A servidora pública Ana Lúcia Velasque Vargas, 60 anos, acessa apenas cerca de R$ 400 do seu salário mensalmente. O resto acaba diluído em pagamentos de empréstimos consignados e outros débitos descontados diretamente em folha. Nesse emaranhado de dívidas abatidas diretamente na fonte de renda, algumas, como as relacionadas a cartão de crédito e outros débitos antigos, acabam ficando para trás, colocando a idosa em situação de inadimplência.
Ana Lúcia, que completou 60 anos em abril deste ano, faz parte de um grupo de milhares de pessoas que não conseguem pagar todas as contas em dia em um cenário marcado por economia fraca, inflação e juros elevados. O total de idosos em situação de inadimplência cresceu 38% em quatro anos no Estado. Os dados fazem parte de levantamento da Serasa Experian.
É considerado inadimplente a pessoa que deixa de pagar a dívida no período estipulado pelo credor. A entidade explica que normalmente as empresas tentam negociar com o cliente antes de incluir o nome na Serasa e dão um prazo para que a conta seja paga.
Questões demográficas, mudanças nos padrões de consumo, aumento dos custos com saúde e descontrole no acesso ao crédito diante de assédio estão entre os principais fatores que ajudam a explicar esse salto, segundo especialistas. Em abril deste ano, 745.032 pessoas com 60 anos ou mais estavam inadimplentes no RS. No mesmo mês de 2019, eram 539.806 idosos nessa condição, de acordo com os dados da Serasa.
A alta no Estado ocorre em patamar acima da média nacional, que avançou 34,7% no mesmo intervalo de tempo. Essa faixa de idade não ocupa a maior parte da população inadimplente, mas é a que apresentou maior salto no período. Comparando com a média geral da população com contas em atraso (15,2%), o crescimento da população idosa com esse problema também é mais expressivo.
Demografia
O economista Luiz Rabi, da Serasa Experian, afirma que o aumento na proporção de idosos em relação à população total tem peso nesse processo de maior nível de inadimplência entre as pessoas mais velhas. Além disso, a pressão dos custos com saúde e cuidados médicos, que sofreram elevação nos últimos anos, entra nesse processo. Um terceiro ponto destacado é a oferta de crédito para essa faixa da população, que pode complicar o orçamento diante da falta de planejamento.
“Muitos idosos dependem principalmente de suas aposentadorias para cobrir suas despesas, o que pode ser insuficiente para arcar com todas as contas, levando ao acúmulo de dívidas”, destaca Rabi, por meio de nota.
Dados mais recentes do estudo População Idosa do RS, do Departamento de Economia e Estatística (DEE), vinculado à Secretaria de Planejamento, corroboram a questão demográfica citada por Rabi. Entre 2010 e 2021, o índice que mede o envelhecimento da população gaúcha avançou 74%, segundo levantamento lançado em maio. Em 2010, para cada cem pessoas com até 15 anos de idade, viviam no Estado 43 habitantes com 65 anos ou mais. Em 2021, a proporção passou a ser de 75. Para 2060, a estimativa é de que alcance 207. Outra pesquisa, do IBGE, mostra que a fatia de idosos dentro da população geral do RS passou de 13,8%, em 2012, para 19,5% em 2022.
Wendy Haddad Carraro, professora do Curso de Ciências Contábeis da UFRGS e coordenadora de programa de extensão em educação financeira na universidade, avalia que a situação também conta com uma questão comportamental. A especialista afirma que o idoso, quando chega em determinada idade, não quer se sentir controlado e acaba tomando decisões precipitadas:
— Diante de outros problemas, como condição de saúde prejudicada ou de não saber das mudanças e detalhes de armadilhas financeiras, entra em frias.
Com 24 anos de experiência na área de endividamento, o advogado Gabriel Garcia, proprietário do escritório que leva o seu nome, afirma que a abordagem abusiva de alguns vendedores autônomos de empréstimos consignados é um dos principais fatores que explicam o aumento no número de idosos inadimplentes. Garcia relata que existe uma mudança no perfil de idosos que procuram auxílio jurídico:
— A diferença é que agora os idosos chegam no meu escritório dizendo: “Eu não sei, eu não fiz esse empréstimo”. Isso não existia. As pessoas diziam que pegaram o dinheiro para ajudar algum familiar ou outra coisa. Hoje, 90% dos idosos que chegam no nosso escritório dizem: “Eu não sei que dinheiro é esse”.
Dificuldade para ter o básico
A servidora pública Ana Lúcia Velasque Vargas, citada no início da reportagem, afirma que sua situação financeira começou a piorar anos atrás após descobrir passivo trabalhista herdado de um imbróglio envolvendo sociedade com o pai. A idosa economiza em moradia e algumas despesas da casa porque reside com a mãe. Caso contrário, não teria condições de honrar as contas básicas do mês. Atualmente, com o pouco que sobra do salário, ela banca alguns gastos básicos, como transporte.
— Não tenho mais a minha casa, moro com a minha mãe. Então, no momento tenho onde morar de graça, de favor. Não gasto com água, luz e comida. Esses R$ 400 que sobram acabam indo para minha locomoção durante o mês. Não dá para nada — conta.
Ana Lúcia destaca que, além do auxílio da Defensoria Pública para reorganizar as contas, vai participar de um curso voltado para a reeducação financeira. Ela aposta nesse auxílio para recuperar as noites de sono e alcançar o equilíbrio financeiro que saiu de sua rotina.
Moradora de Sapucaia do Sul, a aposentada Nesia Medeiros, 68, é mais uma das milhares de pessoas com 60 anos ou mais em inadimplência. O descontrole das contas da idosa começou há alguns anos, quando fez dois empréstimos para ajudar os filhos. Além desses passivos, ela empilha diversos consignados que comem o benefício mensal. Com isso, enfrenta dificuldades para usar o que sobra do salário para comprar remédios, garantir necessidades básicas e pagamento de impostos, água e luz.
— Muitas coisas não consigo comprar. Tenho contas nas lojas que não paguei mais. Não tenho condições de pagar — diz Nesia.
Luiz Rabi, economista da Serasa, afirma que o aumento da inadimplência eleva o risco de crédito, que acaba travando o crescimento econômico do país:
— Como a inadimplência é custo para quem concede crédito, todo o crédito acaba ficando mais caro, seja para os idosos, seja para qualquer faixa etária. Consequentemente, isso significa menos vendas, produção e emprego.
O ingresso de recursos como a antecipação do 13º salário e a restituição do Imposto de Renda são movimentos que podem mitigar a situação desse grupo de pessoas, segundo o economista.