Laura Carvalho é uma voz que desafia consensos econômicos no Brasil. Aos 36 anos, a professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP) acaba de lançar seu segundo livro, depois do sucesso do primeiro, Valsa Brasileira, editado em 2018. Em Curto-circuito: o Vírus e a Volta do Estado, que chega ao mercado com o selo da Editora Todavia, ela defende o papel do setor público mais como “empreendedor” do que como “indutor” ao estilo do que chama de “desenvolvimentismo industrialista”, que rejeita. Além de influente no debate econômico formal, ela é uma digital influencer: um levantamento do Brazil Charlab a situou como segunda personalidade da área da economia no país entre 20 e 27 de junho. Laura concedeu esta entrevista de sua casa, por meio de uma ferramenta de vídeo, onde foi possível ver um gato deslizando silenciosamente em volta da economista.
Muitos economistas, no Brasil de hoje, gastam tempo explicando que não são comunistas. Como você se situa nas correntes econômicas?
Tenho até certa dificuldade de me encaixar nesses rótulos. Todos nós temos inspirações, referências, mas sempre fui uma macroeconomista que se concentrou na relação entre distribuição de renda e crescimento econômico. O tipo de trabalho que faço, tanto na pesquisa científica quanto no debate público, sempre teve esse olhar sobre como fazer um crescimento econômico inclusivo. Não há contradição em reduzir desigualdades e crescer de forma sustentável. É evidente que, ao me concentrar nessa temática, isso me vincula de maneira geral aos economistas do campo progressista. No pensamento econômico, isso está muito presente em Michal Kalecki (polonês, que atuou em Varsóvia, deu aulas na London School of Economics e é chamado de “Keynes da esquerda”), que uso muito, mas também na economia keynesiana. Não me considero desenvolvimentista, no sentido compreendido no Brasil a partir das experiências dos anos 1960 e 1970, essa visão industrialista da economia, com isso não me identifico.
Você abre seu livro citando John Maynard Keynes. Em crises, somos todos keynesianos?
A política econômica se torna keynesiana diante da necessidade de estabilizar as economias. Quem primeiro entendeu que, diante de uma recessão, e diante de uma postura defensiva do setor privado, o Estado tinha capacidade de gastar mais para reduzir o desemprego e atenuar a crise, foi Keynes, em 1936. Inclusive, a macroeconomia como a gente entende hoje não existia antes dele. É claro que isso também evoluiu de várias maneiras, até a crise de 2008, quando bancos centrais e governos atuaram de forma anticíclica e inovaram em relação ao que já havia sido feito.
O ponto central de seu livro é a ideia de que a pandemia devolveu importância ao papel do Estado. Não ocorreu o mesmo na crise de 2008, quando, superado o abismo, o Estado voltou a ser, digamos assim, um ente encolhível?
Meu argumento central é o de que a crise de 2008 já tinha iniciado esse questionamento à ideia dos mercados autorreguláveis como melhor forma alocar os recursos da sociedade. Foi um marco. A partir daí, não só houve atuações diferentes de governos e bancos centrais, mas o próprio pensamento econômico mudou. Passou a atribuir uma centralidade à desigualdade, à regulação financeira, aos temas da política fiscal e dos multiplicadores. Essa pandemia só trouxe uma resposta tão substantiva ao redor do mundo, por parte do Estado, por conta da maturidade que a questão ganhou nesses últimos 12 anos. De alguma maneira, influenciou na atuação dos bancos centrais nesta pandemia, na política fiscal com expansão muito grande da dívida pública, na preocupação com a desigualdade e até mesmo no foco nos elementos que escancaram essas desigualdades. Não está claro, e isso é importante, que o Estado voltou e que isso é um fato consumado daqui para a frente. Alguns anos depois de 2008, houve recrudescimento das políticas de austeridade, o que desencadeou a crise europeia de 2011-12. Nesta pandemia, é possível que isso ocorra, e que tenhamos, a partir dos níveis elevados de dívida pública, que serão deixados de herança, uma reação daqui a dois, três anos que seja na linha do corte expressivo de gastos. Há uma tendência, sim, de mudança de pensamento, mas essa mudança tem interrupções e essas ideias estão em disputa.
Outra tese retomada de 2008 é que a pandemia pode determinar o fim do capitalismo, ou ao menos transformá-lo radicalmente. Do mesmo modo, a a expectativa/realidade de 12 anos atrás não desautoriza essa perspectiva?
Nesse aspecto específico, é preciso traçar uma linha que distingue os países que estão emitindo dívidas públicas na sua própria moeda, como EUA, Japão e Reino Unido. São países que só seguirão políticas de austeridade se isso for autoimposto. Isso depende de elementos políticos, que talvez não se façam tão presentes quanto se fizeram após 2008. É possível que haja tolerância maior com níveis elevados de dívidas públicas nesses países e que não haja uma pressão tão forte por cortes de gastos agressivos depois da crise. Outro grupo é o de países que enfrentam restrições maiores por emitirem dívida pública em dólar. É o caso de nações do Hemisfério Sul que têm dívidas com o Fundo Monetário Internacional (FMI), com bancos estrangeiros, como a Argentina. Ou mesmo que não emitem a própria moeda, caso dos países da periferia europeia, que estão na zona do euro mas enfrentam desequilíbrios estruturais nas relações comerciais. Por isso, sofrem restrição maior de financiamento. Espanha, Itália e Grécia, que após 2008 tiveram crises de dívida soberana que os obrigaram a adotar políticas de austeridade, podem atravessar situação similar. No caso brasileiro, essa pergunta é ainda mais difícil de ser respondida, pois, de um lado, temos a equipe econômica, que quer usar a dívida pública maior para retomar, de forma mais acelerada, a agenda anterior de reformas, de cortes de dispensas obrigatórias e de privatizações para pagamento da dívida. E, do outro lado, há uma compreensão maior da sociedade em relação à importância do Estado e há uma tensão, que é até um pouco a razão do título do livro. Há uma contradição entre o que a realidade impõe, essa crise profunda com necessidade de atuação do Estado em várias áreas, como a criação do auxílio emergencial e a atuação do Sistema Único de Saúde (SUS), e o discurso do Estado mínimo. Essa contradição se reflete dentro do próprio governo, em uma tensão, por exemplo, entre a ala militar representada pelo general Braga Neto e a equipe econômica do ministro Paulo Guedes. Qual será caminho escolhido? Será que o governo Bolsonaro vai pagar o preço, o custo político de voltar a cortar despesas obrigatórias, privatizar empresas, coisas que não costumam entregar resultado imediato para a população? Ou será que haverá uma tentativa de manter a base popular a partir de políticas que entreguem resultados materiais para a população mais vulnerável, como o auxílio emergencial? Estamos em uma encruzilhada.
Instrumentos como SUS, BNDES, bancos públicos, em uma situação de crise, poderiam ter sido usados de maneira muito mais eficiente. Têm a expertise, mas vinham sendo desmontados pela falta de recursos, por uma certa demonização, com base em ideias de caixa preta e corrupção, que não se mostraram verdadeiras.
É possível chegar a um ponto de equilíbrio?
Sim. É o que defendo e que tem a ver com o papel do Estado como empreendedor, algo que tomo emprestado da Mariana Mazzucato (economista italiana pesquisadora da University College London). Ela trabalha com o papel do Estado no desenvolvimento tecnológico e produtivo. É basicamente inverter um pouco a maneira como a gente pensa nessas políticas, em vez de estimular determinados setores e atividades econômicas. Em geral, isso acaba envolvendo, como no passado, atender à demanda dos setores por mecanismos que reduzam seus custos, proteção. Isso se transforma em mecanismos de transferência de renda para grupos empresariais com maior poder de influência sobre a política econômica e o governo. Esse tipo de política não costuma ser eficaz, à medida que está baseada em conceder benefícios para que esses setores tenham preços menores na concorrência global, mas já saímos atrás, dado que países do sudeste da Ásia, não só a China, têm salários muito baixos, muito menores do que os nossos, e conseguem produzir a preços bem menores. Entrar em política de redução de impostos e até mesmo de redução de salários ou desvalorização cambial como forma de concorrência tem custos muito elevados e pouca eficácia. É possível fazer outro tipo de política, que também favoreça o desenvolvimento tecnológico e científico. A pandemia ajudou a mostrar o valor dessa capacidade, a partir de nossos problemas, por exemplo, de produzir equipamentos médicos hospitalares, insumos necessários à realização de testes. É importante que o país tenha a capacidade tecnológica de superar essas lacunas. A política que Mazzucato propõe acopla a política de desenvolvimento tecnológico e científico às demandas da população, às iniciativas que visam a superar carências históricas. Ela trabalha com a ideia de missões. No Brasil, você adapta para missões sociais e também ambientais. Para superar um determinado objetivo, como oferecer saneamento básico ou cuidar do bioma amazônico, é possível articular uma rede com o setor privado, que permita também desenvolver tecnologias ou produtos que tenham a capacidade de concorrer pela qualidade, pela tecnologia que ninguém domina, não pela concorrência via preço.
