“Que pena”, disse uma recrutadora quando Helen Bermudes, 29 anos, respondeu durante uma entrevista de emprego, em 2021, que tinha uma criança de seis meses. A hoje publicitária relata que por conta do episódio ficou frustrada e decidiu interromper a faculdade por um semestre. Ela só voltou a trabalhar e estudar no ano seguinte.
— O fato de ter um filho pequeno se tornou um obstáculo. Depois (do fato), decidi dizer nas entrevistas de emprego que meu filho não morava comigo, para conseguir recolocação profissional — conta a moradora de Porto Alegre. Na época, ela tinha 27 anos e vivia com a criança e sua mãe, que ajudava a cuidar do neto.
O relato de Helen é um exemplo de como perguntas invasivas ou até mesmo preconceituosas podem comprometer a carreira de um profissional. Entre as mulheres são frequentes queixas e relatos sobre questionamentos a respeito da maternidade, relações afetivas, planejamento familiar e vida sexual, por exemplo.
O que pode ou não ser perguntado?
Além de deixar a pessoa desconfortável, algumas práticas podem ser consideradas infrações à lei. A discriminação em matéria de emprego e oportunidade de trabalho é proibida pela legislação brasileira, conforme disposto nos artigos 3º e 5º da Constituição. A Carta Magna também estabelece a necessidade de proteção ao mercado de trabalho da mulher, em seu artigo 7º.
Segundo Inês Amaro, diretora de Diversidade da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH-RS), não existe liberdade para fazer perguntas preconceituosas, e preparar os profissionais que farão as entrevistas é um dever das organizações.
— A empresa pode ter os seus critérios de seleção, adequando às necessidades das vagas e funções, e isso pode ser legítimo e transparente. Mas os critérios não devem ser confundidos com estereótipos, preconceito e discriminação — argumenta.
Vieses inconscientes
Eliminar estes problemas e tornar os processos seletivos mais justos passa por uma série de fatores, e deve envolver toda a empresa. Para Ana Cecília Petersen, headhunter e consultora no PUC Carreiras, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, uma preocupação são os chamados vieses inconscientes.
— Temos que avaliar as questões técnicas, sem deixar que aspectos comportamentais e culturais comprometam a avaliação do profissional. Uma possível solução são os currículos e entrevistas às cegas, sem aspectos que caracterizem aquela pessoa. O que importa é entender se o candidato ou candidata tem potencial para a vaga ou não — afirma.
Ana explica que os vieses fazem com que um profissional que seja do círculo social do recrutador seja beneficiado em detrimento de outras pessoas, por exemplo, ou o fato de ser homem seja considerado mais positivo para determinados cargos de liderança, entre outras questões.
— A gente é um só e temos diferentes papeis, não ligamos uma chave e desligamos outra quando entramos em casa ou no ambiente de trabalho. O recrutador precisa ter essa clareza e entender que o sujeito vai trazer diferentes características de sua identidade à empresa. Então, é preciso alinhar com o gestor da vaga e analisar o que esse profissional pode agregar de valor à equipe — conclui.
Perguntas comuns entre as candidatas
“Você tem filhos?”, “pretende ter filhos?”, “tem onde deixar os filhos quando for trabalhar?” e “seus filhos estão na escola?” são algumas perguntas que aparecem normalmente em entrevistas de emprego, de acordo com Julianna Spinelli, doutora em administração e professora de Educação Executiva da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Especialista em diversidade organizacional e identidade profissional, a pesquisadora acredita que o problema afeta principalmente as mulheres, como um todo, e não só as que são mães:
— Se a mulher não tem filhos ou é recém-casada, questionam se pretende ter filhos. O planejamento familiar não deveria ser preocupação da empresa, isso nem deveria ser perguntado. Essas questões podem minar a trajetória profissional daquela mulher, se o recrutador não estiver preparado para lidar com isso, e infelizmente é muito comum acontecer. E esse peso quase sempre recai sobre as mulheres — destaca.
