O transporte de passageiros está entre setores mais afetados pela pandemia de coronavírus. Com menos gente circulando nas ruas, em razão da necessidade do distanciamento social para evitar a disseminação da covid-19, ônibus, trens, táxis, veículos de aplicativo, barcos e aviões estão circulando menos.
GaúchaZH ouviu empresas, associações, profissionais e passageiros dos sistemas de transporte terrestre, hidroviário, aquaviário e aéreo para saber os desafios do setor durante este período de queda abrupta de viagens e o que projetam para o período pós-pandemia.
Transporte metroferroviário
Os sistemas de metrô, trem urbano e Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) do Brasil registaram um déficit de R$ 3,3 bilhões em relação à receita tarifária, do início da pandemia até a 1ª quinzena de junho. A estimativa faz parte do levantamento da Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos) sobre os impactos da pandemia no setor.
Conforme a entidade, o setor está transportando somente 33% da demanda de passageiros que registrava antes da pandemia. Desde o início da crise sanitária, alguns sistemas chegaram a transportar somente 6%.
Conforme o vice-presidente Executivo da ANPTrilhos, João Gouveia Ferrão, como o setor tem como principais clientes os trabalhadores, a queda na receita é reflexo da redução considerável das atividades presenciais de trabalho.
- Antes da pandemia, transportávamos praticamente 11 milhões de pessoas por dia. Nós empregamos 40 mil colaboradores no nosso setor. Esse número caiu para em torno de 2,2 milhões de pessoas por dia – relata.
As adaptações feitas pelas empresas trouxeram reflexos nos trens, metrôs e VLTs, segundo ele. Mas o serviço precisou seguir funcionando para transportar aqueles trabalhadores de atividades essenciais.
- E para que a gente mantenha o serviço, temos que arcar com a manutenção do sistema, que não é barata – pondera.
Ferrão diz que, além da redução de receita, o setor precisou investir para poder se adaptar às regras sanitárias, treinando equipes e intensificando medidas de limpeza "com atenção especial aos locais de interação com os passageiros, como as catracas, os corrimãos, as bilheterias, os próprios trens".
Quanto à projeção pós-pandemia, Ferrão reforça a necessidade de apoio financeiro dos governos para reequilíbrio das contas das operadoras. Com empresas percebendo a possibilidade de sequência do trabalho em casa, ele acredita que os resultados seguirão em baixa, mesmo depois do coronavírus passar.
- Haverá a obrigatoriedade da adoção de um planejamento urbano que vise à eficiência das redes. Isso vai ser condição fundamental para que a gente possa ter uma melhor eficiência dos modos de transporte das grandes cidades – diz Ferrão, que ainda defende a implantação de medidas que inibam o uso de automóveis. - Veículos motorizados particulares deveriam ter algum tipo de tributo, pedágio, para quem quisesse ir nas zonas mais centrais.
Trensurb
Na Região Metropolitana de Porto Alegre, a Trensurb registrou queda de 59,3% no número de viagens neste ano. Foram transportados 6.656.391 passageiros entre março e junho de 2020, enquanto no mesmo período de 2019, foram 16.360.123.
O diretor-presidente da empresa, Pedro Bisch Neto, diz que houve a necessidade de duplicação das composições para dar segurança sanitária aos passageiros e funcionários. Em vez de quatro vagões, oito passaram a ser usados para preservar o distanciamento entre as pessoas. Também foi preciso aumentar em 15% o pessoal do setor de limpeza para garantir a desinfecção de todos os locais usados.
- Fizemos uma sugestão para as prefeituras para que elas possam flexibilizar o horário inicial de trabalho. O momento de maior estresse é o pico da manhã – diz Bisch Neto.
A queda na arrecadação com o valor da passagem foi de 37,8% entre janeiro e junho. Foram arrecadados R$ 50.543.082 contra R$ 81.266.245 do mesmo período do ano passado. Parte do bilhete da Trensurb é subsidiada pelo governo federal. Segundo a empresa, o montante repassado pela União não sofre acréscimo em razão da covid-19, já que os recursos são determinados pela Lei Orçamentária Anual.
Transporte terrestre
Ônibus
Em Porto Alegre, as empresas de ônibus que já vêm amargando prejuízos com o crescimento do transporte por veículos de aplicativo, viram a situação piorar ainda mais. De acordo com a Associação de Transportadores de Passageiros (ATP), em 2019 foram transportados, de janeiro a maio, 80.346.258 pessoas. Em 2020, no mesmo período, esse número despencou para 32.381.201, uma queda de 59.6%.
O engenheiro de transporte da ATP, Antônio Augusto Lovatto, diz que a pandemia obrigou as empresas a realizar um esforço para manter o mínimo de qualidade no serviço.
– Conseguimos implantar um protocolo chamado ônibus seguro, composto por 14 medidas de higienização junto aos coletivos – relata.
Conforme Lovatto, foram confirmados apenas cinco casos de coronavírus entre os 6,5 mil funcionários do sistema. Diz que a ajuda do governo federal, através da Medida Provisória 936 – que permite redução de jornada de trabalho e salário – não é suficiente para amenizar os prejuízos.
- Continuamos insistindo, tanto na esfera municipal, como na estadual, por um auxílio financeiro para ultrapassarmos essa crise. Entendemos que o transporte coletivo é um serviço essencial de utilidade pública garantido pela Constituição Federal. Sem ele, não há retomada da economia.
Sobre as soluções quando esse período terminar, diz que passam necessariamente por duas questões principais:
– A primeira é o financiamento. Não conheço no mundo um transporte público de qualidade 100% financiado pelo usuário. A segundo é a reorganização do sistema de transporte. Os eficientes são todos concedidos e regulamentados. Não existe espaço para os exploradores – diz Lovatto ao citar o transporte por aplicativo.
Ônibus intermunicipal
Em relação às empresas de ônibus que fazem o transporte intermunicipal no Rio Grande do Sul, a queda de passageiros foi de 69% nos seis primeiros meses de 2020 (3.061.827) em relação ao mesmo período de 2019 (9.877.360).
Presidente da Federação das Empresas de Transportes Rodoviários do Rio Grande do Sul e vice-presidente da Associação Rio Grandense de Transporte Intermunicipal (RTI), Pedro Teixeira projeta que as medidas sanitárias adotadas atualmente deverão seguir no período pós-pandemia.
– Essa experiência toda que adquiriremos não vai ser esquecida. Nós continuamos e continuaremos com todos esses cuidados que estamos praticando hoje com um número reduzido. E podemos fazer esse trabalho também com um número maior.
Apesar de toda a dificuldade enfrentada em razão da queda de passageiros, o empresário diz que não é hora de deixar a população desassistida.
– Não há dentro do sistema de transporte um sentido oportunista de só estar presente no momento em que houver um número x de passageiros, ou melhor horário, nos melhores trechos, nas melhores linhas, nas cidades com mais demanda. Nós atendemos todas as cidades no sistema de transporte intermunicipal.
Ônibus no Brasil
No país, segundo a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), os coletivos deixaram de transportar nas cidades, em razão da pandemia, 29 milhões de passageiros por dia. O presidente-executivo da entidade, Otávio Cunha, reclama de decisões dos governantes que, segundo ele, têm dificultado a operação das empresas.
– O poder público tem obrigado as empresas a um nível de serviço em torno de 50%, quando a demanda está muito aquém disso. Ou seja, começamos oferecendo 50% do serviço e tendo apenas 20% da demanda. Isso provocou um desiquilíbrio econômico muito sério. É insustentável ao longo do tempo. Resta a expectativa de que venha aporte de capital. É dinheiro que precisa ser entregue aos municípios para manter esse serviço. Senão ele vai parar, vai entrar em colapso.
A projeção da NTU é que o setor precise da injeção de R$ 9 bilhões até o fim do ano.
Transporte por lotação
Assim como os ônibus urbanos, os lotações também já estavam perdendo cada vez mais espaço para os veículos de aplicativo. Para se ter uma ideia, em Porto Alegre, antes dos aplicativos (2015) – a Uber começou a operar no fim de 2015 na capital gaúcha -, foram transportados 16.599.236 passageiros por lotação. Em relação a 2019, a aqueda foi de 46%, quando foram transportados 8.893.843.
Se não bastasse a competição considerada desleal pelo setor trazendo resultados ruins, o coronavírus veio para preocupar ainda mais. No primeiro semestre de 2020, foram transportados apenas 1,8 milhão de passageiros. Se comparado ao mesmo período de 2019, ano que já não foi bom, quando foram transportados 4,6 milhões, a queda foi de 60%.
O gerente-executivo da Associação Transportadores de Passageiros por Lotação de Porto Alegre (ATL), Rogério Lago, não vê uma solução que pelo menos amenize os resultados cada vez piores.
