Depois da onda de calor que castigou o Estado em janeiro, veio o susto. Na casa da diarista Marli Barbosa Camargo, a conta de luz, que girava na média de R$ 130, aumentou 60%, para R$ 208. O consumo na residência de cinco cômodos onde vive com o marido e o filho, com dois quartos, uma geladeira, um chuveiro e um ar-condicionado, em São Borja, também sofreu elevação. Mas em menor escala, de apenas 20,5%, passando de 141 para 170 quilowatts/hora (kw/h) por dia, entre dezembro e a última medição.
O resultado da equação: mais um mês de ajustes no bolso para arcar com a despesa. E não é de hoje que a tarifa de energia elétrica provoca sobressaltos no orçamento familiar. Ao longo do ano passado, foi preciso frear o consumo de outros itens, como roupas e até mesmo de alguns alimentos, também impactados pela inflação.
— Não se pode ficar sem luz, e aí temos que cortar em outras coisas, mas elas também estão um absurdo de caras e só sobem. A situação não está nada fácil — pontua.
Essa tem sido a realidade de pelo menos 22% dos brasileiros, que relataram optar por quitar a tarifa de energia em vez de consumir alguns gêneros alimentícios, ou de 40% que deixaram de comprar peças de vestuário e eletroeletrônicos pelo mesmo motivo. É o que revela uma pesquisa do Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec), encomendada pelo Instituto Clima e Sociedade (iCS).
No Sul, a amostragem é menor e menos alarmante, mas já atinge 13% dos residentes no três Estados (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), que indicam dificuldade para pagar a fatura e adquirir a própria comida. Por outro lado, comenta Patrícia Pavanelli, diretora de Inteligência e Insights do Ipec, a região concentra o mais baixo percentual entre as pessoas que adotaram medidas de contenção como, por exemplo, reduzir a compra de produtos de limpeza ou pagar o aluguel, condomínio e prestação da casa própria.
— No Norte e no Nordeste, essa relação é mais acentuada. No país, três pessoas, em cada 10, não pratica essas ações. No Sul, a proporção sobe para quatro em cada 10. Provavelmente passe por diferenças econômicas entre as regiões — analisa.
Explicações
Para o coordenador sênior do portfólio de Energia do iCS, Roberto Kishinami, também formado em Física pela USP, as razões são mais do que evidentes. Ele lembra que, nos três últimos anos, até outubro de 2021, a inflação havia aumentado 18%, enquanto a tarifa de energia subiu praticamente o dobro: 35%.
E isso, comenta o especialista, sem contabilizar o peso das bandeiras tarifárias e o efeito futuro do modelo de enfrentamento à crise hídrica (acionamento de termelétricas), segundo ele, com repasses protelados em função do ano eleitoral.
— O último empréstimo para as distribuidoras, ainda a ser tomado e num valor estimado de até R$ 18 bilhões, por exemplo, só começará a cair na conta de luz de novembro, ou seja, depois da eleição — recorda.
Diante do cenário, o consultor do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Clauber Leite, acrescenta que uma análise complementar da pesquisa aponta que 39,4% das famílias de baixa renda do país atrasaram a conta por pelo menos um mês no ano passado. Trata-se do maior índice da série histórica disponível no site da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), desde 2012.
Leita afirma que esse panorama se aplica, inclusive, aos 12,4 milhões de brasileiros que contam com a tarifa social de energia elétrica (TSEE) – benefício que concede descontos de até 65% às famílias de menor poder aquisitivo. Desde janeiro, a aplicação do programa passou a ser automática para os inscritos no Cadastro Único do governo federal.
A previsão inicial era dobrar a quantidade de pessoas atendidas no Brasil, entretanto, a Aneel ainda não apresentou os dados atualizados. No Rio Grande do Sul, por exemplo, a estimativa oficial era de 283 mil novas inclusões, aumento de 84,1% sobre os atuais 336,4 mil beneficiários gaúchos.
Famílias gaúchas com a tarifa subsidiada aumentam 128,8% em três anos
No Rio Grande do Sul, até novembro, o último mês disponível para consulta no site da Aneel, das 4,2 milhões de residências com instalação elétrica no Estado, 336,4 mil, ou 7,83% do total, possuíam a tarifa social. Isso equivale a uma diferença de R$ 8,78 milhões mensais em subsídios concedidos ao setor.
Para se ter uma ideia, no mesmo mês, há três anos, por aqui, eram somente 147 mil benefícios. Significa que, entre 2019 e 2021, houve um salto de 128,8% no número de gaúchos de baixa renda com acesso à cobrança diferenciada.
Uma alternativa seria a tarifa progressiva, em que aqueles com maior capacidade pagassem mais e os de menor possibilidade, menos
CLAUBER LEITE
Consultor do Idec
O acréscimo de 189,4 mil famílias ao programa trouxe efeito inverso para os índices de inadimplência apurados pelas duas concessionárias que atuam no Estado. Em igual período, a redução foi de 26,75% na soma de cortes e suspensões de fornecimento por falta de pagamento divulgados por CEEE e RGE à Aneel – de 950,2 mil, em 2019, para 696 mil, em 2021.
O consultor do Idec, Clauber Leite, alerta que esse tipo de política pública, ainda que importante, já não é suficiente para a realidade brasileira. Segundo ele, são muitos recursos concedidos em subsídio para dificuldades cada vez maiores aos contemplados.
— É necessário rever a fórmula de incentivo e pensar em outras maneiras de transferir renda nos programas de apoio. Uma alternativa seria a tarifa progressiva, em que aqueles com maior capacidade pagassem mais e os de menor possibilidade, menos — sugere.
Tributos
De acordo com Leite, antes de tudo, é indicado reconhecer a energia elétrica como um direito necessário à sobrevivência. E, desta forma, argumenta o especialista, gerar outros mecanismos de isenção ancorados na renda familiar.
Nos mais ricos, a conta, mesmo subindo mais do que a inflação, não compromete a renda familiar. Nos mais pobres, significa ter de deixar de comer
ROBERTO KISHINAMI
Coordenador sênior do portfólio de Energia do iCS
— Precisamos entender o conceito para criar políticas mais eficientes. É contraditório, porque 40% da tarifa é composta pelos encargos, e isso incide sobre todos os consumidores, inclusive os beneficiários. Em outras palavras, mesmo os enquadrados na tarifa social pagam pelo tributo, o que não tem a menor lógica — lamenta.
Para o coordenador sênior do portfólio de Energia do iCS, Roberto Kishinami, a situação é ainda pior, porque o aumento recorde no peso da conta de luz acontece no exato momento em que o país parou de crescer e o desemprego aumentou. Nesse quadro, explica, a população não conseguirá sair da situação de inadimplência.
— É uma bola de neve. Quando analisamos os componentes da tarifa, como custos de transmissão, distribuição e encargos, percebemos que o preço unitário em reais por kw/h é o mesmo para mil ou para cem kw/h. Nos mais ricos, a conta, mesmo subindo mais do que a inflação, não compromete a renda familiar. Nos mais pobres, significa ter de deixar de comer. É urgente o debate sobre a tarifa progressiva, sem cair no velho populismo — sustenta.