A intenção do presidente Jair Bolsonaro de retirar recursos das faculdades da área de humanas, manifestada nesta sexta-feira (26) pelo Twitter, deve esbarrar na legislação que garante a autonomia universitária, dizem especialistas.
Na rede social, Bolsonaro afirmou que o Ministério da Educação estuda "descentralizar investimento em faculdades de Filosofia e Sociologia", para focar "em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina". Na quinta-feira à noite, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, transmitiu um vídeo que já prenunciava a ideia manifestada horas depois por Bolsonaro.
— O Japão, país muito mais rico que o Brasil, está tirando dinheiro público, do pagador de imposto, das faculdades que são tidas como para pessoas que já são muito ricas, ou de elite, como filosofia. Pode estudar filosofia? Pode, com dinheiro próprio. E o Japão reforça: esse dinheiro que iria para faculdades como filosofia, sociologia, se coloca em faculdades que geram retorno de fato: enfermagem, veterinária, engenharia e medicina.
Segundo os especialistas ouvidos por GaúchaZH, além de Bolsonaro e do ministro não terem poderes para determinar a distribuição do orçamento dentro de cada universidade, suas manifestações mostram desconhecimento da importância das ciências humanas.
Francisco Soares, ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), afirma que o poder do governo para asfixiar os cursos da área de humanas é limitado. O principal recurso destinado às universidades são verbas de manutenção, que servem, por exemplo, para pagar os professores. O governo não teria como repassar os recursos e ordenar que eles fossem direcionados para uma área, e não para outras.
— O governo terá dificuldades legais para implementar essas diretrizes, porque as universidades têm autonomia para a distribuição dos recursos. O governo tem voz forte no orçamento, mas não pode dizer para acabarem com os cursos de Filosofia. Além disso, os professores têm contratos com estabilidade — avalia Soares.
O governo terá dificuldades legais para implementar essas diretrizes, porque as universidades têm autonomia para a distribuição dos recursos.
FRANCISCO SOARES
Ex-presidente do Inep
Ele vê mais possibilidade de intervenção nos recursos que são concedidos para a pesquisa. Nesse caso, é perfeitamente possível que o governo priorize abrir editais para alguns cursos, e não para outros. O efeito poderia ser sentido em breve, afirma Soares, porque os contratos costumam ser renovados ano a ano.
O ex-presidente do Inep destaca também a importância que a área de humanas têm para o desenvolvimento e que estaria sendo desconsiderada nas declarações de Bolsonaro.
— Só para dar um exemplo, os Estados Unidos têm antropólogos especializados em todos os povos do Brasil e do mundo. No meu doutorado, na Universidade de Wisconsin, eu tinha um colega da antropologia que dizia: "Estudo uma coisa sem importância, os kelters, das Ilhas Malvinas". Três meses depois, teve a Guerra das Malvinas e ele era a única pessoa que conhecia tudo. Virou um grande assessor de segurança nacional, e há dezenas de exemplos assim.
A doutora em educação Monica Ribeiro da Silva, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), observa que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e a própria Constituição Federal são obstáculos para a concretização do que Bolsonaro escreveu no Twitter.
O que ele fala não tem fundamento em nenhuma legislação. Passaria por mudar a Constituição e a LDB, que determinam a autonomia universitária. É algo distante.
MONICA RIBEIRO DA SILVA
Professora da UFPR
— O que ele fala não tem fundamento em nenhuma legislação. Passaria por mudar a Constituição e a LDB, que determinam a autonomia universitária. É algo distante.
Monica ressalta que a manifestação de Bolsonaro é apenas um tuíte, não um decreto, e que tem o sentido de agradar seus eleitores. Entende que revela um desconhecimento de que mesmo o setor mais técnico depende de conhecimentos que vêm da área de humanas. Ela também coloca o posicionamento do presidente no contexto das críticas ao seu governo:
— As análises mais sérias, rigorosas e fundamentadas sobre o andamento da política são oriundas da área das ciências humanas. Esse ataque vem por aí. O que preocupa é ter um governante que despreza a ciência e que usa o Twitter para expressar coisas que deveriam ser tratadas de maneira séria — diz.
O ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro também se manifestou sobre o assunto. Em texto divulgado pelas redes sociais, afirmou que "o ataque do presidente aos cursos de filosofia e sociologia revela que ele não sabe o que é o conhecimento". Ribeiro concorda que as engenharias são fundamentais para o PIB e devem ser prestigiadas, mas fez também a defesa da Sociologia e da Filosofia. "A Sociologia dá particular ênfase à desigualdade social. Mas ela existe, não é? E quanto maior a desigualdade, mais pobre e atrasado o país", escreveu. "A Filosofia lida com o pensamento. Fazem parte dela a teoria do conhecimento, a epistemologia. Ela dialoga, portanto, com as ciências. Ora, as ciências não são decisivas para o desenvolvimento econômico? Alguém imagina melhorar as engenharias e as medicinas sem pesquisa científica?".