Estudiosos que pesquisam a reforma do Ensino Médio desde sua concepção, em 2017, estão preocupados com as novidades que chegam com o ano letivo de 2022. Os alunos dos primeiros anos da etapa que chegarem às escolas no dia 21 de fevereiro conhecerão um currículo bem diferente do existente até então, com uma carga horária menor das disciplinas antigas, a fim de abrir espaço para a entrada de componentes curriculares novos. Em 2023 e 2024, esses estudantes também precisarão optar por áreas de conhecimento a serem aprofundadas, em detrimento de outras. A projeção dos pesquisadores é de que essa mudança ampliará a desigualdade entre escolas públicas e privadas.
O professor Éder Silveira, da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), realiza seu pós-doutorado na Universidade Federal do Paraná (UFPR), estudando justamente sobre o Novo Ensino Médio. Professores e diretores de 50 das 264 escolas que participaram de um projeto-piloto da reforma desde 2019 responderam questões sobre como tem ocorrido a recontextualização dessa etapa na prática (leia mais sobre duas destas escolas no fim da reportagem). Segundo o pesquisador, fica evidente que o novo modelo tem sido interpretado de formas diferentes em cada instituição de ensino.
— Para se ter uma ideia, 4% das pessoas que responderam ao questionário sequer sabiam que a sua própria escola era piloto do Novo Ensino Médio. Quando perguntamos quais documentos o gestor já tinha lido sobre o assunto, quase 30% não souberam responder, e o mesmo percentual não sabia quais itinerários formativos eram disponibilizados na sua escola — relata Silveira.
Os itinerários formativos são a parte mais flexível do currículo, na qual o aluno pode optar por áreas que mais lhe interessam. A orientação é de que as escolas ofereçam ao menos dois itinerários formativos, especialmente quando estiverem localizadas em municípios mais remotos e com menos oferta de instituições com Ensino Médio.
No Rio Grande do Sul, a previsão é de que os estudantes da rede estadual possam escolher entre 10 itinerários – Cidadania e Gênero, Educação Financeira, Empreendedorismo, Expressão Corporal, Expressão Cultural, Profissões, Relações Interpessoais, Saúde, Sustentabilidade e Tecnologia. A rede privada poderá criar seus próprios itinerários.
Segundo o pesquisador, leituras distintas são comuns durante a implementação de qualquer política educacional, assim como é natural que a forma como cada escola lidará com o Novo Ensino Médio seja diferente. Entre os fatores que influenciam na boa aceitação e implementação estão a existência de infraestrutura adequada, recursos humanos e professores com formação adequada para ministrar as novas disciplinas.
— O Novo Ensino Médio traz a ideia de que o currículo não será mais dividido por disciplinas, e sim por áreas de conhecimento. Por mais que se fale em integração entre áreas de conhecimento, na rede estadual isso é impossível nas condições atuais, em que a maioria dos professores trabalha em mais de uma escola e não tem carga horária para trabalhar em conjunto com outros docentes — avalia Silveira, que considera que a dualidade estrutural do Ensino Médio entre classes sociais, oferecendo um ensino mais técnico para os mais pobres e mais científico para os mais ricos, reaparece com a reforma.
Ainda não estão definidos quais itinerários formativos serão oferecidos em cada escola estadual – mesmo nas instituições que tiveram projetos-piloto do Novo Ensino Médio. A maioria das escolas particulares, por outro lado, já tem anunciado seus itinerários, mesmo que a escolha dos estudantes entre os diferentes percursos formativos só seja efetivada ao longo de 2022. Na visão de Silveira, ainda que todas as redes de ensino tenham redução da carga horária da Formação Geral Básica (a parte obrigatória para todos os alunos), a rede privada terá mais condições de compensar o aprendizado em outros espaços, como disciplinas eletivas e atividades práticas em laboratórios.
Pesquisadora e coordenadora do Grupo de Estudos de Políticas Públicas para o Ensino Médio (GEPPEM) e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas e Gestão da Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a professora Patrícia Marchand é contrária à própria concepção do Novo Ensino Médio.
— A reforma surge, na verdade, por meio de uma medida provisória, que depois se torna uma lei, sem uma discussão ampla com a comunidade. Os mais interessados, que seriam os alunos, seus responsáveis e os professores, praticamente não foram ouvidos. Isso leva ao aprofundamento da desigualdade das condições de oferta principalmente nas escolas públicas — analisa Patrícia.
No entendimento da docente, o foco em Língua Portuguesa e Matemática existente no novo currículo remete a uma formação “aligeirada” de uma mão de obra mais barata do que a oferecida em escolas privadas. Ela questiona, ainda, quem ministrará as novas disciplinas e como ficará a carga horária de professores de componentes como Arte, Educação Física, Literatura, Filosofia e Sociologia, que tiveram redução de períodos com a reforma.
— É provável que professores de áreas como Sociologia e Filosofia sejam deslocados para dar disciplinas dos itinerários formativos, e isso é um problema, porque não dá para fazer uma formação aligeirada em uma área que não é a dele — sinaliza Patrícia.