Há chance de o governo Bolsonaro aplicar esse tipo de projeto?
Nenhuma. O objetivo, quando a gente traça esse tipo de plano, é colocar em debate, inclusive trazendo uma visão crítica sobre as políticas que estão sendo aplicadas. Não só não há perspectiva de que esse governo realize um plano desse tipo como também me parece que muitos dos instrumentos necessários para isso, inclusive para a resposta à pandemia, vinham sendo sucateados. Este momento também nos mostra a importância desses instrumentos. É o caso do SUS, do BNDES, dos bancos públicos, que, em uma situação de crise, de necessidade de garantir a sobrevivência de empresas menores, poderiam ter sido usados de maneira muito mais eficiente. Têm a expertise para isso, mas vinham sendo desmontados pela falta de recursos, por uma certa demonização, com base em ideias de caixa preta e corrupção, que acabaram não se mostrando verdadeiras. Enfim, é um momento para também entender quais são os elementos que o Estado brasileiro conseguiu desenvolver no passado e que, agora, não pode correr o risco de eliminar, pois serão necessários no futuro para a implementação de uma agenda que reduza as desigualdades e seja sustentável.
Você escreve, no livro, que o Brasil está gastando uma proporção do PIB semelhante à de outros países, mas por que temos uma percepção diferente?
Na verdade, o problema é que o Brasil precisaria ter gasto maior do que outros países. A economia brasileira, ao contrário da norte-americana, por exemplo, vinha de cinco anos de recessão seguida de uma estagnação desigualitária, em que os mais pobres perdiam renda e o meio e o topo da pirâmide recuperavam lentamente a sua, embora ainda estivessem distantes do patamar de 2014. No mercado de trabalho, estávamos diante de um desemprego elevado, ainda superior a 11% quando a pandemia começou, e de uma informalidade recorde. Os EUA estavam com a menor taxa de desemprego dos últimos 50 anos, abaixo de 4%, e vinham em uma das mais longas expansões econômicas das últimas décadas. Quando um choque como este bate numa economia em que metade da população ou mais não têm nenhum colchão, não há capacidade de absorver, nem de sobreviver sem trabalho, sem sair de casa, porque as relações de trabalho são precárias, informais. É evidente que a resposta do Estado, neste caso, para atenuar essa crise, teria de ser maior. Por mais que tenha havido uma resposta, em muitos casos não partiu do governo, mas de pressões da sociedade e do Congresso. O auxílio emergencial, por exemplo, que envolveu um volume de recursos de mais de 2% do PIB só para três meses. Não é um programa barato. Estamos falando de uma ruptura com a trajetória anterior, que era oposta: tirar recursos do Bolsa Família. Ainda assim, precisará de mais, de pensar em uma rede mais ampla e permanente. Há um desafio. A resposta também foi insuficiente no lado do crédito para micro e pequenas empresas. Não houve atuação rápida e de magnitude compatível com a necessidade. O desafio era maior e a resposta que veio foi insuficiente. Mas nenhum país do mundo está conseguindo evitar o colapso da economia. É um tipo de crise que dificulta a atuação do Estado, pois não há o desejo de fazer a economia girar.
O momento pede uma renda básica. O auxílio emergencial eliminou a pobreza em um período dramático. Inserir os pobres no orçamento custa caro, mas tem efeito gigantesco de transformação social.
Quando você fala em rede mais ampla e permanente, isso inclui uma renda básica?
