Na década de 1990, a organização internacional Peta (Pessoas em Luta pelo Tratamento Ético aos Animais, na sigla em inglês) ficou famosa no mundo em razão da campanha Eu Prefiro Sair Sem Roupa. Celebridades como Pamela Anderson, Dennis Rodman e Eva Mendes fizeram parte do movimento contra o uso de pele animal em casacos. De lá pra cá, muitos hábitos mudaram em termos de consumo. E a mesma organização, atualmente, atesta a expansão do mercado de calçados veganos no Brasil.
Segundo a entidade, a solicitação do selo de certificação de produto vegano aprovado pela Peta, que facilita a identificação de itens livres de sofrimento animal pelos consumidores, tem média de crescimento de 275% por ano em fábricas de calçados da América do Sul. No Brasil, depois de dois registros do logotipo em 2016 e 2017, outras oito marcas obtiveram a qualificação em 2018 e mais sete se juntaram à lista em 2019. Até julho deste ano, mais duas empresas conquistaram o selo e havia lista de pendentes para aprovação (há uma série de critérios que devem ser preenchidos). A Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados) não possui dados deste segmento específico.
Mas a expansão também pode ser exemplificada por três empresas. Apesar de parecidas sob alguns aspectos e diferentes sob outros, Insecta Shoes, Urban Flowers (essas duas gaúchas) e Ahimsa (de Franca-SP) registraram crescimento em suas produções nos últimos anos. A marca paulista, que abriu fábrica própria com sete funcionários em 2014, hoje tem cerca de 50 trabalhadores, já vendeu seus produtos para aproximadamente 50 países e conta com lojas parceiras em 15 nações.
A Insecta, com 16 funcionários, não tem fábrica própria, mas possui lojas em São Paulo. Em 2019, lançou operação internacional e passou a ter itens vendidos por lojistas parceiros de países como França, Israel, EUA e Alemanha. Produz, de forma terceirizada, cerca de 2 mil pares por mês e, na pandemia, diversificou a produção, oferecendo novidades como pantufas e tênis, exemplares mais confortáveis. Além disso, não classifica calçados por gênero. Seus produtos são unissex.
Já a Urban Flowers, que começou no quarto de Cecília Weiler, em 2013, em Campo Bom (RS), inaugurou no ano passado uma fábrica própria para seus 10 funcionários em área rural da cidade e produz cerca de 600 pares por mês, em média, já tendo alcançado mil pares em alguns meses de 2019.
Além de ostentar cases de crescimento econômico, as três têm em comum a oferta de soluções para contribuir com o consumo consciente e sustentável, e ampliam a comercialização de produtos livres de crueldade animal. Tanto a Urban quanto a Insecta, por exemplo, têm a certificação do selo Eu Reciclo, para compensação ambiental de embalagens, um modelo de logística reversa (instrumento de responsabilidade pelo ciclo de vida dos produtos).
– Uma marca vegana tende a olhar para todo o processo. Sempre buscando novas formas de produzir e fortalecendo uma cadeia mais justa para animais, pessoas e ambiente – explica Cecília.
Na Insecta, ainda há o projeto Fechando o Ciclo. Por ele, a marca recebe calçados que chegam ao fim do seu ciclo de vida, inclusive tênis de outras marcas. A entrega pode ser feita em lojas físicas ou pelos correios. Quem devolve um calçado, ganha um cupom de R$ 50 para compra no site.
Tentamos ser mais conscientes. Estamos inseridos num sistema capitalista consciente e entendemos que todos podem ganhar no nosso formato de negócio. Ninguém precisa sair perdendo. É possível fazer diferente. A empresa é pequena, mas é lucrativa.
BARBARA MATTIVY
Fundadora da Insecta Shoes
Os sapatos recebidos são desmontados e alguns componentes são destinados para reciclagem. O cabedal (parte de cima do sapato) e a palmilha são transformados em novas palmilhas. O solado é triturado e vira nova sola, não gerando lixo. Na produção de novos pares, cabedais são feitos com roupas de brechó, garrafa PET ou algodão reciclados, ou tecido reutilizado. Ao comprar um par da Insecta, segundo a marca, a pessoa recicla cinco garrafas PET, economiza 37 quilos de emissão de CO2 e não sacrifica nenhum animal.
