Gravada por uma aluna, uma discussão entre ela e a professora em sala de aula ganhou repercussão nas redes sociais e foi divulgada no perfil do presidente Jair Bolsonaro (PSL) no domingo (28), reacendendo o debate sobre a relação entre docentes e estudantes nas instituições de ensino. No vídeo, a garota interrompe a explanação no momento em que a professora chama de "anta" aquele que é considerado o guru intelectual da Presidência da República, Olavo de Carvalho. "A senhora não percebeu que pegou 25 minutos da aula para expor a sua opinião político-partidária?", questionou a aluna, que mostra seu próprio rosto durante a maior parte do tempo. Segue-se uma discussão entre ambas, e a estudante afirma que, a partir de então, gravará todas as aulas para expô-las na internet.
Pouco depois, Carlos Bolsonaro compartilhou um vídeo em que um professor discutia com um aluno, gritava e falava mal do presidente, com a legenda "Gravar/filmar aulas é ato de legítima defesa contra os predadores ideológicos disfarçados de professores".
Consultada por GaúchaZH, Russel Teresinha Dutra da Rosa, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), identifica problemas legais e éticos na gravação e na divulgação do conteúdo do vídeo compartilhado pelo presidente. A menina não poderia ter gravado a professora sem autorização prévia desta última, explica Russel, tampouco ter publicado o vídeo.
— Isso possibilita uma difamação pública de ambas — avalia Russel, lembrando que, no Rio Grande do Sul, uma lei estadual proíbe a utilização de aparelhos de telefonia celular nos estabelecimentos de ensino.
Para o advogado Miguel Nagib, fundador do Escola sem Partido, a proibição do uso do celular, conforme prevista em algumas leis estaduais e municipais, somente se justifica para fins pedagógicos, isto é, para não atrapalhar o aprendizado do aluno. A proibição não impediria o uso desses aparelhos na função gravador ou filmadora.
— O direito do aluno de gravar/filmar as aulas é inquestionável, tanto para fins pedagógicos (isto é, para poder assistir à mesma aula mais de uma vez, fixando melhor o conteúdo ministrado), quanto para, eventualmente, produzir as provas necessárias à defesa dos seus direitos — argumenta Nagib.
A especialista critica também a descontextualização do trecho gravado e postado, que teria ficado prejudicado na hora da divulgação de apenas uma parte do pronunciamento da professora. Além disso, de acordo com a especialista, a situação deveria ter sido contornada entre aluna e professora — a aluna, procurando a coordenação ou a direção, e a professora dando prosseguimento à aula. Mais tarde, seria recomendável que as duas conversassem também.
— As pessoas não são robôs, todo mundo está sujeito a ter dias mais difíceis e a se exceder. O ambiente escolar é um lugar para a gente aprender a lidar com tudo isso, a conviver. Quando alguém divulga isso na internet, não está ajudando as partes a resolverem o problema e as está colocando em risco — diz Russel.
Professor da pós-graduação em Educação da UFRGS, Fernando Becker também critica a postura de Bolsonaro – "ele fomenta esse tipo de confronto que não é útil pra ninguém" – e concorda com a colega: questões de sala de aula devem ser resolvidas ali mesmo e, quando necessário, levadas a outros profissionais da entidade educacional.
— Não se filma e não se bota na internet. Caso não consiga se resolver na sala, recorre-se às outras instâncias, como orientação pedagógica, direção, serviço psicológico, orientação educacional. A escola tem recursos para administrar isso — acredita Becker.
Para ministro, alunos podem filmar professores
Segundo o ministro da Educação, Abraham Weintraub, filmar professores durante as aulas é um direito dos alunos. Ele afirma que os educadores podem ficar tranquilos, pois "o direito de todos será preservado", mas que podem ser necessárias medidas para "melhorar o ambiente escolar" nos casos relatados. Ao jornal O Estado de S.Paulo, o ministro disse que ainda irá analisar se há alguma irregularidade cometida pelos docentes nos vídeos compartilhados nas redes sociais.
