Enxergar através da névoa política que embaça o Brasil talvez seja a mais ingrata das tarefas dos economistas. E poucos são tão desafiados a traduzir Brasília para empresários quanto Ricardo Amorim, apontado pela revista Forbes como uma das pessoas mais influentes do país. Nesta entrevista, Amorim defende mudanças na Previdência e elenca as razões pelas quais o Brasil não deve esquecer dos erros que o levaram à crise. Aos entusiastas dos primeiros sinais de recuperação econômica, alerta: a bolsa pode até estar fervendo, mas ainda haverá um longo inverno até que a economia deslanche. Isso se não surgir um Donald Trump tupiniquim em 2018:
– O risco de uma guinada do Brasil para o radicalismo existe.
Ricardo Amorim: economista, 46 anos. Estrategista de investimentos, debatedor do programa Manhattan Connection, da GloboNews, e autor, entre outros livros, de Depois da Tempestade (2016).
O governo celebra a baixa inflação e a interrupção das altas de desemprego como indicadores de que a economia se recupera. Mas a população reclama não sentir um ganho no poder de compra e nem perceber a abertura de tantas vagas. Quando vamos sentir que o país saiu do buraco?
Há uma diferença entre a economia estar boa e estar melhorando. A economia melhora em cima de uma base péssima. Isso aponta para um presente e um futuro melhores do que o passado. No caso dos empregos, houve criação de vagas no primeiro semestre, muitos sem carteira assinada, mas ainda assim se criou emprego com carteira. Acontece que a taxa de desemprego ainda é muito alta – e nem contempla os brasileiros que desistiram de buscar vagas após um longo período de procura, e que, aliás, voltarão a procurar à medida que a economia melhore. Serão necessários muitos e muitos meses com criação de centenas de milhares de empregos para resolver esse problema. Isso não vai ser resolvido rapidamente. Sobre a inflação: as pessoas precisam entender que, quando a inflação cai, ainda assim significa que os preços ficaram mais altos. Se, em paralelo, não houver aumento de salários, não haverá aumento de poder aquisitivo. Agora, em alguns casos, está, sim, havendo aumento de poder aquisitivo. Em 12 meses, os preços dos alimentos caíram 5%, o que significa que quem gastava R$ 100 para comprar uma cesta de alimentos gasta agora R$ 95.
A alta recente na Bolsa de Valores, que atingiu pontuação recorde em setembro, materializa o discurso de que a economia está entrando nos eixos?
É um engano achar que, se a bolsa subiu muito e chegou a um nível alto, a economia tem de estar muito bem. O que acontece é o contrário: as grandes altas ocorrem antes de a economia ficar muito bem, na expectativa do futuro. Desde a virada do milênio, as maiores viradas da bolsa se deram em 2003, 2009 e neste ano – todas ocasiões em que a economia teve desempenho muito fraco, alguns com queda do PIB, mas com expectativa de melhora. Sim: o mercado está dizendo que há uma expectativa de que a recuperação econômica que aconteceu até agora vá se fortalecer e se acelerar daqui para a frente.
A euforia dos investidores sinaliza que o mercado está do lado de Michel Temer?
O mercado nada mais é do que a soma das posições de todos os seus agentes. Há gente no mercado que, sim, apoia o Temer, mas há gente que é contrária. E há gente que é neutra. Não há, ao contrário do que as pessoas imaginam, essa coordenação, por que há milhões de pessoas investindo em determinados ativos, e cada uma tem uma opinião. A média dessas opiniões é o que o mercado acaba refletindo.
Em seu livro mais recente, Depois da Tempestade, o senhor analisa os erros que nos levaram à recessão mais profunda dos últimos cem anos. Quais lições ficaram?