Curiosamente, a campanha contra o uso de peles de animais em roupas foi aposentada pela Peta no início de 2020. Não por falta de apoiadores, mas ela se tornou desnecessária.
“Praticamente todos os estilistas desistiram das roupas de peles, a rainha Elizabeth II renunciou ao material, a Macy’s também desistiu e a maior casa de leilões de peles na América do Norte faliu”, escreveu no site da entidade o vice-presidente sênior da Peta, Dan Mathews. Mas ele promete esforços extras para expandir campanhas contra o couro animal, entre outras ações. O que pode ser um sinal positivo para o futuro de empresas que acreditam em calçados veganos.
"A prioridade é acabar com o consumo de couro", diz CEO da Ahimsa
Na Ahimsa, o foco principal é a causa animal. Em razão das escolhas feitas pelo CEO Gabriel Silva, 30 anos, trata-se de uma empresa de maior porte, que produz 3 mil pares por mês e tem fábrica própria com 50 funcionários.
A marca usa poliuretano (PU) no cabedal, polímero com derivados do petróleo que imita o couro. Com isso, consegue produzir calçados parecidos com os convencionais do mercado. Outro diferencial é que peças feitas com materiais orgânicos, como tecidos, têm restrições em alguns ambientes profissionais, como nas áreas de gastronomia ou saúde, por exemplo. Obstáculo que a Ahimsa não enfrenta. O fator, aliás, foi crucial, segundo Gabriel, para a adoção da matéria-prima.
No início do negócio, entre 2013 e 2016, a empresa usava basicamente materiais compostos de algodão ou PET e algodão reciclados. A adoção do PU, segundo Gabriel, foi para tornar o produto mais inclusivo e acessível. Para ele, muita gente quer comprar produtos veganos porque concorda com o fim da crueldade animal, mas nem todos querem visuais diferentes.
– Não tenho de ter tatuado nos meus pés que sou vegano. A necessidade de imitar o couro vem disso. O PU, hoje, é o que melhor imita, com qualidade, é o menos pior porque é difundido. Se você estiver sentado em cadeira com espuma, tem PU. Não adianta pregar que tudo tem de ser orgânico. E PU pode ser reaproveitado já. Em pistas de atletismo ou tetos de estádio, por exemplo. Hoje, temos tecnologia para fazer sapatos biodegradáveis. Mas será bom para o consumidor? Vai servir quanto tempo? Temos de pesar todos os fatores e fazer as escolhas – afirma o CEO.
Segundo ele, o objetivo é trazer mais pessoas para a causa animal:
– Nosso norte é a questão vegana. Para mim, a prioridade é acabar com o consumo de couro. A gente escolheu esse inimigo como o número 1. Então, meu ativismo vai até onde? É como o hambúrguer que imita carne. O cara quer vender para quem gosta de carne mesmo. Para quem consumir entender o benefício ambiental. Temos de ser inclusivos.
Ainda assim, ele admite que há o desafio de buscar novos materiais que imitem o couro.
– Há movimento grande para diminuir percentuais de PU. Estamos atentos. Aqui, no Brasil, há pesquisa com látex ou derivados da cana-de-açúcar. Na Itália, há espécie de couro sintético com sobras de produção de vinho, com cascas de uva. Na Holanda, a partir de cogumelos. Há amostra de tudo isso aqui. Seguimos procurando ideias.
A Ahimsa também é transparente sobre o PU. Em seu site de e-commerce, aponta “para o elefante na sala” e explica as suas razões. O cuidado com o ambiente envolve separação de resíduos, descarte correto de embalagens, reutilização de água e de papelão, entre outras ações. Ter a fábrica própria, aliás, é o grande diferencial, segundo Gabriel:
– Só assim temos a garantia de ambiente isento por completo do insumo animal.
