Mais de um mês após o fechamento das escolas em todo o país por conta da pandemia, começam a surgir ponderamentos quanto à eficácia de aulas não presenciais e atividades a distância, com questionamentos para entender se estas realmente substituem o que o aluno aprende na escola. Sobretudo na rede pública, em que o acesso dos estudantes e professores à internet muitas vezes é inexistente ou precário, teme-se o aprofundamento das desigualdades no aprendizado.
É com essa preocupação que começam a surgir ações do Ministério Público e projetos de lei para impedir que o ensino remoto na Educação Básica seja contabilizado como parte das horas letivas obrigatórias estipuladas pelo Ministério da Educação.
O ministério permitiu a flexibilização dos 200 dias obrigatórios no ano letivo, mantendo, porém, a exigência das 800 horas. Na última semana, o Conselho Nacional de Educação recomendou que as aulas não presenciais sejam contadas na carga horária, abrindo a possibilidade para que conselho estaduais e municipais, que regulam redes pública e privada, permitam a prática.
Na última quinta-feira (30), no Rio de Janeiro, um projeto de lei dos deputados Waldeck Carneiro (PT) e Flávio Serafini (Psol) foi discutido na Assembleia Legislativa, com o objetivo de suspender o calendário letivo na rede estadual, que tem mais de 700 mil alunos. Assim, não haveria interferência na oferta de conteúdo online e o término ainda em 2020 apenas para os alunos do último ano do Ensino Médio, por conta dos vestibulares, estaria garantido.
No Estado, aulas são transmitidas pela televisão, salas virtuais foram criadas em parceria com o Google Classroom e material impresso e chips de internet estão sendo distribuídos aos alunos. Segundo a Pnad 2017, 65% dos domicílios fluminenses têm acesso à banda larga — o menor índice é o do Pará, com 29%, e o maior, do Distrito Federal, 78%.
— A principal preocupação no momento deveria ser a oferta de atividades educacionais emergenciais, extraordinárias, online ou encaminhadas aos alunos, mas a preocupação com o calendário agora não é relevante — diz Carneiro.
Em Goiás, as aulas não presenciais acontecem desde 23 de março por meio de plataforma digital e atividades televisionadas, além da distribuição de material impresso em parceria com os conselhos tutelares e a Polícia Militar. No começo de abril, o Ministério Público recomendou ao conselho de educação goiano a suspensão das atividades obrigatórias, mas o órgão disse que não atenderia à recomendação, apresentando razões que não foram aceitas pela promotora do caso, Maria Bernadete Ramos Crispim. Ela então pede na Vara de Fazenda uma liminar que suspenda a resolução do conselho em validar as horas do ensino remoto.
— Diante das reclamações de pais e professores, eu fiz a recomendação para que revogassem a decisão, uma vez que não atendia à coletividade dos alunos e aumentava a desigualdade entre rede privada e pública. Não é o momento de implantar aulas dessa maneira, pois parte dos estudantes não têm acesso à internet, o que aumenta ainda mais o fosso entre os alunos — diz a promotora.
A Secretaria de Educação de Goiás diz estar cumprindo as determinações dos conselhos estadual e nacional de Educação. Ainda segundo a secretaria, os alunos têm mostrado produtividade.
O Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná procurou o Ministério Público Estadual e o do Trabalho contra a educação a distância proposta pelo governo do Estado, com plataforma online, aplicativo, aulas pela televisão e distribuição de apostilas. O conselho de educação paranaense, porém, ainda não normatizou a contagem das horas letivas. A orientação do Ministério Público do Paraná é de que as Promotorias de Justiça que atuam na área de educação acompanhem e fiscalizem as propostas elaboradas e executadas no Estado e nos municípios para que se garanta a qualidade e o acesso dos alunos às atividades.
Em São Paulo, o ensino remoto com carga horária obrigatória começou em 27 de abril. No começo do mesmo mês, a Apeoesp, sindicato que representa os professores da rede estadual de São Paulo, já havia procurado o Ministério Público contra a medida.
No dia 20 de abril, o Ministério Público de Sergipe emitiu recomendação para que escolas públicas e particulares antecipem férias de funcionários e professores. No Estado, o ensino remoto está se dando por meio de plataforma online e transmissão de aulas pela TV.
Em Pernambuco, o Sindicato dos Trabalhadores em Educação formalizou denúncia no Ministério Público para que atividades não presenciais não sejam consideradas como substituição de aulas.
Foi também o que fizeram, no Ceará, os membros da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, onde o ensino remoto começou em 30 de março, além de procurarem o Conselho Estadual de Educação e as secretarias municipais e a estadual. De acordo com dados do Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica, em 2018, um a cada quatro estudantes da rede pública não tinha acesso à internet.
A Campanha é uma rede de defesa do direito à educação que reúne organizações e entidades nacionais há 20 anos. O grupo organizou guias sobre o ensino a distância na pandemia destinados a profissionais de educação, famílias e poder público nos quais são apresentadas recomendações para garantia do direito à educação, além de dados.
— Claro que a escola precisa sugerir atividades, promover debates sobre o momento que estamos vivendo, contextualizar, mas de forma complementar, que não conte como dia letivo e carga horária obrigatória. Mesmo que houvesse provisão de tablets e internet a todos, não há condições de aprendizagem porque muitos estão passando fome — diz Andressa Pellanda, coordenadora da Campanha.
Desigualdade de gênero
Para Mary Guinn Delaney, assessora regional da Unesco em educação para saúde e bem-estar na América Latina e Caribe, os estudantes sem acesso a rádio, televisão e dispositivos online são os mais desfavorecidos pelos programas de educação a distância, e o uso apenas de materiais impressos não oferece suficiente interação com professores e outros alunos. Ela chama atenção ainda para a necessidade de se garantir a equidade de gênero nessa forma de ensino.
— As meninas podem estar em desvantagem no acesso e no uso de dispositivos, além de terem menos tempo de aprendizagem devido às tarefas desproporcionalmente maiores do lar — diz.