O dinheiro do contribuinte não estava sendo gasto da melhor forma. Se eu tivesse pagando por uma aula dessas, eu me sentiria lesado.
ABRAHAM WEINTRAUB
ministro da Educação
— Pelo que me foi descrito, o dinheiro do contribuinte não estava sendo gasto da melhor forma. Se eu tivesse pagando por uma aula dessas, eu me sentiria lesado. Agora, vamos olhar com calma e analisar dentro da lei o que pode ser feito, respeitando professores, alunos e pagadores de impostos — disse.
Weintraub afirmou que, como professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sempre permitiu que seus alunos gravassem as aulas e fotografassem a lousa.
— Não incentivo ninguém a filmar uma conversa na rua, mas as pessoas têm o direito de filmar. Isso é liberdade individual de cada um. Vou olhar os casos com calma. Não faremos nada de supetão.
Para Escola sem Partido, aluna agiu bem
Concordando com o posicionamento de Bolsonaro, o movimento Escola sem Partido salienta que a sala de aula não deve ser usada "para tentar fazer a cabeça dos alunos sobre o que quer que seja".
— Com outras palavras: professor tem de respeitar o direito constitucional dos alunos à impessoalidade, à laicidade, ao pluralismo de ideias, à educação de qualidade e à liberdade de consciência e de crença — defende Miguel Nagib, advogado e fundador do movimento, à reportagem de GaúchaZH.
Quanto à atitude da aluna que gravou e divulgou o vídeo, Nagib acredita que ela agiu corretamente, já que o conteúdo da aula deve ser focado na matéria a ser ensinada.
— Na nossa opinião, a aluna agiu bem, tanto ao interpelar a professora sobre o fato de ela haver gasto boa parte da aula para falar mal do governo e do Escola sem Partido, uma vez que a aluna não está pagando o cursinho para escutar as opiniões dos professores sobre assuntos estranhos às disciplinas que eles ministram, como ao divulgar o vídeo gravado, tendo em vista o inegável interesse público da matéria — garante o advogado.
"Já a professora, defende o Escola sem Partido, "evidentemente, não tem o direito de abusar da audiência cativa dos alunos para obrigá-los a escutar suas opiniões sobre temas controvertidos, totalmente estranhos à sua disciplina".
Repercussão entre políticos
Em sua página pessoal no Facebook, Tamires de Paula, que se identifica como a estudante que gravou e divulgou as imagens, afirma não estar feliz "em ter que gravar um vídeo para demonstrar o que fazem nas escolas", mas garante ter "uma missão com meu país e com a mudança que almejo através da educação".
"Optei por não divulgar o nome da instituição por respeito a (sic) direção que após o ocorrido me acolheu e se dispôs a tomar as providências necessárias caso a situação se agravasse; atitude nobre para pouquíssimas instituições de ensino vigentes no Brasil no contexto presente", explicou Tamires.
"No que depender de mim, não faltará coragem para a minha geração; espero que esse vídeo sirva de exemplo não apenas para militantes transvestidos de professores mas para os alunos que muitas vezes se calam por medo ou até mesmo autopreservação", continua a estudante.
O vídeo repercutiu no meio político. A deputada estadual Janaína Paschoal (PSL-SP), parlamentar mais votada nas eleições de 2018, parabenizou Bolsonaro em seu Twitter.
"Todo apoio ao presidente (por publicar o vídeo da aluna) e à aluna, que educadamente exigiu o básico: aula! Os professores podem se manifestar, mas os alunos também podem! Só o que pedimos são escolas plurais. Nada além disso!
"Já Manuela d'Ávila (PCdoB-RS), que foi candidata a vice-presidente na chapa do petista Fernando Haddad, afirmou que Bolsonaro, "ao invés de acolher professores, os hostiliza". E que, "ao invés de estimular respeito, incita ódio".