Transparência e relatório de impacto
Entre as soluções que marcam a expansão recente da Insecta Shoes, de Porto Alegre, fundada por Barbara Mattivy, 35 anos, estão a produção sob demanda para não gerar excesso de estoque, gestão horizontal do time de funcionários (sem chefia tradicional) e estímulo ao desenvolvimento de toda a rede produtiva. Por não ter fábrica, produz com terceirizadas e audita os locais todos os meses.
– Fomos a primeira empresa de calçados a ter o selo de certificação B, com processo de qualificação e auditoria – conta Bárbara.
Empresas que aderem ao Sistema B, segundo o site da organização, “medem o impacto socioambiental e se comprometem de forma pessoal, institucional e legal a tomar decisões considerando as consequências de suas ações na comunidade e no meio ambiente, no longo prazo”.
A transparência em relação aos materiais usados e aos custos destoam do que se vê no mercado tradicional. Cada par da Insecta é calculado da seguinte forma: despesas com vendas (7%), impostos (10%), custo do produto (34%), despesas administrativas (31%) e reinvestimento ou lucro (18%).
A empresa também lançou um Relatório de Impacto Ambiental, em 2019. Nele, se propõe a buscar meios de, no futuro, oferecer pagamentos 15% acima do mínimo solicitado por parceiros, e garantir que o repasse irá aos colaboradores.
Entre os desafios, Bárbara admite que há barreiras de crescimento em razão do modelo de negócio adotado:
– Temos limitações de crescimento. Estamos buscando matérias-primas substitutas ao couro que sejam ecologicamente corretas. Hoje, existe PU (poliuretano), mas é feito de plástico virgem (não reciclado). Mas crescemos a receita da empresa numa média anual de 30%, sendo que no último ano crescemos 50%.
Sem lançamentos a cada estação
A fundadora e sócia da Urban Flowers, de Campo Bom (RS), no Vale do Sinos, Cecília Weiler, 24 anos, trabalha com o sócio e parceiro, Patrick Lenz. Na fábrica, adotam a gestão horizontal.
– Não tem chefe na empresa. Todas as funções são definidas em diálogos no cotidiano – explica Cecília.
O objetivo, diz ela, é humanizar as relações no trabalho e motivar quem produz. Para isso, a empresa afirma que aplica remuneração acima da média do mercado. Com o espaço próprio, a partir de agosto de 2019, a Urban passou a implantar novas iniciativas (algumas paralisadas na pandemia). Entre elas, rodas de conversas dos funcionários com profissionais de psicologia e direito, aulas de yoga, práticas de quiropraxia, meditação e ginástica laboral.
– A sede é em área rural, arborizada. Há tucanos em volta. Há muitas ideias, mas tivemos de pisar no freio agora em razão da pandemia – conta Cecília.
No cuidado com o ambiente, a empresa tem programa de lixo zero para evitar desperdícios.
– Com retalhos, produzimos nécessaires para dar de brinde no site ou produzimos enchimento de almofada para cachorro – exemplifica a sócia.
Neste ano, a cada produto vendido, a Urban doa uma máscara de proteção contra covid-19 ao Instituto Favela, de São Paulo.
– Essas máscaras são produzidas com nossos retalhos, com três camadas, seguindo orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde), e uma delas é com material de guarda-chuva, item de descarte, recolhido por catadores da região, e higienizados por nós. A gente compra deles esses materiais.
Na produção, para garantir a procedência de itens sem crueldade animal, nenhuma matéria prima entra na fábrica sem laudo sobre a composição e origem, diz Cecília. Entusiasta do conceito de slow fashion (contra consumo exagerado), ela define os produtos da marca como atemporais.
– Não trabalhamos com grandes coleções ou estações. Quando lançamos, dificilmente vai sair de linha – relata.
Cecília reconhece que alguns custos de produtos tornam o preço final pouco mais caro. Por isso, sempre busca novas opções:
– É um desafio.