Secretária defende liberdade das instituições
A secretária estadual de Educação, Raquel Teixeira, pontua que a reforma funciona da mesma forma para as escolas públicas e as privadas. O que pode acontecer na rede particular é que sejam ofertadas disciplinas eletivas como forma de ampliação do currículo.
— O currículo apresentado para a rede estadual está completamente de acordo com a legislação, mas aquilo é só o mínimo a ser feito. A própria escola estadual poderá fazer diferente disso dentro das eletivas, dos clubes de juventude e de projetos especiais. Ela pode criar o que quiser: essa é a beleza do Novo Ensino Médio, e acho que muitas escolas vão fazer isso — prevê a secretária.
De acordo com Raquel, desde que cumpram com os requisitos obrigatórios, as instituições de ensino poderão expandir seu currículo da forma que quiserem e é, inclusive, desejado que o façam:
— Eu vou estimular isso em escolas que se sentirem preparadas para essa expansão — garante.
Sala de Inovação para aulas de Empreendedorismo
Na Escola Estadual Jardim Planalto, em Esteio, na Região Metropolitana, o Novo Ensino Médio não é totalmente novidade. A instituição foi uma das escolas-piloto da reforma e participou da construção do seu currículo em 2019, que tinha previsão de ser implementado nesses colégios em 2020.
Com a pandemia, a implementação foi dificultada, mas a escola acabou recebendo verbas do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação (FNDE) para se adequar ao novo modelo. Somado a dinheiro oriundo de outros programas e da autonomia financeira da instituição, o recurso permitiu a reforma da biblioteca, a compra de kits de robótica e a criação de uma Sala de Inovação, destinada às aulas de Empreendedorismo.
Ao contrário de muitas escolas, a Jardim Planalto já sabe quais itinerários formativos adotará – Empreendedorismo e Tecnologia. Esses itinerários foram definidos ainda em 2019, a partir de debates junto à comunidade escolar e seus interesses.
— É complicado (escolher os itinerários da escola), porque me parece que as escolhas dos alunos são mais algo de momento. Tecnologia é algo que eles vivenciam e acham divertido, mas entender o que tem por trás, a matemática, a lógica, talvez não fascine tanto. Empreendedorismo pode ser uma escolha gerada por uma necessidade financeira de trabalhar, e não por um interesse verdadeiro — pondera o diretor da escola, Jan Torres, salientando que a vontade de trocar de área de atuação pode acontecer também na fase adulta.
Conforme Torres, o perfil do professor precisará ser diferente no Novo Ensino Médio, diante da necessidade de adaptação às novas disciplinas.
— O professor do Novo Ensino Médio é alguém flexível, que está disposto a repensar a sua prática, porque se ele quiser só dar a aula que ele sempre deu, não vai fluir. Por isso é importante haver uma formação continuada, porque se tu tiveres só a formação da faculdade, tu vais estar ultrapassado — conclui o diretor.
No caso da Jardim Planalto, Torres tem procurado avaliar o perfil de cada professor na hora de destinar as novas disciplinas que serão oferecidas já neste ano – Projeto de Vida, Cultura e Tecnologias Digitais e Mundo do Trabalho – a eles. No caso de Projeto de Vida, o gestor prefere docentes mais empáticos, enquanto em Culturas e Tecnologias Digitais é essencial um interesse em áreas como computação e robótica.
Escola-piloto e de tempo integral
O Colégio Estadual Piratini, na Zona Norte de Porto Alegre, não teve tanta sorte no que se refere a recursos. Segundo o diretor da instituição, Maurício Girardi, apesar de a escola ser piloto do Novo Ensino Médio, o fato de ela também funcionar na modalidade de tempo integral dificultou a liberação de verba a mais para adaptar o espaço. Com isso, investimentos como os feitos na Jardim Planalto não foram possíveis.
O diretor se mostra descontente com a ampliação da carga horária anual dos alunos de 1,4 mil para 1,5 mil horas. Esse aumento fará com que os estudantes passem a ter nove períodos em dois dias da semana e oito períodos nos outros três.
— A gente sabe o cansaço que os alunos ficam ao passar todo esse tempo na escola. É complicado fazer alterações como essa do gabinete, sendo que poderiam consultar as escolas — critica Girardi.
Como o Piratini funciona em tempo integral, disciplinas novas, como Cultura e Tecnologias Digitais, Projeto de Vida, Mundo do Trabalho, Cultura Juvenil e Iniciação Científica, já faziam parte do currículo da instituição. O que mudará é a carga horária de cada uma. Além disso, serão ofertadas atividades experimentais nas áreas de robótica e teatro e também práticas esportivas, com modalidades a serem definidas.
Em 2019, a instituição, em diálogo com os alunos, definiu dois itinerários formativos a serem oferecidos: Expressão Corporal e Relações Interpessoal. O diretor acredita, no entanto, que provavelmente não sejam esses os itinerários implementados a partir do ano que vem.
— Pode ser que mudem, a depender do que a gente perceber de interesses dos alunos ao longo dessa construção que faremos em 2022. É neste ano que vamos começar a ver as preferências de cada um para construir bons itinerários, mais robustos — explica Girardi.