Sim. O momento pede, não só o da pandemia. Já havia uma série de transformações anteriores no mercado de trabalho, que já traziam a necessidade de se repensar as redes de proteção social, para criar um colchão protetor para os trabalhadores informais mais vulneráveis. A pandemia acelerou as transformações no mercado. O auxílio emergencial já está mostrando resultados. Foi capaz de eliminar a pobreza em um período dramático, o que é algo muito significativo. Fez com que os 30% mais pobres tivessem, em maio, uma renda maior do que a de maio de 2019. O governo garantiu até mais do que era recebido pelas famílias mais pobres no ano passado. Inserir os pobres no orçamento é algo que custa caro, mas tem efeito gigantesco de transformação social. Como pagar, então, se vale a pena, se é bom para todos, já que a desigualdade prejudica não só o crescimento econômico e também o bom funcionamento político? A renda básica precisa encontrar os mecanismos para financiamento. Não pode ser pensada de forma isolada, precisa ser analisada com um pacote. Esses benefícios têm um efeito que retorna parcialmente os gastos, porque há impostos sobre o consumo, que gera arrecadação. Metade do que foi gasto com o auxílio emergencial deve retornar na forma de receita. Mas também precisaremos tributar o que é pouco tributável no Brasil: altas rendas e grandes fortunas. Já há uma série de estudos que mostram que essa combinação seria suficiente para financiar uma renda básica, não necessariamente universal, mas algo que caminhe para isso.
Você defende expandir os investimentos privados em infraestrutura com financiamento de longo prazo a juros viáveis. As taxas caíram, mas o que atrairia investidores estrangeiros ao Brasil?
Diferentes planos tentaram, desde o governo Dilma, parcerias público-privadas e concessões. Temos enfrentado dificuldade de atrair os investidores estrangeiros, sobretudo na área de infraestrutura. Mas não é uma particularidade nossa, é difícil mesmo. É evidente que o fato de a economia brasileira não estar crescendo não ajuda. A incerteza que já existe sobre esses investimentos de alto valor e retorno de longo prazo é amplificada pelas expectativas desfavoráveis sobre a capacidade de recuperação da economia brasileira. Uma crise não é o momento para atrair investimentos, mesmo com juros baixos. Agora, em nenhum lugar do mundo investimentos em infraestrutura ocorreram de forma suficiente para superar uma lacuna do tamanho que temos sem a presença forte dos investimentos estatais. Infraestrutura é uma área de alto risco, com retorno incerto e de longo prazo. Por isso, sobretudo em regiões pobres, nos locais onde não é tão fácil identificar uma fonte de lucro imediata, o Estado precisa estar presente. E temos destruído a capacidade do Estado de investir em infraestrutura, por meio de regras fiscais existentes que penalizam muito esse tipo de investimento.
O Brasil enfrenta grave crise com um governo descoordenado e uma equipe econômica focada em encolher o Estado. O que se pode esperar dessa combinação?
O primeiro elemento é que essa crise não é provocada por razões econômicas. A primeira fase para superá-la é atacar sua origem, que é da saúde pública. Os dados têm mostrado que países que tentaram não estão conseguindo retomar as atividades econômicas, pelo medo dos consumidores. Esse medo é uma incerteza para os produtores, que não querem investir, não querem tomar decisões em um cenário tão instável. Muitas empresas não vão sobreviver, e vínculos empregatícios perdidos não serão recuperados. O que pode ser feito é combater o vírus, de um lado, e evitar a falência de tantas empresas e a perda de vínculos empregatícios, de outro. É preciso garantir a sobrevivência de famílias e de empresas ao mesmo tempo. Esse é o objetivo hoje, crucial para a recuperação posterior. Supondo que superemos esses objetivos, mesmo que isso nem pareça estar no horizonte, uma segunda etapa envolveria estímulos convencionais, para ajustar a economia que estará em frangalhos. Precisaríamos afastar do horizonte a ideia de que, a partir do próximo ano, faremos um ajuste rápido, voltaremos a cortar gastos para reduzir a dívida pública de imediato. Não. Estaremos em uma situação de fragilidade. Precisaremos desenvolver uma capacidade de o Estado lidar com os desafios. Incluindo, eventualmente, aumentar impostos para quem tem mais condições de pagar e que, assim, seja capaz de criar um efeito de puxar a recuperação.