Acho que a grande lição que a população brasileira aprendeu é que ela precisa cobrar e monitorar a classe política. Caso contrário, os políticos trabalham para eles, e não para nós. Eles tratam o Brasil como se fosse deles, não se portam apenas como meros servidores nossos, que é o que são. E vão continuar a agir assim se não forem cobrados. Quando o são, aí a postura muda. Infelizmente as lições econômicas são mais sutis e complicadas do que a maioria das pessoas consegue entender – e, em vários casos, quer entender. Por exemplo, se alguém disser “Vou tomar medidas para proteger o emprego na indústria do país, limitando a entrada de produtos importados e de pessoas de fora para trabalhar aqui”, na linha do que Trump está fazendo. Muitos vão achar uma maravilha, mas o efeito real será o contrário: quando se limita a entrada de produtos de fora, a competição cai e os preços aumentam, e o resultado são produtos e serviços piores e, em alguns casos, mais caros. Aconteceu nos EUA, quando o governo George W. Bush (2001–2009) resolveu proteger a indústria do aço, inclusive contra a indústria brasileira, que era mais competitiva, e impôs uma série de sanções para a importação. O resultado foi que ele levou a indústria automotiva americana a pagar muito mais caro pelo aço, em meio a uma crise gravíssima.
Acho que a grande lição que a população brasileira aprendeu é que ela precisa cobrar e monitorar a classe política. Caso contrário, os políticos trabalham para eles, e não para nós.
Ter entendido algumas dessas lições nos vacina contra outras crises?
Todas as economias do mundo, não só a brasileira, passam por altos e baixos. Uma das coisas que a história mostra é que, depois de grandes afundadas, como a que o Brasil teve nos últimos três anos, as recuperações são sempre mais fortes do que se imaginava. Do ponto de vista do crescimento, neste ano e nos próximos, já entramos no processo de recuperação. Mas isso é diferente de criar políticas que gerem desenvolvimento a longo prazo. Essas passam por reduzir o custo de produzir no Brasil, diminuir o peso do Estado, a burocracia, e melhorar a educação e a infraestrutura. Isso é o que vai trazer empregos, salários e condições de vida melhores para todos. E isso passa pelas reformas. Só que, como um doente que precisa de tratamento que cause efeitos colaterais duros, a nossa população, por não entender como esse processo funciona, muitas vezes reage dizendo “Não, eu não quero fazer o tratamento”. O resultado é que a gente está postergando medidas necessárias.
É por isso que os ciclos no Brasil parecem fugir da normalidade, vivendo-se alguns anos de bonança para logo em seguida se esbarrar em uma nova crise?
Normalmente, no Brasil e no mundo inteiro, os momentos de alta são mais longos, e os de baixa, mais curtos, embora às vezes mais intensos. Esse último ciclo (de recessão) no Brasil foi exceção: o mais longo e profundo de 117 anos. Agora, o fato de esses ciclos acontecerem não impede que a gente tome medidas para que os momentos de crescimento sejam mais duradouros e acelerados, e os de queda, menores. Isso se faz aumentando a produtividade da economia, acabando com entraves que nos impedem de crescer, como a burocracia e o alto custo do Estado. A gente precisa melhorar a produtividade das pessoas, o que só se faz com investimentos melhor direcionados na educação, e também avançar em equipamentos que ajudem as pessoas a produzirem mais. Ou seja, tecnologia, máquina, equipamento, hardware, software. Se a gente for capaz de resolver isso, vamos gerar um país muito mais próspero e rico.
O senhor costuma mencionar a lição da Coreia do Sul, que nos anos 1950 investiu pesado em educação e, anos depois, ultrapassou o Brasil em PIB per capita. O Brasil gasta pouco em educação ou gasta mal?
O Brasil não gasta pouco em educação; fundamentalmente, gasta muito mal. Gastamos em educação universitária por aluno o equivalente ao que gastam os países mais desenvolvidos, mas sem ter a mesma qualidade. Por outro lado, gastamos pouquíssimo com a educação básica, e o resultado é que os alunos saem muito mal preparados da escola. E quando chegam à universidade, mesmo gastando muito com Ensino Superior, não conseguimos fazer com que se formem realmente preparados. Uma das principais lições coreanas é que eles fizeram justamente o contrário. Inicialmente, investiram pesado em educação básica de qualidade e, com isso, levaram uma geração muito bem preparada às universidades. O nível da educação superior melhorou, passou a gerar melhores centros de pesquisas e empresas que são líderes em setores como os de automóveis e celulares.
