Quando as principais autoridades em saúde animal do planeta se reunirem em Paris, em 27 de maio, para conceder ao Rio Grande do Sul o status de zona livre de febre aftosa sem vacinação, a 10.275 quilômetros de distância da capital francesa o produtor rural Tranquínio Menegassi pretende tirar da caixa o Todeschini rubro de 120 baixos e entoar no acordeom uma canção em homenagem a Cola Branca, Bonito, Parecido, Carvão, Salino e Gaúcho. O sexteto formava três juntas de bois mantidas na propriedade da família em Joia, no noroeste do Estado, e foi abatido a tiros numa manhã de 2000. Em seis meses de matança, o emprego inédito do rifle sanitário no país levou à cova 11.067 animais, muitos deles chamados pelo nome, como os de Menegassi, o primeiro morador da região a suspeitar que boa coisa não era aquela baba com casca de ferida que pendia da boca das vacas.
Vinte e um anos depois do trauma de Joia, o reconhecimento internacional representa a maior conquista da pecuária gaúcha. A implementação de um sistema eficaz de defesa animal, com vigilância das propriedades, controle no trânsito dos rebanhos, rastreamento e testagem permitiu a dispensa de vacina, abrindo porteiras a mercados até então inexpugnáveis, como Japão, Coreia do Sul, EUA, Canadá e México. Nas estimativas mais otimistas, especialistas apontam um potencial ao longo prazo de US$ 1,2 bilhão ao ano em novos negócios. Somente na exportações de carne suína, a projeção é de um incremento imediato anual de US$ 168 milhões.
– Foi uma caminhada longa, um trabalho intenso das autoridades sanitárias e do setor produtivo. Essa condição é o maior referencial sanitário que uma região pode obter e nos coloca num novo patamar, sob olhar atendo de mercados muito cobiçados – afirma Rogério Kerber, presidente do Fundo de Desenvolvimento e Defesa Sanitária Animal (Fundesa) e diretor-executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Suínos do Estado.
O norte inspirador é Santa Catarina. Único ente brasileiro reconhecido pela Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) como livre de aftosa sem vacinação, o Estado se tornou o maior produtor de suínos do país. Um ano antes do selo da OIE, em 2006 os catarinenses exportaram 184 mil toneladas de carne suína, arrecadando US$ 310 milhões. Em 2019, o embarque saltou para 461,6 mil toneladas, com uma receita de US$ 867,5 milhões. São cifras inconcebíveis para Menegassi, que em 2000 recebeu R$ 12 mil de indenização pelos pouco mais de 40 animais sacrificados.
– Eu quebrei. Sem meus porcos e minhas vacas, não tinha nem carne para comer, era só queijo e galinha. Abria o congelador e vinha aquele bafo gelado do vazio – lembra.
Espalhando prejuízo no Brasil desde 1895, a aftosa é causada por um vírus que permanece vivo mesmo depois de morto o hospedeiro. Transmissível pelo ar, por contato direto, pelo leite e por superfícies, como o chão de um caminhão boiadeiro ou as botas de um peão, atinge sobretudo animais de casco rachado, como bovinos, bubalinos, ovinos, suínos e caprinos. Os principais sintomas são febre alta, aftas e feridas nos cascos e úberes, o que limita a mobilidade e diminui a produção de leite. Nem sempre leva à morte, mas causa tristeza, perda de peso e inquietação.
Principal praga rural do fim do século passado, a aftosa ainda tinha um controle deficiente nos anos 1990, mas em 1998 Rio Grande do Sul e Santa Catarina foram considerados zona livre, porém com vacinação. Ambos eram signatários do Convênio da Bacia do Rio da Prata e haviam aderido, com Uruguai, Argentina, Bolívia, Paraguai e Chile, ao Plano Hemisférico de Erradicação da Febre Aftosa.
A despeito da fiscalização mambembe e da falta de transparência nos dados sanitários, o objetivo era livrar a América do Sul da doença até 2009. A vacinação foi interrompida em abril de 2000 nos dois Estados e havia uma onda de otimismo no ar. Confiando no hiato de sete anos sem novos casos, outdoors espalhados pelas estradas celebravam a suposta imunidade do território gaúcho. O Ministério da Agricultura já havia certificado tal condição e o governo aguardava para maio do ano seguinte a confirmação do status pela OIE. Aos poucos, o ufanismo cedeu lugar à angústia. Tudo começou na manhã de 29 de julho, quando Menegassi foi percorrer o gado numa área lindeira à sua propriedade, onde mantinha sete novilhas e um touro.
