e tchê music foram esmiuçadas verso a verso. Todos se chocaram com os absurdos que cantavam sem nem perceber: "Acho bom tu ajoelhá e me tratá com respeito", "Por causa de você não uso mais batom", "Vai namorar comigo, sim", "Tem uma câmera no canto do seu quarto", "Na hora de ganhar madeirada a menina meteu o pé pra casa".
À entrada da escola, uma faixa agora celebra o feito de Luiz Fernando Lamb Balon no Prêmio RBS de Educação: "Estamos orgulhosos!". Em uma conversa com os empolgados estudantes do 5º ano A, não demora a aparecer o resultado do esforço empreendido.
— Os homens acham que as mulheres têm que ficar em casa cuidando dos filhos. Tem muito machismo nesse mundo! A gente tem que lugar, denunciar — afirma Gustavo Figueiró, 11 anos.
Larissa Fernanda Reinheimer, 10, diz que o "sôr" lhe abriu os olhos.
— Não pode os homens estarem aqui em cima e as mulheres lá embaixo — acredita a menina, usando as mãos. — Elas têm que ter os mesmos direitos! Elas têm que sair, passear, não só cuidar dos filhos.
Orgulhosa, Larissa acrescenta que hoje já identifica facilmente comentários e atitudes condenáveis. Não deixa barato:
— Olha que sem-vergonha! É machista! Que cara de pau!
Karoline Eberhardt, 10, não entendeu muito o conteúdo no princípio, mas atualmente tem certeza do quanto aprendeu:
— O projeto trocou totalmente a minha visão. Aprendi que as mulheres não podem se calar, senão vai continuar acontecendo.
Na mesma linha, Emily Segatto, 11, observou mudanças:
— Eu achava que mulher tinha que respeitar mais o homem, depois o meu pensamento foi mudando.
Gabriel da Cunha, 11, fica feliz por constatar que as gurias estão mais próximas dos guris, inclusive nas partidas de vôlei e futebol da Educação Física — meninos e meninas se misturam.
— Elas jogam melhor do que eu — conta Gabriel.
Balon destaca que teve um grande exemplo dentro de casa: a mãe, a empregada doméstica e cozinheira aposentada Iracy Lamb, 62 anos, se cristalizou como referência de mulher batalhadora e empoderada, nunca submissa.
— Eu jamais poderia imaginar que iria tão longe. O Todos por Elas me marcou muito. Quando vi toda a discussão entre os alunos, pensei: são militantes! E a melhor arma da militância é o meu educar – reflete o docente. – O prêmio valoriza uma profissão que não é fácil. Tem que ter amor. Eu não sei o que seria se não fosse professor.
O Prêmio RBS de Educação tem como objetivo estimular práticas de mediação e incentivo à leitura em diferentes áreas do conhecimento. Em 2019, foram 231 inscrições de todo o Estado. Na categoria escola privada, sagrou-se campeão o trabalho Recontando a Cidade, da professora Mônica Klen de Azevedo, do Colégio São Judas Tadeu, de Porto Alegre, que será tema de reportagem em GaúchaZH neste sábado (16).
Os vencedores do 7º Prêmio RBS de Educação
Escola pública
- 1º lugar – Todos Por Elas, de Luiz Fernando Lamb Balon, da Escola Municipal de Ensino Fundamental Martha Wartenberg (Novo Hamburgo). Prêmio: R$ 5 mil + 200 livros
- 2º lugar – A Literatura e a Música: os Anos que Seguiram 64, de Danieli de Oliveira Biolchi, da Escola Estadual de Ensino Fundamental Centenário (Ijuí). Prêmio: R$ 3 mil
- 3º lugar – Minha Cor, Tua Cor, Todas as Cores, de Caroline Valada Becker, do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre). Prêmio: R$ 2 mil
Escola privada
- 1º lugar – Recontando a Cidade, de Mônica Klen de Azevedo, do Colégio São Judas Tadeu (Porto Alegre). Prêmio: R$ 5 mil + 200 livros
- 2º lugar – Narrativas do Olhar, de Carolina da Silva Mendoza, do Colégio Farroupilha (Porto Alegre). Prêmio: R$ 3 mil
- 3º lugar – A Linguagem que Serve Para Viver, de Melina Wasem Passos, do Colégio Santa Catarina (Novo Hamburgo). Prêmio: R$ 2 mil