Após anos atuando no serviço público, a aposentada Mari Ângela de Melo Martins, 64 anos, trabalha de seis a oito horas por dia como motorista de aplicativo em Porto Alegre. Essa é a forma informal que ela achou para bancar os gastos além do essencial. Com os descontos na aposentadoria, hoje, só sobra praticamente o valor para pagar a parcela do financiamento veicular. Sem a atividade, a idosa teria dificuldades até para bancar o básico.
Mari Ângela é uma das 289 mil pessoas com 60 anos ou mais ocupadas em situação de informalidade no Rio Grande do Sul. De 2016 para cá, o número de idosos informais cresceu 15,6% no Estado e atingiu o maior patamar em números absolutos, olhando dados fechados do terceiro trimestre da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua Trimestral, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entre os grupos de idades pesquisados, esse é o que apresentou o maior salto no período. Crescimento da população idosa, mudanças na Previdência e necessidade de complementar renda diante de aposentadoria baixa ajudam a explicar esse movimento, segundo especialistas.
O coordenador da Pnad Contínua no Estado, Walter Rodrigues, afirma que um dos fatores que explicam o avanço no número de idosos no trabalho informal é a questão demográfica. Nos últimos anos, o Estado apresentou um avanço no número de pessoas nesse grupo de idade.
Dados recentes vão na linha da análise do pesquisador. O Censo demográfico 2022 apontou que a tendência de envelhecimento da população gaúcha segue acelerada. O Rio Grande do Sul tinha 2,19 milhões de pessoas com mais de 60 anos em 2022 – o que representa 20,15% da população. No censo de 2010, eram 1,46 milhão (13,65% do total). O dado mostra que o total de idosos no Estado aumentou 50,27% entre os dois levantamentos. Rodrigues cita que as características do mercado de trabalho também influenciam nesse cenário:
— Essas duas faixas, a que está ingressando e a que está saindo do mercado de trabalho, são as que costumam ter mais dificuldade de inserção. Tanto é que quando a gente vê aquela questão dos desalentados, alguns dos grupos que compõem são aqueles que acham que são muito novos ou muito velhos para conseguir trabalho.
No país, o avanço na população com 60 anos ou mais ocupadas em situação de informalidade avança ainda mais, crescendo 38,07% entre 2016 e 2023.
Objetivos diferentes
Além dos trabalhadores que sempre atuaram sem registro, o dado do IBGE também leva em conta pessoas com 60 anos ou mais que se aposentaram e acharam na informalidade uma forma de incrementar a renda.
Fernando de Holanda Barbosa Filho, pesquisador sênior da área de Economia Aplicada do FGV Ibre, afirma que existem pelo menos dois grupos de idosos nesse montante de informais olhando pelo lado das pessoas que já contam com aposentadoria. Os dois têm um complemento de renda, mas com objetivos diferentes, segundo o pesquisador:
— Ela pode estar participando porque se aposentou, não gostou e voltou a se ocupar ou é aquela pessoa que não consegue pagar as contas e volta para o mercado de trabalho. Diria que são esses dois grupos principais.
Impactos no mercado de trabalho
Lúcia Garcia, economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e especialista em mercado de trabalho, afirma que uma série de fatores explicam esse cenário. Um dos principais é a reforma da Previdência.
Como algumas pessoas com 60 anos ou mais fora do mercado atingiram tempo de contribuição, mas não a idade necessária em alguma das transições, existe um grupo que mira na informalidade a alternativa para se manter antes de garantir a aposentadoria.
Frentes
Além disso, a especialista cita o rendimento baixo em algumas aposentadorias e pensões e as mudanças provocadas pela reforma trabalhista entre os pontos que inflam o número de idosos no mercado de trabalho. Ela explica que esse movimento tem impacto em diversas frentes:
— A presença da força de trabalho mais envelhecida no mercado cria uma disputa com as gerações mais jovens. Por outro lado, nas ocupações informais, essas pessoas com 60 anos ou mais não têm direitos e condições de segurança.
Para Marilane Oliveira Teixeira, professora e pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), da Unicamp, além de expor etarismo por parte das empresas, a informalidade afeta a economia:
— A informalidade tem um problema concreto porque reflete uma falta de dinamismo da atividade econômica. Não gera empregos mais qualificados, com incorporação de tecnologia.
Em busca de um incremento na renda
Citada no início da reportagem, a aposentada Mari Ângela de Melo Martins é uma das pessoas que achou na atividade informal uma possibilidade de incrementar a renda. Após 43 anos no serviço público estadual, ela se aposentou em 2021. Cogitou em voltar para uma atividade formal ligada à educação, mas decidiu se cadastrar em uma plataforma de motoristas de aplicativo naquele mesmo ano. Ela mora com a mãe e um dos filhos no mesmo pátio. A mãe dela, também aposentada, paga as contas de luz, água e telefonia. Mari diz que se não fosse a ajuda da mãe e a atividade informal estaria em situação precária:
— Tenho 64 anos e durante a minha vida inteira tive um padrão de vida de classe média alta. Hoje, estou quase na pobreza. Só não estou na pobreza porque tenho uma mãe que me ajuda nas despesas.