– Saí cedo para olhar os bichos e encontrei uma vaca babando, com ferida na língua. Chamei um amigo para conferir e depois veio um veterinário. Em três dias, todo o lote estava pesteado. Quando vi, tinha sete carros brancos na minha propriedade, os vizinhos assustados querendo saber o que tinha acontecido – lembra o produtor.
Aos 29 anos, o veterinário Fernando Groff atuava no posto da Secretaria da Agricultura em Horizontina, a 135 quilômetros de Joia. Groff estava em viagem quando surgiu a suspeita, mas o temor cresceu e ele foi enviado à cidade para coordenar a inspeção. Embora atuasse numa equipe de emergência concebida para dar resposta rápida a crises sanitárias, jamais tinha visto aftosa na vida.
– Tinha me formado cinco anos antes, e meu pai, também veterinário, disse que eu nunca veria aftosa. Daí tirei a mão da boca da vaca e saí com o epitélio inteiro, aquela pele que cobre a língua estava toda estendida na minha luva, parecia um tapete pendurado. A peste tinha voltado – conta Groff, atual chefe da Divisão de Defesa Sanitária Animal da secretaria.
Com os rumores da doença se espalhando, os dias se sucederam num ritmo caótico que atordoou os 8 mil moradores de Joia. As primeiras amostras enviadas para um laboratório de Recife testaram negativo para aftosa, mas no campo cada vez surgiam mais animais sintomáticos. Em frente ao único hotel do município, com apenas dois quartos, a todo momento estacionavam caminhonetes lotadas de forasteiros, trazendo agentes da Defesa Civil, da Vigilância Sanitária e da Brigada Militar (BM).
Numa tarde de agosto, o produtor Jaime Andreatta se preparava para ir à festa da comunidade de São Roque, o bucólico distrito que se tornara epicentro da contaminação, quando um amigo veterinário parou o carro e disse que “uma bomba” estava prestes a estourar.
Explosiva, a notícia chegou em 23 de agosto, com o Ministério da Agricultura dando contornos oficiais ao que corria à boca pequena na localidade. O comunicado confirmava quatro focos da doença, com 28 animais infectados. Oito municípios da região foram colocados em situação de emergência sanitária, com interdição de 1.719 propriedades e instalação de 47 postos de fiscalização e 29 barreiras para desinfecção de veículos e passageiros. O trânsito de animais e de produtos agropecuários foi proibido. Efetivado às vésperas da Expointer, o anúncio também deflagrou uma crise política, amplificando as divergências entre o então governador Olívio Dutra e o ministro da Agricultura, Marcus Vinícius Pratini de Moraes. Em meio a acusações mútuas de sabotagem e desleixo, veio a decisão de maior impacto: o imediato sacrifício de 216 bovinos e seis suínos. Em um hotel de Ijuí transformado em quartel-general da operação, Groff passou a estudar a melhor forma de efetuar os abates sem causar sofrimento aos animais.
Na ausência de um protocolo nacional para um tipo de sacrifício que jamais havia sido praticado no país, o veterinário precisava de um tiro certeiro, pouco acima da linha dos olhos, para causar morte instantânea, e no calibre adequado, para provocar pouca hemorragia. Primeiro foi testado o fuzil Mauser que a BM usava na época, mas a velocidade muito alta do disparo por vezes fazia o projétil 7.62 mm atravessar o animal sem matá-lo. A munição de melhor resposta foi a 22 Long Range, mas era escassa no país e não havia tempo para importação. Foram usadas 10 carabinas Puma da BM, com cartucho .38.
O primeiro lote com 21 porcos e bois foi abatido no início da noite de 25 de agosto e enterrado sob a pocilga da propriedade onde viviam. A dona dos animais, Rosa Della Flora, assistiu à cena pela janela de casa. Para evitar situação semelhante, os técnicos decidiram centralizar os sacrifícios em um só local, de preferência longe dos proprietários. A melhor opção foi a fazenda de Hermes Sangalli, cujos 300 hectares compunham a maior extensão de terras de São Roque. No alto de uma coxilha de solo sem pedras e longe do lençol freático, ao menos cinco retroescavadeiras cavaram valas gigantescas, onde 20 bois eram descarregados por vez. Do alto, uma linha de policiais fazia os disparos que ressoavam a uma distância de cinco quilômetros. Constatada a morte dos animais, uma lona preta era estendida e um novo lote desembarcava na cova.
Dono da Cabanha Aconchego, lindeira ao “cemitério”, Jaime Andreatta estava em casa quando recebeu o aviso de que seu gado seria embarcado no dia seguinte. De imediato repeliu o transporte. Após uma noite mal dormida, levantou antes do sol, fez a ordenha e saiu pastoreando as 28 vacas de leite e as 10 novilhas por 1,5 quilômetro até o local de abate. Dor mesmo ele sentiu depois, quando vieram buscar as cabritinhas.
