Não é só de desenhos de letrinhas que se faz a alfabetização de uma criança. O processo de ensinar a ler e a escrever, que é complexo e costuma levar três anos para ser concluído, tem sido ainda mais desafiador durante a pandemia. Primeiro devido à suspensão das aulas nas escolas, depois em virtude da restrição de recursos permitidos nas atividades remotas e, agora, por conta do uso de máscaras por parte de professores e alunos, o que impede que se enxergue o movimento da boca usado para articular as palavras. Docentes e instituições de ensino têm usado a criatividade para superar essas perdas.
No colégio La Salle Santo Antônio, bairro Santo Antônio, na Capital, o ano letivo de 2022 começou com a adoção de máscaras com transparência na região da boca por parte dos professores. Segundo o supervisor educacional da escola, Fávaro Lummertz, a instituição entendeu que a aquisição dessas máscaras era importante para amplificar a oralidade.
— Professores de Música, de Língua Inglesa e titulares do primeiro e do segundo ano do Ensino Fundamental usarão máscaras fechadas com transparência, para que os alunos possam fazer leitura labial. Vimos essa necessidade nas atividades que trabalhem a consciência fonológica — relata Lummertz.
O supervisor educacional observa que o resultado final do número de crianças que terminaram alfabetizadas em 2021 não teve diferença na comparação, por exemplo, com 2019. No entanto, destaca que as crianças ficam mais atentas e motivadas quando conseguem ler o lábio do professor.
— A parte mais importante do desenvolvimento da consciência fonológica é ouvir, mas, quando tu vês o estímulo da teatralização e o movimento da boca na hora de falar, isso chama a atenção para as próprias palavras — avalia.
No colégio João XXIII, bairro Santa Tereza, a professora Amanda Eccel Dorneles conta que enfrentou o desafio de alfabetizar nessas novas condições com a produção de vídeos e descrevendo os movimentos da boca e da língua para seus alunos. Para driblar o abafamento do som causado pela máscara, a docente também usava microfone. Quando as aulas aconteciam no pátio – a instituição conta com salas de aula completas em seu jardim – a educadora às vezes baixava um pouco a máscara, para demonstrar a articulação para as crianças.
— Para uma porcentagem pequena de alunos talvez tenha havido um pouco de impacto na alfabetização, mas, de modo geral, as crianças foram muito bem. Elas têm essa predisposição muito grande de superar dificuldades e deram um show nisso — analisa, ressaltando que foi mais desafiador lidar com as questões emocionais que os pequenos apresentaram durante a pandemia do que com a alfabetização em si.
O uso de plataformas digitais de leitura foi uma das estratégias usadas no Colégio Marista Rosário, bairro Independência. Na visão da coordenadora pedagógica dos Anos Iniciais da escola, Luiza Emmel, a visualização da boca é uma das possibilidades, mas existem outras, no processo de alfabetização.
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— Usamos estratégias de reconhecimento fonológico através de rimas, imagens, palavras destacadas, buscando o desenvolvimento da oralidade de uma forma lúdica, mas com uma intencionalidade. Os professores foram incríveis: buscaram alternativas e hoje posso dizer que as crianças aprenderam muito bem — pontua Luiza.
Para evitar a retirada da máscara em sala de aula, os professores também gravavam vídeos e áudios para utilizar em sala de aula ou como tema de casa, com o som de palavras. Nas plataformas de leitura, as crianças podiam ouvir a história ou ler o livro em voz alta, gravar a leitura e enviar para apreciação da professora.
Na rede pública, mais desafios
Na rede pública, os recursos restritos de uma parte dos alunos dificultou ainda mais o processo de aprendizagem e demandou criatividade dos docentes. Na Escola Municipal de Ensino Fundamental Dolores Alcaraz Caldas, bairro Restinga, a professora Letícia Staudt precisou lidar com um revezamento de alunos que impossibilitou que algumas famílias levassem seus filhos às aulas. Com isso, as turmas contavam com em torno de cinco a 10 estudantes presentes.
— O processo de alfabetização foi bem insatisfatório, insuficiente e até frustrante essa experiência, ainda mais com a máscara. É importante que, na alfabetização, a gente articule as palavras com as crianças, para mostrarmos os sons das letras, e isso, com a máscara, fica bastante prejudicado — lamenta Letícia.
Em meio a outros desafios, como adaptar as crianças ao uso da máscara e o cuidado com o distanciamento, a docente, no desespero para ensinar, às vezes colocava o face shield e baixava a máscara para articular as palavras.
— Me peguei baixando a máscara, sempre bem distante das crianças. Mas nunca permaneci sem máscara — explica.
No período de aulas remotas, no qual a escola enviava atividades por WhatsApp para os alunos fazerem em casa, muitas mães reclamaram para Letícia que não conseguiam tornar a alfabetização atraente para seus filhos e pediram que ela fizesse vídeos com o conteúdo. A professora fez, mas não gostou do resultado.
— Me virei nos 30 e fiz um canalzinho no YouTube com os vídeos. Para a minha surpresa, a audiência foi baixíssima. Embora elas pedissem, muitas não tinham Wi-Fi em casa e não conseguiam assistir — relata Letícia.
Com o retorno presencial, em agosto, um aspecto favorável da presença de poucos alunos em sala de aula foi a possibilidade de oferecer um ensino mais individualizado a cada criança. A docente fez atividades com alfabeto móvel, carimbos, letrinhas, tintas e material de contagem e conseguiu “dar aquela aula dos sonhos, que se aprende na faculdade e que em uma turma normal, de 25 alunos, fica difícil”. O resultado foi um fim de ano com crianças muito mais familiarizadas com o alfabeto, ainda que não totalmente alfabetizadas.