Julianna acrescenta que, normalmente, na entrevista, o próprio candidato pode mencionar questões pessoais, revelando que é pai ou mãe, por exemplo. Essas questões são parte da identidade da pessoa. E os profissionais de recursos humanos não devem tornar essas informações empecilhos no processo seletivo ou fontes de discriminação.
Outros relatos preocupantes
Com a popularização das redes sociais, depoimentos sobre processos seletivos são compartilhados, geralmente com ar de desabafo e frustração. Recentemente, também viralizou a história de Samara Braga, 32 anos. A moradora de Cariacica (ES) revelou que foi discriminada durante um processo seletivo para uma vaga de emprego. Ela divulgou prints da conversa no WhatsApp com o recrutador da empresa, que disse que “é sempre difícil contratar quem tem filhos”. O relato alcançou mais de 31 mil curtidas.
Helen relata que já foi questionada até sobre a data da sua última menstruação, uma vez, no momento da entrevista do exame admissional. A produtora audiovisual Giana Milani, de 31 anos, também passou por situações desconfortáveis em entrevistas de emprego.
— Participei de um processo seletivo para uma grande rede de varejo de moda há alguns anos. Eu tinha uma filha pequena e a recrutadora começou a questionar com quem ela ficaria, se eu tinha rede de apoio e disponibilidade para trabalhar. Não fui selecionada e tenho certeza de que o fato de ser mãe pesou na decisão — relata.
Sensibilização e ações afirmativas
Para a diretora de Diversidade da ABRH-RS, para desconstruir esses estereótipos, é fundamental a incorporação de uma série de práticas nas organizações. É preciso capacitar as equipes de Recursos Humanos por meio de treinamentos e sensibilização, além de implementar políticas e ações afirmativas.
— O avaliador vai analisar o desempenho dos candidatos de acordo com seus conhecimentos. Se o profissional não tem consciência dessas questões sociais, a avaliação subjetiva vai prevalecer. Quando a empresa cria intencionalmente programas para lidar com isso, ela precisa necessariamente envolver a equipe de Recursos Humanos nessa transformação —, complementa Inês Amaro.
Inês Amaro destaca que a organização tem a responsabilidade de preparar seus funcionários para que possam assimilar as mudanças na sociedade e realizar esses processos de forma adequada.
Boas práticas, conforme as especialistas
- Contratar serviços de consultoria focados em diversidade organizacional, cultura inclusiva e gestão de pessoas, de modo a sensibilizar a equipe e tornar os processos seletivos mais justos e responsáveis;
- Promover mudanças concretas para sensibilizar a equipe e facilitar a rotina de mulheres que são mães, implementando ações como flexibilização de horários, possibilidade de trabalho híbrido ou remoto e sala de amamentação no local de trabalho;
- Criar espaços na organização para que pautas de diversidade e inclusão sejam trabalhadas, realizando atividades com frequência regular, como rodas de conversa, cursos e oficinas, para debater as temáticas e conscientizar a equipe;
- Trazer profissionais de fora da organização para engajar os colaboradores nas atividades;
- Promover ações afirmativas para tornar a equipe mais diversa;
- Inovar nos processos seletivos, usando estratégias como currículo às cegas.
Ministério Público do Trabalho monitora casos de discriminação
Conforme o Ministério Público do Trabalho no Rio Grande do Sul, essas regras valem para práticas de discriminação durante o trabalho e também na admissão, no período pré-contratual, mesmo quando não há vínculo, configurando irregularidade trabalhista e afronta à dignidade da pessoa humana. O órgão investiga a divulgação de vagas de emprego discriminatórias, por exemplo.
— Para bem observar a ordem constitucional e legal vigente, a seleção de candidatos para oportunidades de emprego e trabalho não pode ser referenciada pela origem, pela raça, pelo sexo, pela cor, pela idade, pela orientação política ou religiosa ou incidir em quaisquer outras formas de discriminação dos candidatos — diz em nota Martha Diverio Kruse, vice-procuradora-chefe do MPT-RS e coordenadora regional da Coordenadoria Nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho.