Os sinais emitidos pelo governo federal de que poderia liquidar a Ceitec deflagraram mobilização de lideranças da área de microeletrônica, que agora direcionam os esforços para salvar a empresa com a defesa de uma estratégia alternativa: a privatização. Pouco mais de 10 anos depois de ser federalizada, a companhia que nasceu com a tarefa de tirar o país do atraso na produção de circuitos integrados vive o auge da pressão devido à orientação do governo Jair Bolsonaro, sob inspiração do ministro da Economia, Paulo Guedes, de se desfazer de todas estatais que não conseguem gerar recursos para se sustentar. É o caso da Ceitec, que consumiu mais de R$ 1 bilhão de investimentos, e tem prejuízos acumulados de R$ 49,2 milhões.
Os primeiros indícios de que a empresa estava na mira surgiram em janeiro, mas a intenção não foi confirmada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Em meados de fevereiro, o secretário-geral de Desestatização do Ministério da Economia, Salim Mattar, questionou em evento na Capital se valeria a pena colocar recursos públicos para "produzir chip para orelha do boi em Porto Alegre", em referência a um dos produtos mais conhecidos da Ceitec.
Ricardo Felizzola, empresário do setor de microeletrônica, foi um dos que tomou a frente do movimento contra a possibilidade de extinção da Ceitec. Avalia que, apesar de todos os erros de concepção da empresa, deficiências comerciais e de gestão e amarras burocráticas típicas de uma estatal, a companhia cumpriu o papel de fazer com que o Brasil passasse a dominar o processo de produção de chips, ajudou a criar um ambiente que fez surgir outras empresas e formou mão de obra qualificada. Assim como em outros países, o empurrão estatal foi necessário, diz Felizzola, que, agora, vê a privatização como a melhor saída – em artigo publicado em GaúchaZH em 11 de fevereiro e em entrevista dias depois, defendeu a permanência da condição estatal.
— O que se investiu, é pouco. Em qualquer lugar do mundo, se gasta de US$ 5 bilhões a US$ 10 bilhões. O conhecimento em semicondutores é o mais valioso que há em inovação. Matar o projeto sinaliza que o governo desiste do setor como um todo. A Ceitec é um assunto de futuro, não o balanço do ano passado — diz Felizzola, CEO do grupo Parit, que reúne Altus e Teikon, e fundador da HT Micron.
O presidente da Associação Brasileira da Indústria de Semicondutores (Abisemi), Rogério Nunes, diz ficar "perplexo" quando ouve sobre a possibilidade de a Ceitec ser liquidada. Ele também entende que, mesmo que financeiramente os resultados não sejam bons, o investimento realizado foi significativo e, em termos de domínio de processo, a Ceitec colocou o Brasil em um novo patamar. É considerada a única com capacidade para projetar e produzir chips em larga escala na América do Sul.
— Tem capacitação técnica e capital humano. A possibilidade de privatizar, vejo com bons olhos. Com um plano de negócio melhor definido, a empresa pode tornar-se eficiente — diz.
Para o secretário estadual de Inovação, Ciência e Tecnologia, Luis Lamb, a preservação da Ceitec é de interesse do Rio Grande do Sul, pela manutenção de um ambiente de inovação e de oportunidade a profissionais altamente qualificados. Se for privatizada, "continuará desempenhando um papel muito importante no setor".
O atual presidente da Ceitec, Paulo de Tarso Mendes Luna, avalia que o primeiro passo para evitar um desfecho mais drástico é levar ao novo governo informações sobre o que a estatal faz.
— Existe desinformação muito grande, a visão de uma Ceitec de 10 anos atrás. Fazemos coisas complexas como o chip do passaporte e de identificação veicular para pedágios, o chip logístico. A área de semicondutores é estratégica para o país pelo efeito transversal na economia, ainda mais quando se fala em cidades inteligentes, internet das coisas, indústria e agricultura 4.0 — observa Luna, que classifica a privatização como possibilidade natural.
Luna e Nunes estiveram há menos de duas semanas com o vice-presidente Hamilton Mourão. Agora, a intenção é marcar reunião com a equipe de Guedes. Questionado, o Ministério da Economia foi genérico. Informa apenas que está em curso um processo de diminuição do aparelho estatal no país, em busca de eficiência e melhor alocação dos recursos. Das 134 companhias controladas pelo governo, apenas Banco do Brasil, Caixa e Petrobras não serão colocadas à venda.
Vítima do próprio governo
Uma das causas de a Ceitec não ter deslanchado tem origem no Palácio do Planalto. Os principais projetos em que a empresa se envolveu partiram de demandas do próprio governo, que depois acabaram postergadas ou esquecidas.
Os exemplos são a rastreabilidade bovina — que deveria ser massificada no Brasil —, a promessa de um documento único para os brasileiros, o sistema de identificação automática de veículos e o chip do passaporte. Assim, a receita que se esperava acabou frustrada.
— Os planos do governo não aconteceram e isso também fez com que a empresa tivesse resultados deficitários — observa o presidente da presidente da Associação Brasileira da Indústria de Semicondutores (Abisemi), Rogério Nunes.
Enquanto espera que parte dessas iniciativas ganhe velocidade, a Ceitec também começa a focar o mercado privado e tenta se associar com empresas do Exterior para projetos específicos. Após chegar à marca de mais de 100 milhões de chips produzidos, a estatal teve novo prejuízo ano passado, de R$ 7,6 milhões, mas o resultado foi três vezes inferior ao rombo de 2017. A receita da empresa chegou a R$ 5,7 milhões, ante R$ 5,5 milhões no exercício anterior. O presidente da Ceitec, Paulo de Tarso Mendes Luna, estima que, em 2019, o faturamento dará um salto, para R$ 20 milhões. A meta é alcançar equilíbrio em 2021.
Como é o setor
- A Associação Brasileira da Indústria de Semicondutores (Abisemi) tem 13 companhias associadas, mas 20 empresas contam com apoio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores e Displays, que dá incentivos fiscais em troca de investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Muitas ainda não são operacionais.
- As empresas do setor no país faturaram R$ 3,4 bilhões em 2018, ante R$ 2,7 bilhões em 2017, estima a entidade. São cerca de 2,5 mil trabalhadores.
- Segundo ainda a Abisemi, hoje um em cada três celulares produzidos no Brasil já usa memória nacional. No caso dos computadores, um em cada dois.