A matéria de capa da terceira edição impressa do Planeta Ciência contou com a colaboração do professor Hugo Arend, do curso de Política Internacional da PUCRS. A seguir, você confere a entrevista com o professor na íntegra:
Planeta Ciência - Cerca de 1% das mortes na 1ª Guerra Mundial vieram pelo uso de armamento químico. Meses antes da invasão do Iraque, Colin Powell chegou a lançar a pergunta "é pior morrer de gás ou de fome?" ao mencionar que ninguém cogitava invadir a Coreia do Norte. Na Síria, a guerra civil contabilizava 100 mil mortes por armamento "convencional" até que os rumores de uso de armas químicas cresceram a ponto de se tornarem a justificativa para uma intervenção. Por que as armas químicas estão fora da "ética da guerra"?
Hugo Arend - As armas químicas não estão fora da ética da guerra, mas fazem parte dela. A proibição de alguns tipos de armamentos como bombas de fragmentação, minas terrestres, armas bacteriológicas, etc., se insere numa dinâmica de normalização das práticas da guerra que é bastante antiga, mas que se intensificou após os dois conflitos mundiais do século 20. A proibição desses armamentos se insere no antigo discurso da guerra justa. Ou melhor: a proibição de algumas práticas ou do uso de alguns armamentos complementa o argumento de que algumas guerras podem ser lutadas justamente, com virtude e honra. Segundo esse discurso, a guerra pode ser feita, desde que regras sejam seguidas. O status quo tem necessidade de higienizar as guerras, de despi-las da crueldade e do sofrimento que causam. A história reserva apenas aos derrotados o epíteto de "criminosos de guerra".
Por outro lado, sabemos que no desenrolar das guerras, não há meios que garantam que regras ou práticas sejam seguidas e respeitadas. Um ambiente de guerra é um ambiente sem direito, sem lei. Um ambiente de liberdade absoluta.
PC - O que explica o investimento da Síria em fabricar armas químicas?
H.A. - A necessidade de se sentir segura numa região que se encontra em guerra há quase um século.
PC - A direção da CIA garantia que o Iraque tinha armas de destruição em massa (ADM). No que a situação atual difere daquela alegada para atacar o Iraque?
H.A. - Quanto ao ataque ao Iraque, todo mundo sabia que não havia ADM. Contudo, as forças políticas, econômicas e intelectuais que se mobilizaram para realizar e legitimar aquele ataque eram fortes demais para que algum argumento pudesse ser formulado para impedir que ele se realizasse. Essas mesmas forças tinham interesses no Iraque. A decisão estava tomada de antemão e o Iraque era considerado um alvo fácil, pois virtualmente indefeso - o que se comprovou equivocado. Na atual situação na Síria, o argumento é o mesmo, mas a realidade é outra. A Síria está em guerra civil; o ocidente não dialoga com nenhum dos lados; o governo sírio está disposto a usar todos os meios para reagir; há uma força aérea síria em atividade; ou seja: não há vitória fácil à vista e os ganhos políticos serão praticamente nulos quando confrontados com os custos - o mesmo vale para o caso da Coréia do Norte. Além disso, há uma oposição séria e decidida da Rússia, do Irã e da China à intervenção. Ou seja: a situação atual é muito mais perigosa que a anterior e os são nitidamente muito pequenos comparados aos custos.
PC - A administração Obama tem sido transparente em relação às provas de que Assad vem usando gás Sarin contra a população?
H.A. - Essa é uma pergunta difícil de ser respondida. Se há transparência, é difícil afirmar. No dizer de Ésquilo: "Na guerra, a verdade é a primeira vítima". Como saber se os vídeos são verdadeiros? Como garantir sua autenticidade? Há poucas vozes independentes se pronunciando sobre o ocorrido. Ao que tudo indica, como no caso do Iraque, o que importa é a disposição dos EUA para a guerra. O conteúdo do argumento é secundário.
PC - Por que os EUA teriam interesse em atacar a Síria? E por que, para a Rússia e o Irã, é interessante que o poder na Síria siga com Assad/alauitas?
H.A. - Rússia e o Irã são aliados históricos da Síria. Os três formam um triângulo de cooperação e resistência em relação ao ocidente na região. Eles estão defendendo seus interesses que vão desde aspectos estratégicos, comerciais, políticos e econômicos, até étnicos e culturais. Aos EUA interessaria enfraquecer esse triângulo, atacando a Síria. Assim, enfraqueceria a Rússia e o Irã. Contudo, atacar a Síria agora é extremamente perigoso. Não há estratégia de entrada e nem de saída. A França - a única potência que apoia os EUA - já afirmou que retirar Assad do poder não estaria nos planos. Mas então: Por que fazer a guerra? Por que intervir? Os EUA e o ocidente se equivocaram em suas avaliações sobre a Síria. Eles julgaram que Assad seria derrubado logo após o início das revoltas, como ocorreu com os demais líderes na Primavera Árabe. Eles se equivocaram também ao pensar que a derrubada de Assad seria algo positivo. Na Síria, assim como em todos os países que viveram a Primavera Árabe, os grupos que se revoltaram contra o governo também são críticos dos EUA e do ocidente. Os americanos e os europeus perderam legitimidade na região depois de décadas de políticas equivocadas e que sustentam regimes ditatoriais. Não nos esqueçamos que todos os terroristas do 11/9 eram de países aliados dos EUA. Ou seja: não há opção política favorável ao ocidente no Oriente Médio hoje. Mesmo as vozes progressistas e democráticas - que são sufocadas pela opressão dos governos financiados pelo ocidente - não estão dispostas a seguir modelos ocidentais ou se aliar ao ocidente.