Os meses que se passaram com escolas fechadas e, depois, aulas remotas, foram particularmente difíceis para as crianças em processo de alfabetização. Em uma idade na qual a presencialidade ainda é muito importante para que a atenção seja mantida e as atividades pedagógicas funcionem, muitos desses pequenos, em especial os que frequentam escolas públicas, têm apresentado atraso no do letramento – se, normalmente, terminavam o primeiro ano do Ensino Fundamental já conhecendo as letras, muitos chegaram ao terceiro ano em 2022 sem esse aprendizado.
Recentemente, a ONG Todos Pela Educação divulgou uma nota técnica produzida com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) de 2012 a 2021. Nela, consta um aumento de 66,3% no número de crianças de seis e sete anos que, segundo seus responsáveis, não sabiam ler nem escrever. O percentual representa 1 milhão a mais de pessoas dessa faixa etária ainda analfabetas, sendo que o problema é mais grave entre crianças negras e pertencentes a famílias mais pobres.
Ainda há poucos dados que evidenciem melhor o impacto destes dois anos de pandemia na alfabetização das crianças. Um deles foi um mapeamento feito na pesquisa de mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) da neuropsicóloga Bruna Scheffer, sob orientação da professora Rochele Paz Fonseca, que também é presidente da Sociedade Brasileira de Neuropsicologia.
No estudo, foi comparado o desempenho de 50 crianças de oito a 12 anos em tarefas neuropsicológicas com o resultado nos mesmos testes em 100 crianças da mesma faixa etária até 2019. Foram avaliadas funções cerebrais e cognitivas em atividades como escrita de palavras e compreensão de texto ou compreensão leitora. Os pequenos avaliados em 2021 e no início de 2022 mostraram-se até duas vezes mais lentos para executar uma série de tarefas cognitivas e tiveram prejuízo em sua performance na escrita e na compreensão de histórias. Pais e crianças passaram a ler e escrever com menos frequência.
— Infelizmente, as estimativas são muito tristes. Precisaremos agir, com programas de intervenção de redução de danos desde a Educação Infantil, que devem englobar a estimulação de hábitos de leitura e de consciência fonológica — defende Rochele.
Desigualdade social
Antes da pandemia, a pesquisadora já havia mapeado uma diferença significativa de desempenho entre estudantes de escolas públicas e privadas – os alunos de instituições estaduais e municipais foram 1 a 2,5 vezes mais lentos ou cometedores de mais erros de leitura, escrita e matemática do que os de colégios particulares. A docente da PUCRS estima que essa desigualdade pode ter se ampliado nos últimos dois anos.
A professora Luciana Piccoli, que atua na área de Didática dos Anos Iniciais, Leitura e Escrita do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), destaca que, para amenizar essa desigualdade, é preciso garantir o quanto antes que as crianças das classes populares desenvolvam habilidades essenciais, como a compreensão do funcionamento do sistema de escrita, a leitura e a interpretação de textos, a produção de textos e as habilidades na área de matemática. Esses conhecimentos são prioritários para que o aluno possa compreender o que é ensinado nos outros componentes curriculares da escola.
A principal preocupação de Luciana é com as crianças que hoje estão no terceiro ano do Ensino Fundamental:
— As crianças de oito e nove anos, que estão começando o terceiro ano agora, essas, sim, estão com defasagem, porque passaram o primeiro e o segundo ano em casa. Há defasagens no âmbito cognitivo, nas habilidades motoras finas e há importantes questões emocionais envolvidas também — cita a docente, acrescentando que um trabalho interdisciplinar pode ser necessário para evitar perdas a longo prazo.
A professora da UFRGS, contudo, é otimista: considera que alunos dessa faixa etária que não tenham nenhum comprometimento físico ou intelectual são plenamente capazes de entender o funcionamento do sistema de escrita e recuperar o tempo perdido em um ano letivo. Para tanto, precisam ter acesso a um ensino sistemático, com constância e regularidade, que considere os conhecimentos dos alunos, e cujas propostas pedagógicas sejam lúdicas, significativas e promovam a interação entre as crianças e reflexões sobre a dimensão sonora e escrita das palavras.
— Isso é distanciar-se de um ensino baseado na cópia do quadro para o caderno e na memorização das famílias silábicas ou dos sons impronunciáveis dos fonemas. As crianças têm um cérebro muito plástico, aprendem muito rápido e estão muito desejosas de aprender neste momento. Essa motivação vai contribuir muito com o sucesso da aprendizagem delas — destaca a pesquisadora.
Presidente da Associação Brasileira de Alfabetização, Lourival José Martins Filho ressaltou, em entrevista ao Gaúcha Atualidade, que o atraso na alfabetização ocorre porque este é um processo que exige interação das crianças com pessoas preparadas para alfabetizar.
— Grande parte dos pais e das mães não tem a formação necessária para alfabetizar as crianças. Isso exige a formação dada nos centros de formação de professores e professoras. Mas essas crianças podem, a partir de um trabalho sério e significativo, retomar essa aprendizagem. Não há idade para aprender — observa Lourival.
Apoio dos pais
Para ajudar as crianças, o presidente da Associação Brasileira de Alfabetização indica que os pais tracem estratégias de leituras em casa, mostrando para os filhos que cantigas podem ser escritas, lendo livros, explorando rótulos e embalagens de produtos, fazendo ditados surpresas e brincadeiras com letras. Tudo isso deixará a escrita mais “viva” no imaginário dos pequenos.
— Pela minha experiência, o desejo de ler e escrever tem a ver com a relação que você tem com a escrita. O que vai fazer diferença é a qualidade da aprendizagem, que fará com que a criança se perceba como leitora, como escritora, como alguém que pode escrever o mundo — resume Lourival.
Na UFRGS, há dois projetos em andamento para entender o impacto da pandemia na alfabetização das crianças. Um deles faz parte do estudo “Alfabetização em rede: uma investigação sobre o ensino remoto da alfabetização, da pandemia covid-19 e da recepção da PNA pelos docentes da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental”, desenvolvido por 117 pesquisadores vinculados a 29 universidades brasileiras. Por aqui, foram analisadas as respostas de 1.465 professores de primeiro e segundo anos que atuam no RS. Metade respondeu que alguns dos alunos estavam realizando as tarefas remotas e 36% disseram que a maioria realizava. Agora, com o retorno das aulas presenciais, serão feitos novos grupos focais com essas docentes, a fim de entender qual o novo cenário que se apresenta.
O outro projeto será colocado em prática ao longo de 2022. Trata-se de uma pesquisa realizada em uma escola da rede municipal de Porto Alegre. Nela, estudantes do curso de Pedagogia da UFRGS farão estágio de docência nos Anos Iniciais e serão investigadas as consequências da pandemia nos processos de aprendizagem no Ensino Fundamental.