Em um dos prédios dedicados a aulas de engenharia na Universidade de Passo Fundo (UPF), é possível ver estudantes subindo e descendo com ferramentas nas mãos, conversando sobre os mais variados veículos, pensando em materiais diferentes para utilizar em suas novas criações. Entre os vários laboratórios do complexo, percebe-se, aqui e ali, pedaços de equipamentos, itens sendo fabricados, máquinas em plena atividade. É o aprendizado, como se espera, sendo aplicado na prática. Mas não é só isso.
Os universitários estão mobilizados por uma causa. Boa parte dessas ferramentas, desses materiais e dessas criações tomam forma em torno do projeto Mão na Roda, uma iniciativa dos engenheiros em formação dedicada a ajudar quem precisa de uma cadeira de rodas. Ao planejarem as ações, os jovens vão quase recriando uma linha de produção completa: pensam no produto final, identificam eventuais problemas, começam praticamente do zero a montagem e se preocupam em como tornar todo o modelo sustentável.
No município da região Norte, os alunos desenvolvem o conhecimento das aulas enquanto realizam ações que podem parecer simples, mas carregam muito significado – tanto na área acadêmica quanto na social.
— Para que serve o ensino da engenharia se não para ajudar a comunidade? — questiona o professor Nilo Alberto Sheidmandel.
Nilo, que não é muito afeito a formalidades e fala com todos como se fossem velhos amigos, pensa que um foco muito grande na teoria, nos conceitos, pode acabar desvirtuando uma função, para ele, primordial da engenharia: o trabalho feito por pessoas e para pessoas.
— Quando vejo uma formação que vai se encaminhando muito só para as ideias, para números e fórmulas, eu fico preocupado. Tem de haver um outro jeito de a gente aprender a ser gente. Então procuro mudar isso. Trazer uma visão extremamente humana da engenharia — define o professor.
A partir dessa preocupação, surgiu o Projeto de Transportes com Energias Alternativas (Protea), composto principalmente por alunos de Engenharia de Produção da UPF. Com atividades inseridas na grade curricular que incluem, entre outros aprendizados, a criação e remodelagem de diversos meios de locomoção, o grupo se concentra em oferecer novas possibilidades de transporte para pessoas com mobilidade reduzida. Além de Passo Fundo, as ações têm impacto também em municípios próximos, como Carazinho, Não-Me-Toque, Soledade, Marau e Vitor Graeff.
— Isso surgiu dentro de uma necessidade que nós identificamos de traduzir, na prática, aquilo que já estávamos cansados de saber. Resolvemos “curricularizar” o aprendizado através de projetos específicos — define Nilo.
Hoje, são seis projetos, que vão desde triciclos até carros adaptados para pessoas com deficiência, passando por um conceito de veículo para recicladores e uma moto elétrica. Mas o principal foco do trabalho, atualmente, está nas cadeiras de rodas. Em uma das salas utilizadas pelos 17 alunos que integram diretamente a iniciativa, elas se acumulam em um canto, esperando pela próxima empreitada dos jovens. Além de Engenharia de Produção, há acadêmicos de Engenharia Civil, Mecânica, Elétrica. E, com o avanço do projeto, também quem está nos cursos de Design Gráfico, Administração e Publicidade e Propaganda tem conseguido se juntar à turma.
— Eu entrei nesse projeto logo no meu segundo semestre. Naquele primeiro ano de faculdade, fui já buscar isso. E comecei a trabalhar na parte de gerenciamento. Em um aspecto bem pessoal, posso dizer que o maior aprendizado que eu consegui tirar no Protea foi o protagonismo — conta Cezar Petri, 21 anos, que está no sexto semestre de Engenharia da Produção e hoje coordena o Protea.
— Essa parte de a gente entender o nosso papel na sociedade e conseguir perceber que temos esse poder, de a gente puxar as coisas e começar a fazer alguma coisa.
O misto de aprendizado pessoal, acadêmico e profissional é uma marca que os estudantes destacam no projeto. Desmontando, remodelando e criando veículos como cadeiras de rodas, eles já entraram em contato com diversas pessoas necessitadas e entidades como a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). A cada nova conversa, aprendem o quanto seu papel é importante.
— Esse projeto nos possibilita atingir parte desse compromisso social que nós devemos tentar. Que é ajudar a sociedade, promover a inclusão de pessoas também. O engenheiro tem que fazer isso. Ele tem as habilidades técnicas, mas também tem que ter esse compromisso. Porque a diversidade é algo com que já convivemos e que nós vamos encontrar no mercado de trabalho. A gente não pode excluir as pessoas com deficiência. Elas têm de ser incluídas — aponta Cristian dos Santos Ceccagno, 28 anos, coordenador do Mão na Roda e aluno do oitavo semestre de Engenharia da Produção.
