Pessoas resgatadas em janeiro deste ano no Estado em situação equivalente ao trabalho escravo — sete ao todo — estavam nas mesmas condições encontradas em outras situações desde 2005: fome e problemas de saúde, sem higiene e sem acomodação adequada, em alguns casos, até sem pagamento. Segundo levantamento da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério da Economia, ocorreram 361 resgates, uma média de 22 casos por ano. O maior número de flagrantes envolveu o setor agropecuário.
Além deste levantamento, há outro do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho (MPT). Segundo os dados, a maioria dos casos envolve homens entre 18 e 24 anos com escolaridade até o 5º ano do Ensino Fundamental. Em todo o país, com dados desde 1995, já são cerca de 55 mil resgates.
Entre 18 e 28 de janeiro, em alusão à Semana Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, uma força-tarefa nacional flagrou 137 casos no Brasil, incluindo os sete registros no Rio Grande do Sul. Além disso, houve mais três casos no Estado em fevereiro com mais 27 pessoas de duas famílias— inclusive crianças — em Venâncio Aires, no Vale do Rio Pardo, em situação análoga à escravidão.
— Tirava água do poço e tomava banho em tanque. Situação crítica mesmo e roupa péssima, suja. Tenho 49 anos e nunca passei por isso — diz um dos quatro trabalhadores resgatados em janeiro na produção de carvão e na extração de eucalipto no Vale do Rio Pardo.
A vítima, um homem de 49 anos, pediu para não ter o nome divulgado.
Rio Grande do Sul
Os dados da superintendência são do período de 2005 e 2020, totalizando, no Rio Grande do Sul, 345 resgates, sendo outros 16 em janeiro e fevereiro deste ano. Além disso, 2012 foi o ano que mais registrou pessoas flagradas em situação equivalente à escravidão no Estado. Foram 59 casos, sendo 41 no cultivo de maçã. Em todo período analisado no Estado, o setor agropecuário é o que mais teve pessoas resgatadas, um total de 169 casos, representando 48,9% do total. Os cultivos que mais tiveram registros foram os de maçã, batata-inglesa e morango. Outros 22% das ocorrências, um total de 76 vítimas, atuavam no comércio em geral e mais 19,4%, ou seja, 67 pessoas, foram flagradas na extração de madeiras.
— Na força-tarefa em Venâncio Aires e Fontoura Xavier, por exemplo, encontramos situações muito precárias. Na primeira, havia quatro trabalhadores em locais sem energia elétrica, sem água encanada, tendo que usar um matagal para necessidades fisiológicas e com água com muita sujeira que era retirada de um poço. A comida azedava com bastante frequência e sem equipamentos de proteção. Na segunda cidade, assim como na primeira, sem carteira de trabalha assinada e sem receber remuneração, no máximo um mínimo valor abaixo do que seria equivalente ao trabalho — diz a auditora-fiscal do Trabalho Lucilene Pacini, coordenadora da força-tarefa no Rio Grande do Sul.
Já os dados do Observatório do MPT revelam outros indicadores, mas com números analisados entre 2003 e 2018. Segundo a estatística, 42% das pessoas resgatadas neste período no Rio Grande do Sul se autodeclararam brancas e 34% mestiças. Quase a metade tinha o 5º ano do ensino fundamental incompleto. A maioria é homem e tem entre 18 e 24 anos de idade.
Setor agropecuário
O diretor do Departamento Jurídico da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Nestor Hein, diz que todos filiados são conscientizados por meio de orientações e através de uma campanha permanente junto ao MPT, principalmente desde o ano passado para evitar contaminação por covid-19.
— Lembro que trabalho escravo mesmo é quando o empregado está com o direito de ir e vir impedido e até sem remuneração. Estamos combatendo o trabalho exaustivo e são casos isolados, não sendo uma marca do nosso Estado. Se isso ocorresse, conforme nosso conceito, nos envergonharia. Temos que cuidar ainda essas ressignificações conceituais porque, às vezes, são manipulações grosseiras para tentar inchar estatísticas — diz Hein.
Segundo a Farsul, em 90 anos da entidade, nunca houve algum associado aos sindicatos filiados flagrado em situação semelhante. Caso ocorresse, Hein diz que, além da punição prevista, seria desligado imediatamente da Federação.
Brasil
O procurador de Minas Gerais Thiago Castro, responsável pelo MPT na força-tarefa nacional contra o trabalho escravo e que foi realizada em janeiro deste ano, diz que o Observatório do MPT tem dados dados computados entre 1995 e 2018, mas é desde 2003 que se tem maior qualidade na análise dos números, com comparativos e anexos de variantes do problema em questão, como locais, profissões, idade, entre outros.
Desta forma, desde 1995, há cerca de 53,7 mil pessoas retiradas desta situação pelas autoridades. Os dados revelam ainda que, somente no ano passado, por exemplo, todas as unidades da federação tiveram 942 situações similares. Em 2019, foram 1.054 casos registrados em 267 estabelecimentos fiscalizados. A Polícia Federal ainda tem em andamento 393 inquéritos que investigam denúncias de trabalho escravo e outros 116 sobre tráfico de pessoas para exploração laboral.
Confresa, no Mato Grosso, é o município que mais teve resgates, com 1.348 pessoas em situação similar à escravidão. Não nenhuma uma cidade gaúcha entre as cinco que mais tiveram situações deste tipo de flagrante. Além das sete pessoas resgatadas em janeiro, quando houve a força-tarefa, houve dois novos flagrantes e, em um deles, em Venâncio Aires, no Vale do Rio Pardo, duas famílias, inclusive com crianças, foram resgatadas. Houve outro caso em Bento Gonçalves, mas sem flagrante, e outro com 18 trabalhadores resgatados em Campestre da Serra.
O MPT ainda informa que o total de resgatados entre 2003 e 2018 — com naturalidade e residência declaradas pelas vítimas — foi calculado com base nos dados do seguro-desemprego e se restringe aos resgatados que se habilitaram ao recebimento do benefício. O foco nesses dados, além de considerar apenas os resgates reconhecidos pela União na forma da Lei 10.608/2002, permite desagregar as informações ao nível municipal, o que é essencial às políticas públicas de prevenção e combate. Além disso, foi possível traçar perfis de vulnerabilidade à exploração.
Denúncias podem ser feitas pelo Disque 100 ou nos sites do MPT e da Auditoria-Fiscal do Trabalho do Ministério da Economia.
Direitos Humanos
Segundo Jair Krishcke, do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, o trabalho similar à escravidão, independente do local e das pessoas, atualmente, tem como principais características restrição de locomoção, servidão por dívidas, retenção de documentos, jornadas exaustivas e condições degradantes do local de trabalho.
— Em pleno século 21, esse trabalho similar à escravidão tem incidências não só nos grotões da Amazônia, mas no dito civilizado Rio Grande do Sul. Surgiu uma figura nos últimos anos chamada de gato: o intermediário entre empregador e a mão de obra dita escrava, trazendo pessoas do Nordeste, principalmente, para trabalhar basicamente no cultivo de maçãs e batatas — diz Krishcke.
O Movimento ainda alerta para o fato de que os responsáveis por coibir essas práticas estão cada vez mais em número menor em contrapartida a uma ilegalidade que está aumentando. Krishcke diz que esse trabalho irregular faz parte de um crime cada vez mais organizado e a fiscalização diminui por não ter investimentos e concursos públicos de agentes responsáveis para garantir a lei. Segundo ele, tudo isso é um incentivo para os empresários que contratam pessoas em situações análogas ao trabalho escravo.
Situação análoga
O MPT considera situação análoga ao trabalho escravo por não existir mais escravidão. Portanto, é um trabalho similar, mesmo sem restrição de liberdade. Porém, ocorrem trabalhos forçados mediante ameaça, por dívida, submetidos à condição degradante, sem moradia decente, sem higiene, banheiro, sem normas de segurança e saúde e com jornada exaustiva, extenuante, como no corte de cana que leva pessoas à morte devido a horas por dia em exposição ao sol.