– Chamavam-se Branquinha e a Negrinha, por causa da pelagem. Meu guri tinha quatro anos na época e era louco por elas. Ele mal apeava do ônibus vindo da escolinha e já saía a laçá-las. Quando parava, elas iam dentro de casa chamar ele pra brincar. Esse guri chorou por dias e ficou mais de um ano sem chegar perto do laço – conta Andreatta.
O combate ao flagelo de Joia se estendeu até fevereiro de 2001, ocasião em que a situação de emergência foi revogada. Ao cabo, 22 focos da doença em quatro municípios da região levaram à vala 8.185 bovinos, 772 ovinos, 2.106 suínos e quatro caprinos. Mesmo assim, autoridades sanitárias e lideranças da cadeia produtiva decidiram manter a vacinação suspensa, na esperança de uma breve recuperação. Em março, Groff recém havia voltado a dar expediente em Horizontina quando o pesadelo recomeçou, com cinco casos na Argentina. Num efeito dominó, em abril a peste chegou ao Uruguai e, em maio, a Santana do Livramento, na Fronteira Oeste. A doença logo se espalhou pela região, com registro de 30 focos em seis municípios. Sem alternativa, o governo retomou a vacinação.
Apesar de o surto da fronteira ter sido maior do que o de Joia, o episódio teve menor repercussão porque praticamente dispensou o rifle sanitário e gerou menos prejuízo. A maior parte dos 16.805 animais infectados foi abatida em frigoríficos, com o aproveitamento da carne. Isso não ocorreu em Joia porque a indústria mais próxima ficava a 75 quilômetros, em Tupanciretã.
– Se a gente colocasse os animais num caminhão e percorresse essa distância, ia espalhar focos por todo o caminho – explica Groff.
O surgimento de epidemias por dois anos consecutivos mostrou que era preciso reforçar o sistema de sanidade animal. Aos poucos, a Secretaria da Agricultura foi aperfeiçoando o monitoramento do rebanho. O inquérito sorológico passou a abarcar cerca de 10 mil animais a cada dois anos para averiguar a circulação viral. Em dezembro de 2006, a OIE atualizou as regras para certificação de zona livre de aftosa durante uma conferência em Florianópolis. A equipe gaúcha presente intuiu que a corrida começaria de novo e passou a acelerar os trabalhos. A pressão não tardou a crescer, com lideranças políticas e empresariais reivindicando a suspensão da vacina, sobretudo após Porto Alegre sediar em 2008 o 34º encontro da Comissão Sul-americana de Luta Contra a Febre Aftosa. Na primeira vez do evento no Brasil após 10 anos, faltou espaço para abrigar a plateia no salão do Hotel Embaixador.
Passo mais efetivo só foi tomado em 2017, quando o Ministério da Agricultura lançou plano estratégico para que todos os Estados pudessem dispensar o imunizante até 2026. O país foi dividido em ações regionais, e o Rio Grande do Sul ficou no bloco 5, junto a Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. O fato de grupo abrigar o único Estado certificado pela OIE e todos os membros restantes terem elevada produção pecuária fez os técnicos gaúchos pressentirem que o prazo final seria antecipado. Foi o que ocorreu em reunião do bloco no dia 29 de abril de 2019, em Curitiba.
– Ali o Paraná informou que suspenderia a vacinação para buscar o reconhecimento da OIE em dois anos. Sem condições de acompanhar esse ritmo, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul pediram para sair do bloco. Nós aceitamos o desafio – conta Rosane Collares, diretora do Departamento de Defesa Agropecuária da Secretaria Estadual da Agricultura.
A preocupação é repetir o passado. Demos um passo ousado. Claro que não temos mais aquela quantidade de animais transitando pelas estradas sem origem, o cenário melhorou.
GEDEÃO PEREIRA
Presidente da Farsul
A partir da decisão, os servidores passaram a calibrar o aparato técnico e logístico para permitir que a retirada da vacina não comprometesse um trabalho de duas décadas. De imediato, foi ampliado o rigor nas outras cinco pontas do sistema: vigilância, controle de trânsito, controle das propriedades, resposta rápida e diagnóstico. O resultado dos exames, que em 2000 demoraram três semanas e permitiram a disseminação do contágio, agora sai em dois dias. Além dos testes preventivos, todo ano a secretaria recebe em média 180 notificações de casos suspeitos.
– É bom ter casos suspeitos, porque se não houver desconfiança o sistema fica silencioso. Melhor ainda é saber que não se trata de aftosa, em geral são doenças vesiculares – diz Rosane.
