Dois meses após a sua instalação no Congresso, em fevereiro, o grupo de trabalho (GT) criado para formatar o texto-base para a reforma tributária tem realizado uma série de reuniões, debates e audiências. Nesse percurso, alguns pontos tidos como imutáveis no começo das discussões já não estão mais tão intocados.
Entre eles, está, justamente, aquela que é a zona de maior confluência entre as duas principais propostas de emenda à Constituição (PECs), a 45 e a 110, ambas de 2019, em análise para embasar a nova proposta. Trata-se da implantação de um imposto sobre bens e serviços (IBS), capaz de reunir um coquetel de tributos, hoje segregados em esferas federal, estatual e municipal, em uma cobrança única.
Também conhecido como IVA (imposto sobre valor agregado), em referência ao modelo usado em muitos países do continente europeu, a taxa representava um dos trunfos do governo federal para simplificar a complexidade do atual sistema tributário nacional. Mas, com o passar dos dias, se tornou campo para o conflito de interesses na Câmara dos Deputados, nesta que é uma das grandes apostas da equipe econômica do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o primeiro ano de mandato.
Advogado tributarista, consultor de entidades empresariais gaúchas e coordenador do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), Rafael Pandolfo destaca que a atuação do GT expôs as resistências setoriais e de entes da federação quanto à implantação do IBS sobre bens e serviços de maneira generalizada. Algumas manifestações recentes são cruciais para entender as novas linhas adotadas pelo GT.
A principal ganhou força no início deste mês, após evento do Bradesco, em São Paulo, quando um dos diretores da Secretaria Especial de Reforma Tributária do Ministério da Fazenda considerou haver espaço de convivência entre uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal (que unificaria apenas PIS e Cofins), e o IBS, de caráter subnacional, em substituição ao ICMS (estadual) e o ISS (municipal).
De certa forma, essa medida se aproximaria do que está previsto pela PEC 46/2022, defendida pela Frente Nacional do Prefeitos (FNP) e lideranças de capitais, dentre as quais, Porto Alegre, São Paulo e Rio de janeiro. Até então, essa proposta em específico tinha pouco trânsito nas pretensões do governo federal, que conta com a figura do economista Bernard Appy, secretário extraordinário da Reforma, o nome de interlocução no Congresso, e também autor e maior entusiasta da PEC 45.
Pandolfo explica que os textos em avalição (110 e 45) contemplam períodos de transição de, no mínimo, dez anos. A opção por um imposto dual (de competência da união e dos entes federados), acrescenta ele, amenizaria a reação de municípios que já se mostraram receosos, sobretudo, com a perda de competência sobre a arrecadação e destinação do ISS.
Além disso, a CBS (para unificar os tributos federais) poderia, segundo as informações que surgiram no mesmo encontro do Bradesco, ser implementada a partir de 2025, enquanto o IBS vigoraria somente em 2027 — nesse caso, sim, com uma regra de transição.
Prós e contras em debate
Conforme uma das correntes envolvidas nas discussões, a adoção do IBS para todos os tributos pretendidos (federais, estaduais e municipais) simplificaria o modelo vigente, a fiscalização e aumentaria a possibilidade de antever os cálculos dos tributários nas empresas. Em razão disso, a estimativa é de que haja benefícios para a produtividade, consumo e aquecimento do mercado de trabalho.
Em outra vertente, a concentração da arrecadação do IBS nos cofres da União retiraria autonomia das prefeituras e governos estaduais, que teriam de contar, a partir de então, com os repasses federais. Isso ocorreria porque os recursos do ISS e do ICMS não iriam direto para os caixas dos entes federados, como acontece hoje em dia. Nesse ponto, a CBS retiraria as cobranças federais deste mesmo pote e ganharia pontos entre os gestores públicos.
— Me parece que caminhamos para isso, o que acabaria com as reinvindicações dos municípios, em linha com o que defende a FNP, mas é preciso aguardar o esboço do texto — comenta Pandolfo, ao lembrar que em qualquer dos cenários atuais a previsão é de um regime de transição longo, durante o qual o já complexo sistema tributário nacional ganharia ainda mais dificuldades e imprevisibilidade.
Setores temem elevação da carga tributária
Conforme o vice-presidente jurídico da Federasul e professor de Direito Tributário e Prática Fiscal da PUCRS, Milton Terra Machado, ainda pesam sobre a adoção de um imposto único sem distinção entre União, Estados e municípios como base da reforma, as possibilidades de elevação da carga tributária setorial, sobretudo, para os serviços. Em síntese, nos moldes do que se conhece até aqui dos textos, esse segmento poderia ter a carga ampliada, sustenta ele.
Machado lembra que o mesmo ocorreria em algumas sociedades que envolvem as profissões regulamentadas. É o caso de consultórios médicos, escritórios de direito e contabilidade, por exemplo, que hoje recolhem somente o ISS e seriam reonerados em eventual prevalência da opção pelo imposto único.
— Alega-se que essa reforma, pretendida com base nas PECs 110 e 45, é neutra, mas isso não é verdade. Salvo se houvesse desoneração enorme na indústria, ela sequer seria neutra sobre a carga tributária total. Sem comentar que a ideia é, ao menos, reduzir a complexidade, o que não aconteceria, porque teríamos a convivência de dois modelos tributários por uma década, o que faria exatamente o oposto. Ou seja, no final das contas existiria uma substituição de complexidades — critica, ao defender que a PEC 46, também conhecida por “Simplifica Já”, ganhe mais espaço neste processo.
