Aos 18 anos, um assalto mudou para sempre a vida do paulistano Rodrigo Hübner Mendes. Um tiro disparado durante o episódio de violência no bairro Morumbi atravessou o seu pescoço e o deixou tetraplégico. Com recursos para manter bons tratamentos, ele mergulhou no universo das artes e começou a pintar usando, por exemplo, um computador comandado por movimentos da cabeça. As artes plásticas mais do que lhe devolveram a motivação, fizeram nascer a vontade de ajudar quem vivia em situação de exclusão e não tinha acesso a tratamentos melhores, quando muito, a cadeiras de rodas e medicamentos.
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Quatro anos depois, em 1994, criava o Instituto Rodrigo Mendes (IRM), que oferecia bem-estar e novos horizontes em aulas de artes a alunos com limitações físicas. Em 2012, alterou o foco da organização sem fins lucrativos e lançou o Portas Abertas para a Inclusão, projeto com o objetivo de instruir professores de escolas da rede pública a respeito da inserção de pessoas com deficiência nas classes de educação física de turmas dos níveis infantil e fundamental. A iniciativa que começou na capital paulistana cresceu e já chegou a 20 Estados nas cinco regiões, em um total de 2 mil professores capacitados.
Além desse trabalho, desde o IRM 2015 presta consultoria para o governo de Angola, além de cursos e distintas consultorias para qualquer organização que queira aprofundar sua relação com o tema da diversidade ou queira criar um projeto pedagógico inclusivo. Também está à frente do portal Diversa, uma rede de troca de experiências e construção de conhecimento sobre educação inclusiva voltada para, principalmente, educadores, gestores escolares, técnicos de secretarias de educação e outros profissionais que queiram dar visibilidade a práticas educacionais inclusivas e transformá-las em fonte de referências por meio de estudos de caso e relatos de experiência. Além disso, o portal oferece artigos de especialistas e informações sobre eventos relacionados à educação inclusiva.
Rodrigo tem dedicado sua vida para garantir que toda pessoa com deficiência tenha acesso à educação de qualidade na escola comum. É professor e pesquisador sobre educação inclusiva, membro da rede de empreendedores sociais Ashoka e do Young Global Leaders (Fórum Econômico Mundial). Seu sonho virou realidade, e ainda tem muito a crescer e a oferecer. Para o bem (e a sorte) de todos nós.
No dia 31 de outubro, Rodrigo conversou conosco por telefone para uma entrevista. Confira abaixo, na íntegra, como foi essa conversa.
Gostaria de relatasse o episódio de violência que o deixou em uma cadeira de rodas e em como o ocorrido impulsionou a criação do Instituto Rodrigo Mendes.
Eu passei por um acidente quando eu estava no final do Ensino Médio e me preparava para entrar no Ensino Superior. Eu fui assaltado em São Paulo e levei um tiro. Eu tinha 18 anos, foi em 1990, em São Paulo. Isso gerou a imobilidade abaixo dos ombros, chamada de tetraplegia. Na fase de reabilitação, eu tive muita ajuda por parte de família e amigos pois eu tinha uma boa condição e tive acesso aos melhores tratamentos. Mas aí eu comecei a perceber que eu era uma exceção, a grande parte das pessoas não tem isso, pelo contrário. Então eu comecei a sentir um incômodo muito grande de ver o quanto o contexto da exclusão é cruel para quem não tem apoio e ao mesmo tempo eu fui sentindo uma necessidade enorme de devolver e retornar um pouco dessa ajuda que eu tinha recebido. Esse caminho seguiu para a criação do IRM, que eu fundei em 1994, que pudesse oferecer cursos. E fui me envolvendo e estudando esse setor e suas necessidades até que decidi focar na questão da educação porque eu enxerguei que esse seria um caminho transformador com a possibilidade de mudar o caminho dessas pessoas. O Instituto Rodrigo Mendes nasceu de uma necessidade pessoal, mas que acabou se expandido para o propósito de um grupo de pessoas. Nós hoje temos bastante gente reunida trabalhando em uma equipe multidisciplinar de 18 pessoas, entre psicológicos, educadores, equipes de gestão, de comunicação, conselheiros e muitos parceiros.
O IRM começou com aulas de artes a alunos com limitações físicas? Por quê?
Foi porque durante a minha fase inicial de reabilitação eu comecei a produzir muito no campo das artes, comecei a pintar, foi uma vivência minha de produção de obras de arte e eu pensei em oferecer esse tipo de atividade também para outras pessoas.
No Brasil, ainda não temos a cultura da presença frequente dos pais na escola, e para uma criança em situação de vulnerabilidade maior, isso é ainda mais importante.
Rodrigo Hubner Mendes
Qual o papel da família na inclusão de uma criança com deficiência?
Fundamental. Eu acho que essa vertente da família é decisiva para que a criança consiga ocupar o seu espaço na escola, buscar o seu melhor, criar a sua rede de apoio, assim como para uma criança sem deficiência, eu diria que tem a mesma relevância.
Como os pais podem se preparar para lidar e criar um filho com deficiência?