– Nosso principal desafio neste momento é manter um sistema que existe há 43 anos. Mas está difícil. O sistema de lotação, na sua maioria, é feito por autônomos e empresários individuais que já não conseguem mais cobrir os custos para manter o veículo operando.
Para Lago, muitos desses transportadores “tendem a ser engolidos por essa crise”.
– A procura por intenção de desistência da permissão já é grande – diz. – Linhas que deixaram de ser atrativas serão suprimidas. Novas linhas e novos modelos de linhas deverão ser criados – completa.
Aplicativos de transporte
Considerados os vilões pelas empresas de ônibus e trens e por taxistas, os aplicativos de transporte também amargam queda de viagens. Em razão da concorrência, as maiores empresas do setor - como a Uber, Cabify e 99 - evitam falar em números. No entanto, ao conversar com motoristas, a reclamação é de redução de mais de 50% das viagens.
Gerente de operações da 99 em Porto Alegre, Clarissa Brasil diz que a empresa decidiu apoiar o isolamento social por entender a gravidade do vírus. Também que o aplicativo ganhou um reforço de informação sobre como se prevenir da doença.
– Para garantir a segurança de quem precisa sair de casa, a gente começou a desinfecção de carros de maneira pioneira com um produto certificado pela Anvisa.
Com menos passageiros para transportar, o jeito foi criar novos serviços no aplicativo.
– Criamos o 99 Entrega. É para o transporte de itens pessoais, que é uma categoria que surgiu de uma demanda que aumentou muito durante a pandemia.
Denise Lúcia Junges é motorista da 99 em Porto Alegre. Ela conta que a rotina mudou muito na pandemia, principalmente no que diz respeito ao aumento da carga horária ao volante para compensar a queda de passageiros.
– Para mantermos o nosso ganho, é necessário dobrar a nossa carga horária na rua. Como todos os locais públicos estão fechados, também diminuiu o nosso trabalho, diminuiu o número de clientes. Isso dificulta bastante pra gente, pois os gastos continuam. A renda diminuiu bastante.
A motorista também cita as principais ações realizadas para manter a própria segurança sanitária e a dos passageiros.
– Ter que andar com os vidros abertos, higienização frequente do carro com álcool, higienização pessoal. Passamos a usar seguidamente álcool gel durante o dia – diz Denise, ao também mencionar o uso obrigatório de máscara.
Luis Saicali, country manager da Cabfy Brasil, diz que esse período tem sido de desafios e aprendizados para a empresa.
– A gente consegue separar em duas principais frentes de trabalho neste ano: a garantia da renda do motorista, do nosso parceiro. E uma segunda frente que é a questão de saúde e segurança.
Segundo Saicali, a adaptação ao momento atual tem sido constante, e a empresa também criou uma opção de entregas, para "mitigar esse impacto na renda do motorista".
Outro produto lançado durante a pandemia foi a criação de rotas compartilhadas para as pessoas irem ao trabalho.
– A gente consegue, com base em dados da empresa de onde mora esse funcionário e onde ele trabalha, que o nosso sistema diariamente otimize rotas e leve e traga essas pessoas de casa para o escritório.
Até o fechamento dessa reportagem, a Uber não retornou aos pedidos de entrevista.
Táxi
Se para os motoristas de aplicativo o serviço caiu, imaginem para os taxistas. A categoria vem amargando redução de corridas desde o início da operação das empresas de aplicativo no país.
Luiz Nozari é taxista desde 1978. Já viveu os tempos áureos do setor. No grupo de risco, o presidente do Sindicato dos Taxistas de Porto Alegre (Sintáxi) precisou ficar em casa.
– Nunca, nem sequer com a mais remota hipótese, nós imaginamos passar por uma situação como a que estamos passando agora – lamenta o taxista. – Não temos passageiro para transportar. Somos autônomos e vivemos do nosso trabalho. Nós já estávamos numa situação difícil em razão da concorrência com os aplicativos. Agora, ficou insustentável. O taxista trabalha hoje para comer amanhã. Como ele não consegue trabalhar, ele não consegue comer. Sabemos que o coronavírus pode matar, mas a fome mata 100% das pessoas.
O Sindicato informa que está distribuindo cestas básicas para aqueles taxistas com maior dificuldade financeira.
Wanderlei Duarte também é taxista na capital gaúcha. Conta que tem uma carga horária extensa para tentar compensar o prejuízo da queda que se acentuou com o coronavírus. Diz que o aplicativo do Sintáxi tem ajudado nessa “luta”.
