Setembro de 2023 dificilmente sairá da memória da agricultora Roselaine Knorst, 52 anos. E ficará marcado como o primeiro mês de uma vida de três décadas dedicadas à agricultura em que ela e a família não puderam produzir. Não plantaram nem colheram nada da terra, porque a chuva não permitiu. O relato é uma realidade entre produtores e se soma a um punhado de outros casos em que a fúria da natureza se impôs em eventos extremos sentidos no Brasil e no mundo nos últimos anos.
Os impactos de um total desequilíbrio da normalidade climática, num primeiro momento sempre associados à agricultura, no entanto, ultrapassam os limites do campo e afetam a economia por inteiro. Relatórios do Banco Mundial estimam perdas de 2,2% no crescimento econômico global de 2022 a 2030, período que já leva a dolorosa alcunha de “década perdida” pela instituição.
No Brasil, o Banco Central, maior autoridade econômica do país, voltou a mencionar em seu último relatório trimestral, divulgado em setembro, os alertas para os reflexos das mudanças climáticas na economia. No documento, a instituição citava que os efeitos podem impactar, sobretudo, o custo dos alimentos e até a distribuição deles, revertendo a atual tendência de queda nos preços.
“Existe incerteza relevante em relação à magnitude e ao momento desses impactos, que, no curto prazo, tendem se manifestar em preços mais elevados de produtos in natura, sensíveis a temperaturas mais altas e chuvas mais intensas e irregulares”, diz trecho do relatório.
O tema tem sido cada vez mais discutido por grandes bancos e instituições de pesquisa, à medida que os eventos climáticos se tornam mais frequentes e intensos. Além das mudanças em curso devido ao aquecimento do planeta, incluem-se os fenômenos naturais já esperados, mas que ganharam maior severidade nos últimos anos, como o El Niño e o La Niña.
No Sul do Brasil, enquanto enchentes varrem importantes regiões produtoras, como o Vale do Taquari, devastado pelo último ciclone que atingiu o Rio Grande do Sul, no Norte do país, é a falta de chuva que leva a secas históricas e a perdas ainda incalculáveis. Ou seja, além do agravamento das condições do clima, há o seu impacto de maneira distinta em cada localidade, acentuando desigualdades regionais.
O setor agropecuário se destaca como um dos mais sensíveis a estes efeitos. Mas não só ele. Os impactos em transporte, energia, infraestrutura, saúde e até no mercado de seguros são cada vez mais citados pelos especialistas.
O programa Adapta Brasil do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), que visa preparar a economia brasileira para o novo cenário climático, elenca seis importantes grupos de impacto. As diretrizes de enfrentamento consideram a conexão entre clima e economia, conforme Annelise Vendramini, coordenadora do programa Finanças Sustentáveis do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV. São elas:
- Recursos hídricos: impactos nas cadeias de valor altamente dependentes de água;
- Segurança alimentar: alterações na produção e na logística de disponibilização de alimentos;
- Segurança energética: garantia de abastecimento hidrelétrico;
- Saúde: preocupação com o impacto das altas temperaturas e da umidade na saúde da população, bem como o aumento de doenças;
- Infraestrutura portuária: aumento do nível do mar e efeitos nas cadeias de fornecimento e transporte;
- Desastres geo-hidrológicos: impactos de alagamentos, enxurradas, inundações, deslizamento de terra.
Temos alguns estudos já quase vencidos, que apenas considerando a modificação de temperatura e de chuva já estimavam que perderíamos até 2% do PIB em 35 anos. Mas, isso, naquele cenário.
EDSON DOMINGUES
Coordenador do Núcleo de Estudos em Modelagem Econômica e Ambiental Aplicada da UFMG
Todas essas variáveis repercutem sobre o Produto Interno Bruto (PIB), que é o indicador que mede a atividade econômica de determinado município, estado ou país. Em locais onde a situação esteja degradada em alguns desses pontos, torna-se muito difícil para que os negócios prosperem, destaca a pesquisadora da FGV. Isso afeta a produção de bens e a prestação de serviços, encolhendo a atividade econômica.
Há pelo menos 30 anos, os impactos do aumento da temperatura e da variabilidade das chuvas vêm sendo incluídos nos cálculos de PIB, explica Edson Domingues, coordenador do Núcleo de Estudos em Modelagem Econômica e Ambiental Aplicada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mas a ocorrência e o agravamento dos eventos climáticos têm exigido novas metodologias. Há todo um custo adicional de juros, crédito, seguros e custo público que precisa ser considerado.
— Temos alguns estudos já quase vencidos, que apenas considerando a modificação de temperatura e de chuva já estimavam que perderíamos até 2% do PIB em 35 anos. Mas, isso, naquele cenário. Se atualizarmos para agora, provavelmente teremos um impacto muito maior pelos novos eventos. É o que está em estudo — diz o professor.
No Vale do Taquari, por exemplo, a estimativa é de que a destruição pela enchente de setembro tenha deixado perdas de mais de R$ 1 bilhão nas cadeias produtivas dos quase 80 municípios atingidos. Prejuízo que se refletirá no desempenho do PIB do Rio Grande do Sul nos próximos trimestres, dada a relevância da região para a economia gaúcha.
Campo passa por momento de adequação
Na agropecuária, onde os efeitos do clima são mais intensos, as mudanças têm exigido alternativas dos produtores. O setor representa cerca de 10% do PIB do Rio Grande do Sul. Mas quando considerados os setores correlacionados, a participação sobe para 40% no Estado.
Na propriedade de Roselaine Knorst, em Santa Maria do Herval, as dificuldades têm se arrastado desde as últimas três estiagens que afetaram o Estado. Os problemas para plantar e colher se agravaram com a sequência de ciclones e chuvas volumosas que marcaram o inverno e dão o tom da primavera. Quase nada do que foi semeado nas lavouras de milho, batata, aipim, feijão e batata doce vingou e precisará ser replantado quando o tempo firmar.
A saída para sobreviver foi voltar a propriedade da família para o turismo rural. Distante cerca de 90 quilômetros de Porto Alegre, o espaço chamado Kholonii Plats (“lugar da colônia”, em tradução livre do dialeto alemão) recebe grupos de até 20 pessoas para dias de passeio, contato com os animais e café colonial. Tudo é preparado pela família, com apoio do esposo, Mario, e da filha de Roselaine, Ana Júlia.
O turismo virou alternativa de renda diante das perdas. Os percalços se acentuam pelo terreno desnivelado da propriedade, que dificulta a produção em maior escala. Quase tudo o que é plantado fica para consumo próprio da família e dos animais, e o restante vai para venda.
— É uma alternativa para entrar um pouco de dinheiro. Até para pagar as contas, porque tem que ser comprado insumos, adubo, sementes para plantar. Até o trator temos que pegar para tratar a terra — diz Roselaine, que apesar das dificuldades, não pensa em desistir da atividade.