Moradora de Porto Alegre, Mari Ângela divide seu dia em dois turnos. Pela manhã, cuida da mãe. À tarde, a jornada como motorista de aplicativo. Segue nas ruas de seis a oito horas. Para economizar, leva no carro alimentos para evitar gastos em bares e restaurantes.
Já o casal de aposentados Maria Brun, 68 anos, e Gilberto de Moraes, 66 anos, trabalha com uma banca de alimentos no Brique da Redenção. A atuação da dupla começou no local há 45 anos como um hobby. Hoje, diante da insuficiência do valor da aposentadoria na cobertura dos gastos mensais, o dinheiro arrecadado na venda de alimentos é uma das principais fontes de renda deles, segundo Maria:
— Hoje é o nosso trabalho, porque a aposentadoria não supre as necessidades da gente.
Tendência de alta para os próximos anos
O avanço dos idosos informais ocorre na esteira do crescimento da ocupação desse grupo. No terceiro trimestre deste ano, eram 523 mil pessoas com 60 anos ou mais empregadas no RS – alta de 21,06% ante 2016. Com isso, a taxa de informalidade – que mostra o percentual de informais dentro dos ocupados – dessa classe ficou quase estável, de 57,8% para 55,2%. Ou seja, há mais informais, mas a população com emprego nessa faixa de idade também apresentou salto em ritmo mais acelerado.
A economista e especialista em mercado de trabalho Lúcia Garcia afirma que esse movimento de aumento de idosos em situação de informalidade deve seguir nos próximos anos diante da aceleração do envelhecimento da população. Além de reduzir o volume de postos de trabalho, esse cenário prejudica os idosos:
— Nós enfrentamos uma situação bastante difícil para essa geração, que permanece no mercado por necessidade e precisa se adaptar a uma transformação da tecnologia muito acentuada e acelerada.
A pesquisadora Marilane Oliveira Teixeira diz que o futuro dos idosos na informalidade depende da dinâmica econômica. Melhora no cenário depende de estabilidade no emprego e de um mercado preparado para absorver os grupos que estão entrando e para as pessoas com idade mais avançada.
— Se a gente não resolver essas questões, teremos uma crise humanitária nas próximas décadas, porque vai crescer muito a expectativa de vida das pessoas. Mas é uma expectativa de vida que vem associada a doenças profissionais e uma série de outros problemas que a remuneração da aposentadoria não é suficiente para tratar – estima Marilane.
Conceito e metodologia
- A Pnad considera informal empregados sem carteira assinada, pessoas que trabalham por conta própria e empregador sem CNPJ e os que atuam auxiliando a família.
- Mas dados de empregadores e trabalhadores por conta própria sem CNPJ foram coletados só a partir do quarto trimestre de 2015. Por isso, a série histórica conta com informações apenas a partir de 2016 no caso do terceiro trimestre.
- No Rio Grande do Sul, o levantamento também não mostra os números de 2020 e 2021 diante das dificuldades na coleta dos dados provocadas pela pandemia, que afetaram todos os Estados.
- O grupo de pessoas com 60 anos ou mais ocupadas em situação de informalidade pega trabalhadores que já foram formais e migraram para informalidade, os que nunca foram formais e os que se aposentaram e acharam nesse modelo uma forma de incrementar a renda.
Outras faixas de idade
- Pegando o total de informais no RS, o montante de pessoas nessa situação também cresce, mas em ritmo menos intenso. No terceiro trimestre de 2023, 1,8 milhão estavam ocupadas informalmente – alta de 2,5% ante igual período de 2016 (1,797 milhão).
- O grupo com idade entre 14 e 17 anos teve queda de 14,29% no intervalo, saindo de 70 mil pessoas para 60 mil.
- A faixa de 18 a 24 anos também recuou na informalidade nesse recorte de tempo, mas de uma maneira mais contida. Essa população passou de 227 mil para 220 mil, queda de 3,08%.
- O grupo composto por pessoas de 25 a 39 anos apresentou leve elevação no total de informais, crescendo de 529 mil, em 2016, para 535 mil neste ano, avanço de 1,13%.
- Já a parcela de pessoas com idades entre 40 e 59 anos registrou o segundo maior avanço na informalidade, com alta de 2,36%. No terceiro trimestre de 2016, eram 721 mil pessoas dentro desse grupo. Em 2023, 738 mil trabalhadores.