Os pais devem, em primeiro lugar, entender que eles precisam participar da escola, frequentar as reuniões que já existem, conversar com a coordenação e a direção da escola, levar seu ponto de vista, levar as suas angústias, ocupar os espaços de diálogo e caso eles não existam, reivindicá-los. Aqui no Brasil a gente ainda não tem essa cultura da presença frequente dos pais na escola e para uma criança em uma situação de vulnerabilidade maior isso é ainda mais importante.
Como surgiu a ideia de capacitar professores? Quando ocorreu e por quê?
Foi em 2005 quando a gente começou a ter muita demanda de professores e escolas públicas ligando para o IRM perguntando se a gente ia oferecer algum tipo de curso. E aí eu percebi uma oportunidade enorme de criar uma área de formação voltada para a educação formal, conseguimos apoio inicial e criamos um curso piloto que foi dando certo e esse área acabou sendo a mais importante juntamente com a área da formação de conhecimento. Hoje nós temos dois pilares: fazer pesquisa sobre boas práticas, produzir conhecimento e manter um portal chamado Diversa que é o nosso grande repositório de conteúdos e que qualquer pessoa pode acessar e encontrar apoio e orientação e uma outra frente de formação que são os cursos.
Hoje, o que os professores e demais interessados no tema de educação inclusiva encontram na plataforma digital do IRM?
Essa plataforma na internet chamada Diversa, onde existe uma biblioteca vasta com relatos, documentários, artigos, já é um bom começo para quem quer se inteirar e encontrar referências. Tem um serviço que a pessoa mandar dúvidas sobre a prática que ela está desenvolvendo e aí a gente aciona a nossa rede de usuários pra oferecer um leque de opções para essa pessoa e também a parte de formação, que a gente faz por grupos. Há muitas secretarias de Educação ou organizações grande que nos contratam e a gente desenha um projeto de formação.
Cursos online?
Totalmente online não, mas estamos desenvolvendo o primeiro curso exclusivo de EAD que vai ser lançado no ano que vem. Vai ser a primeira iniciativa que qualquer um vai poder entrar e acessar o conteúdo feito com mediação nossa. Estamos organizando, mas isso vai acontecer a partir do primeiro semestre de 2018, com o mesmo foco na capacitação de professores. Pra quem é de fora nós costumamos organizar cursos com formato semi-presencial, no qual transmitimos aulas por satélite. Por exemplo, Porto Alegre (a cidade recebeu um convite por meio de uma parceria com a Unicef porque era uma das capitais-sede da Copa do Mundo de 2014) já participou de várias edições do Portas Abertas. Aí a pessoa vai no próprio polo e uma vez por semana ela tem uma aula e tem uma série de atividades que ela tem de desenvolver ao longo da semana. Assim, a gente consegue atingir qualquer cidade do Brasil.
E esses cursos têm custo?
Depende. O Portas Abertas não, pois foi inteiramente financiado pela Fundação FC Barcelona (FCB). Mas quando uma cidade ou uma secretaria tem interesse nas nossas capacitações, aí precisa ter algum agente financiador ou algum recurso público para viabilizar. Tem vezes que é um patrocinador, às vezes a própria população financia, tem diferentes formatos que permitiriam esses cursos.
O tema da educação inclusiva é relativamente novo no âmbito da Educação como área do conhecimento. Muitos dos professores formados não tiveram a chance de discutir, pesquisar ou estudar isso durante a sua formação inicial.
Rodrigo Hubner Mendes
Qual a importância de instruir e capacitar professores para a questão da deficiência?
O tema da educação inclusiva é relativamente novo no âmbito da Educação como área do conhecimento, então muitos dos professores que já estão formados e já têm as suas licenciaturas não tiveram a chance de discutir, de pesquisar ou de estudar esse tema durante a sua formação inicial. E por outro lado a gente tem cada vez mais dentro da sala de aula pessoas com características que até pouco tempo impediam que elas acessassem a escola pública. O exemplo da pessoa com deficiência deixa claro o quanto esse segmento da população não frequentava, não estava participando. Hoje isso mudou em virtude de toda a evolução do entendimento do que é melhor para as pessoas, a legislação vigente no Brasil, a Convenção da ONU, cada vez mais, felizmente, as crianças e adolescentes com deficiência estão chegando na sala de aula comum e aí o professor se vê diante de uma insegurança enorme e se sente sem referências e sem apoio. Daí a necessidade de cursos e inciativas de formação que complementem aquilo que o professor já conhece para que ele se sinta autorizado, desconstrua a sua incerteza e possa apostar em projetos pedagógicos que buscam o melhor de cada estudante independente da sua condição intelectual, física e assim por diante. Mesmo os cursos atuais que prometem uma reciclagem ainda são muito incipientes, a gente ainda precisa avançar na definição dos currículos de Pedagogia.
As capacitações realizadas aos professores abordam que tipos de conteúdos?