Com o avanço do controle, em 14 de abril de 2020 foi encerrada aquela que foi concebida para ser a derradeira campanha de imunização dos 12,6 milhões de exemplares do rebanho gaúcho. Por determinação do Ministério da Agricultura, o Estado contratou 150 servidores administrativos, adquiriu 93 viaturas e está preparando concurso para 62 novos veterinários.
Mas a dispensa da vacina não foi unânime no Estado. O temor residia sobretudo nos produtores de gado, ainda receosos de uma recidiva. Divididas, as principais entidades decidiram submeter o tema à votação. Na Federação Brasileira das Associações de Criadores de Animais de Raça, foram 15 votos favoráveis e quatro contra. A trincheira de resistência estava no mais eloquente porta-voz do agronegócio gaúcho, a Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), onde o apoio à medida foi aprovado por 44 votos a 35.
– A preocupação é repetir o passado. Demos um passo ousado. Claro que não temos mais aquela quantidade de animais transitando pelas estradas sem origem, o cenário melhorou. Em 2001, tivemos sorte. Eu mesmo tive aftosa nos fundos de casa, numa propriedade uruguaia, e o meu gado não pegou graças à memória vacinal. O importante é termos um fundo vigoroso para socorrer o produtor caso o rifle sanitário volte a funcionar. O produtor é o principal guardião desse processo, tem de estar atento e com a segurança de que será restituído – diz o presidente da Farsul, Gedeão Pereira.
Estamos convencidos de que o Rio Grande do Sul está dando um passo seguro. Esses assuntos foram exaustivamente debatidos, o Estado, submetido a auditorias e toda a documentação foi avaliada pelos grupos técnicos da OIE. É natural que haja temor, mas na época havia pouca transparência e o sistema de defesa era incipiente
ROGÉRIO KERBER
Presidente da Fundesa
O setor tem hoje R$ 98 milhões para eventuais indenizações. A maior parte dos recursos, R$ 35 milhões, é destinada à suinocultura. Para os bovinos, estão reservados R$ 24 milhões. A cifra é considerada insuficiente por Gedeão, que reivindica R$ 100 milhões ou a contratação de um seguro. O dinheiro é gerido pelo Fundesa, a partir de uma contribuição dos produtores e da indústria sobre cada um dos 3,2 milhões de aves, 36 mil suínos e 9 mil bois abatidos por dia no Estado. Otimista, o presidente do Fundesa descarta o seguro.
– Estamos convencidos de que o Rio Grande do Sul está dando um passo seguro. Esses assuntos foram exaustivamente debatidos, o Estado, submetido a auditorias e toda a documentação foi avaliada pelos grupos técnicos da OIE. É natural que haja temor, mas na época havia pouca transparência e o sistema de defesa era incipiente – afirma Kerber.
Analistas do mercado apontam o novo status de zona livre sem vacina como um portal para acessar o chamado “circuito não aftósico”, composto por 70% dos países nos quais hoje a carne gaúcha é vetada, entre eles Filipinas, África do Sul e Chile. O ganho no preço pago ao produtor é estimado em até 30%. Só na suinocultura, a liberação da entrada de miúdos e carne com osso na China deve aumentar de imediato as exportações em 4 mil toneladas ao mês. O incremento de quase 15% nas vendas deve gerar uma receita mensal de US$ 14 milhões.
Em Joia, a vida segue pacata nas ruas de calçamento irregular e mais tranquila ainda na comunidade de São Roque. A tragédia deixou lições, com a maioria das propriedades atingidas pela aftosa diversificando a atividade sem abdicar da vocação. A produção leiteira de 28 mil litros ao dia, devastada pela doença em 2000, agora é de 72,5 mil litros diários. O cultivo de soja teve a área duplicada, passando para 80 mil hectares. Em 2020, a produção primária no município gerou R$ 455 milhões em vendas, valor 10 vezes superior ao orçamento da prefeitura.
– Resistimos o que pudemos em 2000. Era a nossa sobrevivência. Além do mais, cada animal tinha uma história, praticamente fazia parte da família. Mas passou e hoje essa nova situação é boa para todo mundo – festeja Andreatta.
Nos campos onde antes reinavam tristeza e medo agora há paz e prosperidade, refletidas no passeio que, aos 80 anos, Tranquínio Menegassi faz por uma das cinco propriedades nas quais triplicou o rebanho. Após lembrar os percalços vividos com aquela baba pestilenta, ele para sob a bergamoteira e manifesta uma preocupação singela, condizente com a serenidade transmitida pelo próprio nome:
– Escreve lá que eu sou o melhor gaiteiro de Joia.