Perfeitamente organizados, os cremes importados de um estande ao lado do terminal internacional do aeroporto Salgado Filho, na zona norte de Porto Alegre, mal são tocados por clientes há dias. O cancelamento de todos os voos para fora do país reduziu o faturamento da loja “em praticamente 100%”, como definiu a única funcionária do pequeno espaço. A vendedora compara os dias anteriores à pandemia de coronavírus com o cenário atual.
— A gente vendia uns R$ 2 mil por dia. Ontem (quarta-feira), eu vendi só um creme, de R$ 30 — relembra a atendente, pedindo para ter seu nome preservado.
Na manhã desta quinta-feira (4), o ambiente no terminal gaúcho refletia o relato da comerciante: corredores vazios, bancas cobertas por panos pretos, poucas pessoas sentadas na praça de alimentação e cortinas fechadas em filiais de grandes redes, como McDonald’s, Subway e Pizza Hut. Os tradicionais chocolates de Gramado deixaram de ser oferecidos e nem os sapatos acabaram poupados: os bancos para lustrar calçados foram retirados do piso, e nenhum engraxate foi trabalhar. Dos 66 negócios estabelecidos no aeroporto, apenas um terço está operando, segundo a Fraport, administradora do aeroporto.
A crise no comércio nas dependências do aeroporto é puxada pela queda no número de passageiros: de acordo com os últimos dados informados, a redução é de 95,3% no comparativo entre abril de 2019 e o mesmo período de 2020. No ano passado, 633.537 pessoas chegaram ou saíram do terminal gaúcho, enquanto que atualmente, em meio a pandemia, apenas 29.150 passaram pelo embarque ou desembarque durante os 30 dias.
O restaurante Cidade Porto Alegre, ao lado do portão de acesso aos voos domésticos, inaugurou a nova loja em março. Seis dias depois, teve de fechar por imposição do decreto que impediu o funcionamento da atividade. Dos 36 trabalhadores, 26 foram demitidos. A queda no faturamento supera 85%, segundo o responsável pela unidade, o chefe de cozinha Leandro Kalisiensky, 46 anos.
— A gente teve até que colocar comida fora. Não tem giro, os produtos têm validade de três, quatro dias e não saem. Estamos pagando para trabalhar — avalia.
Nos três estacionamentos, grandes clarões são vistos entre os escassos veículos. No local, podem parar 2.805 automóveis. A média de ocupação antes da pandemia era de 80% – em junho de 2020, essa média caiu para 5%, informou a Fraport. Com a queda na arrecadação e locação aos cessionários, a empresa que assumiu o aeroporto em 2018 afirma ter uma redução de 98% em sua arrecadação. Em nota, a companhia estima que "voltar ao cenário de movimentação que tínhamos antes da crise gerada pela covid-19, provavelmente, só acontecerá em 2023".
Voos caíram quase 90%
A média diária de voos também despencou: de 204 para 25 pousos e decolagens no mesmo período, movimento 87,8% menor. Sem procura, a demanda por profissionais diminuiu, levando ao corte no número de funcionários das empresas que prestam serviço especializado. A Fraport reduziu em 70% a mão de obra dos seus 23 contratos com empresas terceirizadas. Um total de 549 postos de trabalho foi extinto. O destino desses profissionais depende das empresas contratantes, podendo ser demitidos ou ter os contratos suspensos a partir da medida provisória (MP) 936 – que autoriza a interrupção do vínculo por até dois meses, retirando dos cofres da contratante o ônus do pagamento. A partir da MP, o governo federal fica responsável por 70% do que a pessoa receberia de seguro desemprego – entre R$ 1.045 e R$ 1.813, conforme o vencimento do profissional. A empresa paga os outros 30%.
Os contratos reduzidos pela Fraport eram de empresas prestadoras de serviços de manutenção, limpeza, segurança, serviços contábeis, entre outros. Havia, ainda, prestadores de serviços especializados, como os das Esatas (Empresas de Serviço Auxiliar de Transporte Aéreo), que fazem supervisão do canal de inspeção e balizamento de aeronaves.