No Brasil, desenvolvemos um processo que alimenta a má distribuição de renda. Como a maioria tem uma educação básica de péssima qualidade, há uma massa enorme que se encaixa em um certo tipo de emprego, que é limitado tanto em quantidade de opções quanto em salários. E acaba havendo pouca gente bem preparada com salários muito altos.
Por que o Brasil não segue o exemplo coreano?
Por uma opção muito clara. Na Coreia, para cada 10 won (moeda sul-coreana) gastos pelo governo, 5,5 vão para crianças de até 15 anos, e o principal gasto é com educação. Apenas 4,5 won são gastos com com coreanos acima de 65 anos – o principal foco é a aposentadoria. No Brasil, a cada R$ 10 gastos, R$ 9 vão para quem tem mais de 65 anos, por conta de um regime de aposentadoria excessivamente generoso. Por isso, os coreanos geram crianças melhor preparadas. Resultado: ao longo de duas gerações, a Coreia do Sul, que tinha uma renda per capita que há 60 anos era a metade da brasileira, hoje tem uma renda per capita quatro vezes superior à brasileira. Olha só o que isso gera: a Coreia gasta, proporcionalmente, metade com aposentadoria do que o Brasil, mas mesmo assim o valor da aposentadoria dos coreanos é o dobro da dos brasileiros.
Isso torna inadiável uma mudança na Previdência?
A reforma da Previdência é fundamental. Há duas coisas que estão acontecendo e vão continuar: aumento da expectativa de vida e queda de expectativa de natalidade. Ou seja, há menos gente trabalhando para pagar por mais gente aposentada. Se não passarmos a trabalhar por mais tempo ou reduzirmos os valores dos benefícios, não vai sobrar dinheiro para mais nada no Brasil. Alias, a gente está caminhando rapidamente para isso. Neste ano, o gasto total com todos regimes de Previdência no país será da ordem de R$ 950 bilhões. As contribuições só bancam R$ 550 bilhões. Os outros R$ 400 bilhões saem de gastos que poderiam ir para saúde, educação e infraestrutura.
Os trunfos de Temer para aprovar a reforma da Previdência seriam sua base de apoio no Congresso e uma aparente indiferença com o “custo político”, por não estar preocupado com reeleição. O final do mandato de Temer em 2018 sepultaria as chances de termos uma reforma mais profunda no curto prazo?
A reforma da Previdência é inevitável, vai acontecer com ou sem o Temer. Aliás, provavelmente teremos várias reformas da Previdência ainda, da mesma forma que essa não é a primeira. Tivemos reforma no governo Fernando Henrique e no governo Lula, mas, em cada uma dessas reformas, o que se vende são expectativas que não têm como serem cumpridas. O processo demográfico brasileiro, aliás, no mundo inteiro, garante que, se tentarmos manter as regras atuais, não vamos receber nada, porque o dinheiro vai acabar. Para mim, isso fica claro quando a gente vê que os mesmos grupos que se opõem à reforma da Previdência quando estão na oposição passam a apoiá-las quando se tornam governo. Uma das coisas que nós, brasileiros, precisamos saber é que não vamos receber o que a Previdência atualmente nos promete. Isso é importante inclusive do ponto de vista individual: precisamos fazer nossa própria previdência com um plano privado ou de outras formas.
Há um movimento global de insatisfação com os políticos tradicionais, que abre um espaço gigante para novas pessoas ocuparem esse espaço. Isso pode ser uma tremenda oportunidade. Ou um tremendo risco
E
As mudanças encampadas pelo atual governo, como a limitação de salários e benefícios aos servidores públicos, costuma encontrar enorme resistência das categorias atingidas. Como lidar com isso?
