Enquanto os planos do governo federal de voltar com o carro popular não avançam e enfrentam o ceticismo da indústria, o mercado de automóveis lida com a dificuldade de recuperar mercados depois de desajustes na cadeia em razão da pandemia. Os números mostram que as vendas neste primeiro quadrimestre do ano, no país e no Rio Grande do Sul, estão pouco acima das registradas no mesmo período do ano passado, quando a falta de semicondutores acentuava uma das piores crises do setor.
No Rio Grande do Sul, conforme o Sincodiv-RS/Fenabrave, que representa concessionárias e distribuidoras, as vendas de automóveis e comerciais leves subiram 21,12% em relação a abril do ano passado, somando 7.610 unidades (5.755 só de autos). Mas abriram um alerta na comparação mensal: frente a março, contabilizaram retração de 17,83% no segmento. Um dos motivos apontados é que abril teve menos dias úteis devido aos feriados, derrubando o movimento nas lojas.
O dado de alento vem do acumulado do ano. Entre janeiro e abril, os números deste segmento são positivos em 19,21% na comparação com o mesmo período de 2022, embora ainda fiquem abaixo nas comparações com anos anteriores. No primeiro quadrimestre do ano, foram 29,4 mil autos e comerciais leves vendidos nas concessionárias gaúchas — em 2019, antes da pandemia, foram 44,1 mil unidades. Há uma década, o total de unidades vendidas no período era de 71,8 mil unidades, quase 60% superior aos dados de hoje.
Apesar das oscilações, a avaliação do Sincodiv é de que o mercado vem se estabilizando no Rio Grande do Sul. O Estado é o sétimo do país em número de emplacamento de carros novos — isso depois de perder a quinta posição em 2019 e se encaminhar para o oitavo lugar do ranking.
Conforme o presidente da entidade, Paulo Siqueira, os distribuidores esperam, em 2023, ao menos "empatar" com o ano passado. O setor aguarda o desempenho dos próximos meses, sem o impacto pontual dos feriados, para avaliar possíveis adequações.
— As perspectivas apontam uma performance muito parecida com 2022. O mês de abril foi marcado por um momento de muitos feriados, e por isso apresentou decréscimo, mas tem aumento em relação ao ano passado. Maio é mês mais cheio, deve ser mais regular. A partir dos resultados dele, poderemos estabelecer uma tendência mais acertada — diz Siqueira.
Seminovos voltam a ser competitivos
As movimentações de mercado são sentidas também nos seminovos, que absorveram grande demanda durante a falta de veículos zero quilômetro no auge da crise dos semicondutores. A Federação Nacional das Associações dos Revendedores de Veículos Automotores (Fenauto) contabiliza que a venda de autos usados e seminovos caiu 14,5% de março para abril no Rio Grande do Sul. Mas subiu 16,6% na comparação com abril do ano passado.
Presidente da Associação dos Revendedores de Veículos Automotores do RS (Agenciauto/Fenauto-RS), Rodrigo Dotto diz que o mercado de seminovos segue aquecido pela oportunidade de consumo. Se durante a falta de carros zero o usado valorizava de preço, hoje, com os estoques dos novos garantidos, o usado voltou a ter preços mais atrativos. O dirigente cita quedas de 5% a 10% no valor de alguns modelos.
— No cenário de hoje, temos carros novos à vontade, mas a uma taxa de juros mais elevada, a um preço elevado e para um consumidor mais conservador. Quem dá valor ao dinheiro acaba pensando um pouco mais — diz Dotto.
O pé no freio vem desde o início da cadeia, com menor produção nas fábricas. Em abril, a paralisação em nove das principais plantas fabris do país fez com que a produção de veículos despencasse 19,4% em relação a março, somando 178,9 mil unidades, conforme a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Foi o menor nível para o mês desde 2020. Frente a abril de 2022, o recuo foi de 3,9%.
Em 2022, a falta de peças era o maior entrave na indústria. Este ano, o impacto é pela queda nas vendas. As paralisações nas linhas evitam que os produtos fiquem estocados nos pátios das montadoras devido à retração da demanda.
Em abril, a Anfavea apontou queda de 19,2% nos emplacamentos em relação a março, para 160,7 mil unidades. Já sobre abril de 2022, indicou acréscimo de 9,2%, em parte explicado por uma demanda que estava reprimida nas locadoras.
Cenário nacional imprime dificuldades
Tanto a indústria automotiva quanto as revendedoras associam os resultados fracos ao ambiente de juros elevados no país. Segundo as entidades, a dificuldade para financiar trava a procura por veículos novos e freia o consumo neste segmento.
— O mercado automotivo no Brasil pós pandemia ainda busca o ponto de equilíbrio entre produção e venda. Hoje, que a oferta de carros está regularizada, temos um momento em que as taxas de juros não garantem o melhor desenvolvimento do mercado, além de estarem muito mais restritivas. Tanto a indústria quanto o varejo conseguiram dar maior eficiência na distribuição, mas o cenário brasileiro tem imposto dificuldades — diz Paulo Siqueira, presidente do Sincodiv-RS/Fenabrave.
Nas lojas, o fluxo reduziu consideravelmente, relata o gerente geral da rede San Marino, Vilson Caldas, principalmente a partir do mês de abril, quando a procura pelo automóvel exposto nas concessionárias perdeu mais força. Até novembro do ano passado, diz ele, o grupo de concessionárias colheu bons resultados nas quatro lojas que ficam em Porto Alegre e na Região Metropolitana.
— Estamos sentindo na ponta um reflexo geral da economia. Não só a taxa de juro elevada, mas a própria restrição ao crédito. O banco tirou o pé — diz Caldas.
A análise em relação ao crédito é compartilhada pelo presidente Anfavea:
— A base histórica mostra que juros altos, mercado baixo. É uma equação que não tem mistério. Todo o esforço que temos feito para o crescimento do mercado não vai acontecer se não houver redução da taxa de juros — disse Márcio Leite na última apresentação de dados da entidade.
Carro popular
Os modelos novos mais baratos em venda hoje no país custam próximo de R$ 70 mil, o que dificulta a compra sem financiamento. Com o plano de voltar com o carro popular, especula-se que a proposta do governo federal é oferecer modelos mais simples a valores entre R$ 45 e R$ 50 mil.
A indústria, no entanto, vê entraves para se chegar a este valor. Além da alta tributação, o setor discute que a necessidade de alterar os modelos fabricados hoje, muito mais tecnológicos, torna quase irreal tirar do papel a ideia do novo carro popular.
— Se pegássemos o preço de lançamento do carro popular na época do Itamar Franco, trazendo para a realidade de hoje, esse carro custaria R$ 80 mil. Sem air bag, sem ABS, sem os itens de segurança e sem conectividade, certamente custaria mais caro trazendo apenas pela inflação. De qualquer forma, o Brasil precisa encontrar um equilíbrio porque há perda de renda com o passar dos anos e nós precisamos voltar a esse mercado crescente — afirma o presidente da Anfavea.
Paulo Siqueira, do Sincodiv-RS, acrescenta que a evolução dos veículos ao longo das últimas décadas chegou a resultar na retirada de alguns modelos do mercado. Seja por força do avanço tecnológico, seja pela legislação que obriga que os carros tenham determinados componentes de segurança e sejam menos poluentes.
— Um automóvel aos moldes do que se tinha antes é quase impraticável. A maior parte do consumidor nem gostaria de regredir em modelos disponíveis. Dificilmente teremos um carro genuinamente popular que seja acessível — diz Siqueira.