Segundo ele, a PEC é menos audaciosa, mas trabalha mais com o “mundo real” e com o que é “factível fazer”. A declaração do dirigente é tema recorrente de manifestações da equipe econômica que refutam elevação de carga tributária e ampliação da complexidade.
Há sobre a questão vários estudos de institutos de pesquisa, universidades, entidades e federações setoriais com diagnósticos e projeções conflitantes. Diante do quadro, a apresentação de um esboço dos pontos consensuais, por parte do relator do GT da Reforma Tributária, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), nesta terça-feira (11), chegou a estar estre as expectativas. O gabinete do deputado, entretanto, nega a divulgação de esboços antes do dia 16 de maio, data fixada para desvendar a primeira versão do relatório que está em fase de elaboração.
As propostas sobre a mesa
PEC 45/2019
- Unifica cinco impostos (IPI, PIS, COFINS, ICMS e ISS) para criar o Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS).
- O novo imposto seria uniforme, com alíquota única referencial, porém com a manutenção da autonomia de Estados e municípios para fixar alíquotas próprias (sub-alíquota).
- Seria priorizado o recolhimento para os Estados e municípios de destino, ao contrário de hoje quando a arrecadação fica na origem.
- Isso beneficiaria as Unidades da Federação menos desenvolvidos, aumentaria a arrecadação em algumas cidades e redução em outras.
PEC 110/2019
- Unifica nove impostos (ICMS, IPI, IOF ISS, PIS, Cofins, CSLL, Cide combustíveis e Salário Educação) para criar o Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS).
- Cria alíquota padrão do IBS e permite a instituição de outras diferenciadas por produto/setor econômico. Essas alíquotas, entretanto, deverão ser uniformes em todo o território nacional.
- Desloca parte da tributação sobre o consumo para a renda, para equilibrar a distribuição (em média 37% sobre a renda e 25% sobre o consumo) conforme modelo de países da OCDE.
- Ao contrário da PEC 45, permite a concessão de benefícios fiscais para vários produtos e serviços. Entre eles: alimentos, medicamentos, transporte público, saneamento básico, educação infantil, ensino fundamental, médio, superior e profissional.
PEC 46/2022
- Unifica as Leis Estaduais (exceto alíquotas) dos 27 Estados por lei complementar e institui um Comitê Gestor Nacional do ICMS para unificação da legislação por Resolução.
- Unifica a integração e a governança do Sistema de Nota Fiscal Eletrônica
- Unifica as Leis Municipais de ISS (exceto alíquotas) vigentes nos municípios brasileiros e cria Comitê Gestor Nacional do ISS para unificação da legislação por Resolução.
- Unifica a integração e Governança do Sistema de NF de Serviços Eletrônica Nacional, sem aumento de Carga Tributária e com a manutenção do equilíbrio Federativo.
Dúvidas e expectativas
- Imposto cumulativo ou não cumulativo?
A ideia é que o IBS, assim com o IVA europeu, constitua-se em um tributo não cumulativo, ou seja, que seja calculado para ser pago de uma vez só na trajetória das mercadorias e serviços. Economistas consultados por GZH apontam que o IBS tanto da PEC 45 quanto da 110 não-cumulativo, que é a principal característica dos Impostos sobre Valor Agregado, trariam unificação, mas criam sistema bastante complexo na prática. - Princípio do destino
É uma tendência de adaptação do modelo usado pela maioria dos países. A ideia é que a incidência e a arrecadação fiquem no local para onde a mercadoria foi enviada ou em que se verifica o consumo. Ou seja, o tributo ficaria onde o cidadão efetivamente contribuiu (pagou) pelos bens e serviços. A medida poderia beneficiar as menores arrecadações municipais e prejudicar as maiores. - Carga extra para os serviços
Há dúvidas sobre a possibilidade de manutenção da atual carga tributária sobre os serviços. Cálculos divergentes apontam que o atual percentual, em razão de eventual incidência federal, poderia subir, em média, dos atuais 4,5% até 25%, caso fosse implantado o imposto único. Esse argumento reforça a opção por uma tributação dual, uma vez que o segmento é intensivo em mão de obra e responde por cerca de 74% do PIB. Por isso, o setor se aproxima das propostas da PEC 46. - Benefícios para a indústria
Um dos pontos divergentes entre as PECs 45 e 110 é a possibilidade de conceder incentivos fiscais. A primeira é considerada mais radical e a segunda flexibiliza alguns pontos. Na contramão dos serviços, a Indústria poderia ser beneficiada com regimes de tributação diferenciados e a meta do segmento é voltar a ter quase um terço de participação no PIB, atualmente em 20%. Pela flexibilidade, o setor se aproxima da PEC 110. - Descolamento de cobranças ao agronegócio
No setor primário, considerado a locomotiva da atividade econômica, entidades do setor apontam que com as PECs 45 e 110 haveria um deslocamento da incidência no caso de implantação do IBS. Essa movimentação poderia ser mais prejudicial aos pequenos produtores. Por essas razões, o setor se afasta das PECs 45 e 110. - Reforma ou novo ajuste
Com base nos questionamentos, economistas consultados indicam dificuldades de operação “no mundo real”, que ensejaria possíveis exceções ou ajustes. A justificativa seria o “substancial aumento” da carga de um lado para os setores e a perda de arrecadação e autonomia de municípios e Estados.