Em qualquer país, há dificuldades em acabar com benefícios exagerados. E a razão é simples: o grupo que vai perder o privilégio vai fazer o possível para que isso não aconteça. A única forma de esse privilégio acabar é que o grupo beneficiado faça uma pressão ainda maior. Por que isso não acontece? Por que as perdas são sempre concentradas. Quando você vai acabar com privilégios de qualquer grupo, pode ser de legisladores, juízes, funcionários públicos ou militares, esse grupo se une e se defende. Quem perde são poucos, que perdem muito, e quem ganha são muitos, mas ganham menos. É exatamente porque ganha menos que a sociedade não se mobiliza. Isso vale para tudo. É como o caso da educação: vai tirar dinheiro das universidades públicas para que a qualidade das escolas públicas possa melhorar. E mais uma vez a gente vai ter de lidar com um grupo que não quer que isso aconteça. Tem de ter coragem para fazer isso.
A um ano para a corrida presidencial, há grande interrogação sobre quem serão os candidatos e quais as suas reais chances. O que esperar da disputa pelo Planalto?
O fenômeno de enorme incerteza nos processos eleitorais não é apenas brasileiro. Nos EUA, Bernie Sanders, que é um socialista declarado, quase levou a indicação dos Democratas, e teve um cara que era quase carta fora do baralho que não só levou a indicação republicana como ganhou a presidência: Donald Trump. Na França, um cara que criou um novo partido ganhou a eleição (Emmanuel Macron) – e, diga-se de passagem, os extremismos estavam bem presentes. Há um movimento global de insatisfação com os políticos tradicionais, que abre um espaço gigante para novas pessoas ocuparem esse espaço. Isso pode ser uma tremenda oportunidade.
Ou um tremendo risco. Uma oportunidade para ter gente vinda do setor privado, que implante um modelo de gestão no setor público, que seria um enorme ganho para o país. E um risco porque é aí que pintam os falsos salvadores da pátria. É bom lembrar que Fernando Collor foi eleito (em 1989) num contexto parecido com o atual, em que a corrupção corria solta. Ele teve um discurso moralista de combate à corrupção, mas o que se viu foi o contrário. Esse risco está presente, já apareceu nas eleições municipais. Há candidatos explorando a mesma coisa agora. Sendo franco, acho que a chance de algum candidato tradicional ganhar a eleição no Brasil é muito baixa. Se algum lugar tem motivo para buscar políticos novos, fora do espectro tradicional, esse lugar é o Brasil.
Os escândalos de corrupção e o desencanto da população com a classe política ampliam as chances de vitória do radicalismo – de direita ou de esquerda?
O risco de uma guinada do Brasil para o radicalismo existe, como tem acontecido no mundo todo. A França bateu na trave, e poderia ter elegido tanto um populista de direita quanto um de esquerda. No Brasil, há candidatos com os dois perfis. Mas acho pouco provável que um deles vença. A não ser que fique um populista de esquerda contra um populista de direita no segundo turno, Lula ou Ciro Gomes contra Bolsonaro – é o único caso em que vejo um desses três ganhando a eleição. Isso porque, assim como aconteceu na França, quando se tem eleições em dois turnos, o mais provável é que o político mais populista perca para um candidato mais ao centro, pois este tende a atrair os apoios, na comparação com qualquer um dos dois extremos.
Qual o perfil de presidente que o país precisa?
Tem de ser, em primeiro lugar, alguém que tenha coragem de enfrentar grupos de interesse de todos os lados, particularmente em Brasília, do funcionalismo público ao Congresso Nacional. Uma das coisas que o presidente precisa ter é a coragem de falar que um Brasil maior requer um governo menor. Se não cortar gastos, o governo continuará sendo um peso que o restante do Brasil não consegue carregar. E isso condena milhões e milhões de brasileiros a uma vida pior do que deveria, com mais pobreza. Por fim, precisa ter uma agenda de modernizar as instituições, e mais uma vez isso significa enfrentar certos grupos com seus interesses próprios.