– Ajuda bastante, em virtude do convênio com empresas. E também porque não tem a tarifa dinâmica que os aplicativos têm. A nossa tarifa é sempre a mesma. Sempre concedemos todo o desconto, que é de 35%.
Duarte diz ainda que é muito trabalho e pouco dinheiro nesse período – se referindo às medidas sanitárias necessárias para o transporte de passageiros. E que a redução da categoria se acentuou na pandemia.
– Muitos permissionários estão entregando as permissões porque a despesa é muito alta.
Transporte aéreo
O transporte de passageiros por avião do Brasil foi o primeiro a sentir mais fortemente o impacto do coronavírus. Segundo o presidente da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), Eduardo Sanovicz, as empresas aéreas tomaram uma série de medidas para mitigar os prejuízos. Entre elas, revisão de contratos, remarcação de viagens e definição da malha de viagens.
– Mantivemos a aviação brasileira trabalhando e atendendo o país enquanto no resto do planeta não havia aviões voando. Dos 2,7 mil diários de antes da crise, em abril nós chegamos a 180. Foi o momento mais agudo da crise, com menos voos.
Conforme Sanovicz, o número de voos cresceu nos meses seguintes, apesar de ainda muito baixo se a comparação for com 2019. Para se ter uma ideia, a demanda por voos domésticos registrou queda de 90,97% em maio, em relação ao mesmo período do ano passado. É o pior indicador mensal desde 2000, o início da série histórica da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC).
Os dados foram compilados pela Abear. No total, as companhias aéreas embarcaram 22,8 milhões de pessoas nos cinco primeiros meses do ano, queda de 40,76% em relação ao mesmo período de 2019.
Eduardo Sanovicz conta que além das medidas sanitárias e de infraestrutura, a questão econômica foi tratada junto ao governo federal.
– O mais relevante desses pedidos é uma linha de crédito que solicitamos ao BNDES, um empréstimo com juros e correção. O segundo tema foi a liberação, em parte que seja, do Fundo de Garantia depositado pelos aeronautas e aeroviários para a gente atravessar essa crise. E depois mais quatro medidas para eliminar as distorções entre os modelos tributários brasileiros e os estrangeiros.
Segundo o presidente da Abear, esses impostos que não existem na aviação de outros países fazem com que a aviação brasileira seja 27% mais cara. As demandas junto ao Ministério da Economia ainda não se concretizaram.
No que diz respeito ao futuro da aviação depois da pandemia, Sanovicz acredita que a operação que hoje está em 30% deva chegar a 60% até o fim do ano. Já em relação ao turismo corporativo ou de eventos, observa:
– Tende a se recuperar de uma forma muito diferenciada de lugar para lugar, e de atividade para atividade. Por tanto, ainda não é possível ver no corporativo um elemento muito forte num momento imediato.
Já em relação ao turismo de lazer, a projeção é mais otimista.
– Há um cenário interessante que é o desses consumidores que nos últimos dois, três anos viajaram para o Exterior. E que agora nessas férias ficarão aqui. Isso é um público de alguns milhões de passageiros que neste inverno e no próximo verão, viajará pelo Brasil e pode ser decisivo para retomar as atividades da hotelaria, dos parques temáticos e dos próprios eventos, tanto associativos quando corporativos.
Sanovicz acredita que os voos mais curtos, de até duas horas e meia, devem ser os primeiros a se recuperar.
Transporte hidroviário
Muito procurado por quem faz a rota Porto Alegre-Guaíba, para evitar os constantes congestionamentos das rodovias da Região Metropolitana, o transporte hidroviário é mais um diretamente atingido pela pandemia.
A queda de passageiros da Catsul, empresa que opera há nove anos os catamarãs entre as duas cidades, foi de 76,1% no primeiro semestre de 2020 em relação ao mesmo período de 2019. Foram transportados neste ano 63 mil passageiros contra 264 mil em igual período do ano passado.
Diferentemente de outros setores que projetam dificuldades no período pós-pandemia, o diretor de operações da Catsul, Carlos Bernaud, manifesta otimismo quando tudo isso passar.
– Essa demanda caiu para 20% de passageiros transportados e agora estamos em torno de 30%. Entendo que esse crescimento será orgânico no passar dos meses, e que nós vamos retomar a demanda que estávamos auferindo anteriormente.
Segundo ele, há espaço para crescimento do transporte hidroviário no Guaíba.
– Visto que a nossa orla do Guaíba está sendo ampliada e a população está enxergando o Guaíba como uma oportunidade de transporte. Com isso, abre-se um leque de oportunidades para esse segmento.