A gente segue um modelo que trabalha a partir de cinco dimensões: políticas públicas, gestão escolares, estratégias pedagógicas, relações entre as escolas e as famílias e parcerias entre a escola e a sociedade civil. O curso acaba atravessando esses cinco grandes eixos muito a partir da prática. A gente tem uma abordagem que parte sempre a partir de casos reais e exemplos que a gente documenta, então, é uma metodologia que a gente foi criando que favorece muito a desconstrução de uma resistência. de um eventual medo diante desse novo tema. A gente começa mostrando o que dá certo, aquilo que é verdadeiro e já está acontecendo pra depois aprofundar questões teóricas.
Como tem sido a recepção e o retorno dos professores e das escolas para essas capacitações?
Tem sido surpreendente porque as pessoas são orientadas ao longo do curso a já criarem projetos de intervenção nas suas escolas. Elas criam diagnósticos, definem prioridades e implementam ações e é muito impressionante o quanto a escola vai se transformando com a ação desses educadores.
Teria um exemplo?
Sim, a gente tem cursos em que participam membros da secretarias de Educação. Então a gente tem vários casos em que foram criadas políticas para a cidade, foram ampliados os investimentos em acessibilidade em materiais pedagógicos, aumentado também o investimento na própria formação. Muitos dos projetos geram isso.
Como se sensibiliza uma sociedade para a questão da inclusão de pessoas com deficiência?
Eu acho que não existe uma receita, mas isso deve partir da conscientização de que essas pessoas têm direitos e que elas podem construir a sua autonomia se a sociedade eliminar barreiras, oferecer espaços, pensar em acessibilidade. E é uma responsabilidade coletiva, ela não é uma responsabilidade só da família ou só daquela pessoa, isso é uma mudança de visão que precisa cada vez mais acontecer. A gente tende a achar que é um problema que está no outro e a gente torce para que o outro resolve o seu problema. Quando na verdade a principal barreira está na nossa atitude, na forma como a gente julga, como a gente mesmo subestima, como a gente mesmo já impõe barreiras. Esse é o grande desafio que só vai ser vencido quando todo mundo fizer parte desse processo. Eu costumo usar o exemplo da Paraolimpíada, onde não adianta nada a gente assistir, se emocionar e torcer se no outro dia a gente toca a vida exatamente como a gente sempre tocou, sem estar disposto a mudar as nossas atitudes, mudar a forma como a gente conversa, mudar os nossos locais de trabalho, os nossos espaços de lazer. Se isso não acontecer de forma coletiva, a participação vai ser ainda pontual, parcial e incipiente.
(A inclusão) é uma responsabilidade coletiva, não só da família ou daquela pessoa, é uma mudança de visão que precisa cada vez mais acontecer.
Rodrigo Hubner Mendes
É possível fazer mudanças e causar transformações nas escolas em prol da inclusão sem aporte de recursos financeiros?
Não, acho que não. Recursos humanos, financeiros, a gente precisa, sim. Precisamos sempre planejar e exigir o investimento de recursos para que esses processos sejam viáveis.
A terminologia para pessoas com deficiência está em permanente adaptação. Achas que já somos inclusivos na nossa comunicação e nos nossos relacionamentos? O tratamento para com pessoas com deficiência está mais igualitário e respeitoso?
Esse é um assunto que está em constante mudança. Aquilo que a gente usava como terminologia há dez anos não se usa mais hoje. A gente está sempre acompanhando e para as pessoas que querem se sentir participantes desse processo, o primeiro passo é pesquisar, ler, aproximar-se, conversar. A gente está construindo uma sociedade inclusiva, mas isso leva tempo e esforço.
Então podemos dizer que estamos evoluindo no Brasil?
Muito! Na educação, o que a gente tem hoje como retrato é totalmente diferente do que a gente encontraria há 15, 20 anos. Por exemplo, a estatística: hoje 80% das matrículas de alunos com deficiência na rede pública de educação básica já são em ambientes inclusivos. Só 20% são ainda em segregados. Isso lá no começo do milênio, no início dos anos 2000, era o contrário: 80% estavam em ambientes segregados, e isso é um bom exemplo do quanto mudou.
Mas ainda precisamos avançar muito...
Bastante. Em políticas públicas que sejam amplas, de fato impactantes, que sejam duradouras e dentro disso a gente fala em acessibilidade, transporte público, investimento em parceria inter-setorial. E olhando para a escola, no fazer pedagógico, ou seja, a pergunta mais importante é como que eu faço? Como é que eu planejo uma aula, como é que eu ensino os outros educadores, como eu avalio o estudante, como eu garanto que ele está tendo a chance de acessar o conteúdo.
Percebe interesse crescente e bons exemplos de fato em fazer algo pela educação inclusiva no país?
Sim, acho que temos exemplos positivos tanto de gestores públicos, como de diretores de escola, como de professores em todas as partes do Brasil.
O que a sociedade deve saber sobre a deficiência, sobre a pessoa com deficiência ou sobre a inclusão que ainda não sabe?
É um conjunto de informações que as pessoas precisam acessar, desde a legislação até o que existe hoje de equipamentos que favorecem a acessibilidade e como essa tecnologia pode ajudar. É uma amplitude de assuntos e vai depender da circunstância. Mas se pudesse eleger uma questão fundamental é a clareza de que a escola é um direito de todos.