— Temos ainda uma boa parte, cerca de 30%, dos funcionários obsoletos, em casa ou de férias. É caro demitir, é caro treinar, então a esperança de retomada faz muitas empresas segurarem o trabalhador — afirma o presidente da Associação Brasileira das Empresas de Serviços Auxiliares do Transporte Aéreo (Abesata), Ricardo Aparecido Miguel.
Medidas de restrição
No saguão onde há circulação livre, foram encontrados bancos interditados por fitas adesivas amarelas, iniciativa que visa evitar contato entre os usuários. A Fraport afirma que a desinfecção de toda sua área é feita em parceria com o Exército, que se utiliza de produtos químicos específicos para higienizar os locais de contato.
A sanitização das poltronas e áreas de circulação de passageiros foi reforçada, segundo Miguel, exigência da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Com adesão integral às máscaras de proteção, os poucos passageiros que desembarcaram, vindos de São Paulo, confirmaram a percepção de aviões mais limpos.
— Tinha funcionário limpando o tempo todo, e pra entrar e sair eles chamavam um por vez — explica a recepcionista Maiara Trindade, 23 anos, após visitar familiares no Sudeste, ao lado do filho de seis meses.
Valmir Koeler, 40 anos, desceu em Porto Alegre para negociar um caminhão. Apesar de ressaltar a exigência do uso de máscaras, iniciativa dos comissários de bordo, ele afirmou ter voado em uma aeronave lotada.
— Não tinha distanciamento entre os assentos — diz o empresário.
No pátio externo do aeroporto, a desilusão impera nos táxis brancos exclusivos.
— Eu fazia de oito a 10 corridas por dia. Hoje, para ter duas, tem que madrugar e pegar o primeiro voo da manhã e o último da noite, ficando aqui quase 20 horas — reclamou o taxista Cláudio Ribeiro, 58 anos.
Esperança de retomada
A partir da liberação parcial das atividades comerciais em diversas capitais, a Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear) estima que a oferta de viagens irá crescer, em junho, em todo o país. A queda nos voos nacionais é de 93%, percentual também referente a abril – os índices de maio são consolidados apenas 30 dias após o encerramento do mês.
— Esperamos o dobro dos voos em junho, mas não se pode prever quando chegaremos à normalidade. Como o setor de viagens de negócios vai se comportar até o fim do ano? O turismo de lazer? E o câmbio, que impacta 51% dos nossos custos, como estará? Ainda não sabemos — detalha o presidente da Abear, Eduardo Sanovicz.
Enquanto isso, reaberta no primeiro dia de junho, a loja de vinhos Degustar pode fechar novamente. O faturamento, muito abaixo do previsto, levou a dona do espaço a reavaliar a relação entre custo e benefício de atender aos parcos clientes. Em quase duas décadas, a atendente da butique de bebidas, Marizete Bandeira, 45 anos, nunca viu cenário semelhante.
— Eu fico abalada. Nem os turistas que vinham para Gramado estão vindo — compara.
Inaugurada nesta quinta, a Vidalle Acessórios ainda não havia recebidos compradores às 9h. A proprietária, Alícia Vidal, 28 anos, afirma que o aluguel foi negociado com a Fraport, “muito flexível nos valores”, como definiu. A esperança da empresária é começar a recuperar os R$ 200 mil investidos na reforma da loja a partir de setembro, com uma possível flexibilização aguardada para as viagens internacionais – ainda sem prazo para serem liberadas. Enquanto organiza as malas nunca usadas na vitrine, a funcionária Angélica Gitakos da Silva, 46, observa desolada o movimento na área do check-in doméstico.
— Dá uma tristeza. Quem imaginaria que isso iria acontecer? Mas eu tenho fé, não dá pra esmorecer — afirma.
Consultadas, Azul e Gol foram unânimes ao dizer que é “economicamente inviável” manter assentos vazios nas viagens a fim de oferecer distanciamento entre passageiros. Ambas as companhias informaram estar com ocupação em torno de 80% nos voos, com reforço nos protocolos de limpeza e de manutenção nos dutos de circulação dos ambientes.
A Latam informou que “sempre que possível, possibilita o distanciamento dos passageiros entre os assentos a bordo” e que, assim como as demais empresas aéreas, reforçou a higienização das aeronaves e tem pedido aos usuários que deem preferência para o check-in online.