— Isso, como cidadão, ajuda muito, sabe? Essa ajuda vale mais do que o próprio título da engenharia.
"Qual é meu papel na sociedade?"
Um dos prováveis beneficiados por essas ações é o auxiliar administrativo Vanderlei Pinto. Com deficiências na coordenação motora, ele precisou solicitar uma série de adaptações à cadeira de rodas que usa, mas ainda há problemas. Em uma reunião com os coordenadores do Mão na Roda, Vanderlei explicou:
— Eu queria colocar uma carenagem para protegê-la.
— Nós podemos pegá-la e colocar fibra. Aí, tu não perde potência — salientou o professor Nilo.
— Seria perfeito! Não quero faltar um dia sequer aos meus compromissos, e esta cadeira já me deixou na mão — esclareceu Vanderlei, animado com a possibilidade de ter uma cadeira melhor.
Para que serve o ensino da engenharia se não para ajudar a comunidade? Quando vejo uma formação que vai se encaminhando muito só para as ideias, para números e fórmulas, eu fico preocupado. Tem de haver um outro jeito de a gente aprender a ser gente. Então procuro mudar isso. Trazer uma visão extremamente humana da engenharia.
NILO ALBERTO SHEIDMANDEL
Professor de Engenharia da Produção na UPF
Por enquanto, as ações da turma ainda se concentram mais em fazer ajustes em cadeiras de rodas que recebem como doações, aprimorá-las, em conversas com os eventuais novos donos, e então doá-las. Para isso, o professor e os estudantes têm pedido contribuições, como ferramentas e peças – rodas dianteiras, rodas traseiras, estofamentos ou mesmo com cadeiras de rodas usadas servem. Mas uma segunda etapa do projeto vai envolver o desenvolvimento de novos equipamentos do zero.
— Eu posso usar materiais que não são nobres, com uma outra pegada, com facilidade... e aí falta coisa pouca para a gente facilitar a independência do cadeirante. Botar suspensão. Colocar um mecanismo que faça um ‘efeito-mola’, um sistema de molas inversas, o que já ajuda muito. Sabe aquelas charretes antigas? Que fazem aquele movimento? Se fizer isso, já facilita bastante — comenta Nilo, durante uma reunião para definir os próximos passos do Protea.
Para ele, compartilhar o conhecimento adquirido, levando benefícios às pessoas ao redor, é algo fundamental para uma universidade, ainda mais uma instituição comunitária como a UPF. Ações como a entrega de cadeiras de rodas seriam apenas uma dessas oportunidades – que para ele, na verdade, se justificam ainda mais pelo fato de se conhecer novas pessoas e suas histórias do que apenas entregar um equipamento.
Com isso, os alunos de engenharia vão se mostrando muito motivados. Para Cezar, que aos 21 anos já coordena o projeto, esse aprendizado adquirido no contato com quem mais precisa é tão importante quanto um diploma. Ele afirma:
— Olha, a motivação é 100%.
A gente fica muito feliz. Deita na cama, no dia, assim, de uma entrega, por exemplo, com aquela sensação de dever cumprido, sabe? Tipo: “O meu papel na sociedade está sendo cumprido”. É uma sensação inexplicável.
O projeto
- O que é? O projeto Mão na Roda é uma das ações do Projeto de Transportes com Energias Alternativas (Protea), iniciativa de professores e alunos de engenharia na Universidade de Passo Fundo (UPF). Envolve a coleta de materiais na comunidade para a montagem e manutenção de cadeiras de rodas, que são doados a pessoas que precisam. Em breve, os envolvidos esperam iniciar o desenvolvimento de produtos exclusivos.
- Quem faz? Docentes e acadêmicos das engenharias de Produção, Civil, Mecânica, Elétrica e de Design de Produto da UPF.
- Desde quando? A mobilização que deu origem ao Protea começou em 2016, com um projeto de carro elétrico que foi entregue em abril de 2018. Desde então, o grupo expandiu sua atuação para englobar outras iniciativas envolvendo transportes para pessoas com mobilidade reduzida.
- Responsáveis: professor Nilo Alberto Scheidmandel (coordenador), Cezar Leandro Petri (gerente do Protea), Cristian dos Santos Ceccagno (líder do projeto Mão na Roda).
- Apoio: cursos de engenharia e diretório acadêmico da Faculdade de Engenharia e Arquitetura da UPF (FEAR), Parque Científico da universidade (UPF Parque) e empresas locais.
- Objetivo: engajar os alunos com projetos de engenharia voltados para a sociedade, tornando as ações valiosas pessoal e profissionalmente. Desenvolver visão humanística de contribuir com conhecimentos absorvidos nas formações em engenharia. Estimular o protagonismo e espírito empreendedor de superar desafios em busca de grandes objetivos.
Para saber mais: facebook.com/proteaupf