Fátima Hartmann, também professora da Dolores Alcaraz Caldas, considera que a aprendizagem do sistema de escrita alfabética depende da compreensão bem orientada das relações entre a oralidade e a escrita, o que acontece ao se visualizar o movimento da boca e ouvir com clareza os sons. Por isso, também adotou como estratégia a produção de vídeos. Ao contrário de Letícia, considera a experiência como proveitosa.
— São vídeos bem simples, usando nossos celulares, mostrando o movimento da boca e os sons de letras e fonemas. Aquilo que seria feito sem a máscara em sala de aula, se não houvesse pandemia. Isso contribui muito para o aprendizado das crianças e é uma boa alternativa, aliada às metodologias pedagógicas utilizadas em sala — recomenda Fátima.
No ano passado, como poucas crianças retornaram ao ensino presencial na escola, os vídeos eram reproduzidos nos grupos de WhatsApp das turmas. Para este ano, a ideia é utilizá-los em sala de aula.
Consciência dos sons
A dificuldade gerada pela máscara é no desenvolvimento da consciência fonoarticulatória – a posição dos órgãos da boca quando se fala uma palavra. Quando a criança está aprendendo a ler e a escrever, ela ainda não relaciona automaticamente, por exemplo, a letra “S” ao som que ela produz. Enxergar o som sendo emitido pelo professor ou por outros colegas auxilia na formação dessa consciência, como explica Rochele Paz Fonseca, neuropsicóloga pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e presidente da Sociedade Brasileira de Neuropsicologia.
— A máscara cobre dois terços do nosso rosto. Com os professores usando máscara, as crianças perdem a pista fonoarticulatória, para que eles saibam a que som corresponde. O ideal seria usar essas máscaras com transparência, ou mostrar fotos da boca para cada som — analisa Rochele.
A docente defende que o melhor seria que as crianças não usassem máscaras, para que, pelo menos, treinem o aprendizado das palavras com seus colegas. Ela também destaca que a proteção, com o tempo, acaba grudando na boca e impedindo que o pequeno faça alguns sons. Mesmo assim, considera muito melhor abrir as escolas com o uso de máscara pelos alunos do que não abri-las.
A fonoaudióloga Letícia Pacheco Ribas, que é professora do Departamento de Fonoaudiologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), conta que, ao contrário da linguagem oral, a leitura e a escrita não são habilidades inatas do ser humano e, por isso, necessitam de uma instrução formal. A língua portuguesa é um idioma cujas palavras costumam ter correspondência entre o fonema e o grafema (ou seja, o som e a escrita das palavras são semelhantes), o que facilita o aprendizado para a criança, mas, mesmo assim, há desafios na alfabetização.
— A diferença entre “F” e “V”, por exemplo, é muito pequena. A criança pode fazer confusões quando está no início da aprendizagem, especialmente com o uso da máscara, que deixa o som abafado — avalia a especialista.
Estratégias como o uso de microfones são importantes, de acordo com Letícia, porque ressaltam a voz, assim como o uso de máscaras com transparência. Ela acha, porém, que o pior já passou: o maior impacto foi no período sem aulas e com atividades remotas, que não permitia a frequência e a intensidade necessárias para se ensinar alguém a ler e a escrever.
Professora da área de Fonoaudiologia Educacional da UFCSPA, a fonoaudióloga Fabiana de Oliveira considera o uso de vídeos mais eficaz do que as máscaras com transparência, que podem embaçar com a respiração. A docente não considera, entretanto, que o uso da máscara chegue a retardar a alfabetização.
— O principal é que a criança escute o som e consiga demonstrar, através de outras formas, que aquele som corresponde àquela letra. O professor vai ter que articular bem, projetar melhor sua voz, talvez buscar outro tipo de recurso visual, o que gera uma demanda maior para o professor, mas é algo contornável — afirma Fabiana.
Como a família pode ajudar
A fonoaudióloga Fabiana ressalta que, como a família não precisa usar máscara quando está com a criança, pode ajudar fazendo os sons das letras, reforçando o movimento da boca com a criança e pedindo que ela repita. Colocar a leitura no dia a dia do pequeno também pode ser de grande serventia.
— Ajudar as crianças a lerem placas de trânsito e rótulos de alimentos pode fazer com que elas entendam a função social da leitura e da escrita no cotidiano, assim como fazer jogos pedagógicos e ler literatura infantil. Quanto mais leitoras as famílias são, mais isso contribui para alimentar na criança o desejo de ler — indica a fonoaudióloga.
Letícia recomenda o programa Conta pra Mim, da Polícia de Alfabetização do Ministério da Educação (MEC), como um recurso interessante para utilizar com as crianças. Lá, há vídeos com orientações sobre como colocar em prática atividades de literacia familiar e dezenas de audiobooks com historinhas infantis.
— Ao ler historinhas, você usa palavras que não costuma usar no dia a dia e isso aumenta o vocabulário da criança — explica a docente.
A neuropsicóloga Rochele traz duas dicas de aplicativos que podem auxiliar as famílias nesse processo: o EduEdu e o Grapho Game. Ambos podem ser instalados no celular ou no computador e trazem atividades de acompanhamento do desenvolvimento da criança, como jogos, músicas e textos.
— Atividades de leitura ajudam muito na alfabetização. Os pais têm que ler para seus filhos, para servirem de modelos da importância da leitura. O hábito da leitura nos pais aumenta em duas a três vezes a capacidade cerebral da criança em termos de linguagem e escrita, por exemplo — salienta Rochele.