A história que levou o Badesul, banco de fomento do Estado, à inviabilidade financeira remonta aos quatro anos de gestão do governo Tarso Genro, entre 2011 e 2014. Nesse período, a instituição multiplicou exponencialmente a liberação de financiamentos, principalmente para clientes de risco, negligenciando a exigência de garantias de pagamento e subestimando a fragilidade das operações, em atrito com normas do Banco Central. A política resultou em calotes sofridos pelo Badesul. Empresas de porte grande e médio tomaram empréstimos milionários, não fizeram os investimentos prometidos e o dinheiro se perdeu. Pior: não pagaram as prestações dos financiamentos. A dívida ficou com o banco gaúcho.
Na prática, a conta caiu no colo do contribuinte e do governo estadual, controlador da instituição. Zero Hora teve acesso com exclusividade a contratos problemáticos assinados pelo Badesul à época em que era presidido pelo engenheiro mecânico e mestre em Engenharia de Produção Marcelo Lopes: um da Wind Power e outro da Iesa Óleo e Gás S/A, que entraram com pedido de recuperação judicial meses depois de receberem valores do banco.
Somente no caso destes dois empreendimentos, em valores atualizados pelos encargos contratuais, o Badesul sofreu calote de R$ 140 milhões, um prejuízo histórico na política do Estado. Esse é o valor que ingressa na contabilidade do banco e que deveria ser pago pelos devedores em condições normais. Pelos montantes previstos nas recuperações judiciais, o desfalque alcança R$ 95,7 milhões. Na fraude do Detran, por exemplo, a perda foi de R$ 90 milhões (valores calculados em 2014).
O modelo de gestão implementado por Lopes levou o Badesul a sofrer uma sanção do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que, no dia 14 deste mês, rebaixou a nota da agência gaúcha de fomento a zero. Com isso, não poderá mais captar recursos do BNDES para fazer financiamentos.
O fato sinaliza a inviabilização do Badesul, considerando que 95% dos valores movimentados em suas operações de crédito têm o BNDES como origem.
O Banco Central pediu explicações sobre as operações com a Iesa e a Wind Power. Esses são os dois casos mais gritantes, mas há outros focos de suspeita. Em 2014, o Tribunal de Contas do Estado (TCE) requisitou a documentação de 55 financiamentos feitos pelo Badesul para empreendimentos. O pedido foi rejeitado pela instituição sob a alegação de sigilo bancário.
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Operações de risco chegaram a equivaler
a 198,2% do patrimônio líquido do banco
No final de 2013, as operações de risco de letra "B ou pior", com potenciais clientes sem condições de pagar, conforme análise feita pela área técnica do TCE, somavam R$ 1,451 bilhão, equivalente a 198,2% do patrimônio líquido do banco, à época fixado em R$ 732,2 milhões. Isso significava que, caso metade dessas operações resultasse em calote, o patrimônio do Badesul estaria completamente liquidado.
No mercado financeiro, os parâmetros são distintos. É considerada "de risco" a composição da carteira de crédito entre as letras D e H. Por esse critério, no balanço de 2015, o Badesul tinha R$ 355 milhões em empréstimos de quitação duvidosa, mais de 10% da carteira, índice alto segundo analistas de mercado.
ZH mostra nas reportagens abaixo detalhes da trajetória recente do banco que era a aposta do governo Tarso para injetar recursos no desenvolvimento e modernização da economia do Estado, mas foi levado ao fundo do poço por equívocos de avaliação de garantias, alta concentração de empréstimos em poucos clientes e baixas taxas de rentabilidade (spread).
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PASSO A PASSO DA DECADÊNCIA
- Em julho de 2014, o Tribunal de Contas do Estado (TCE), em auditoria ordinária no Badesul, pediu acesso a 55 operações do banco por meio da "Requisição 09/2014".
- O objetivo era verificar os critérios de concessão de crédito. Algumas dessas medidas foram tomadas após pedidos de providência do deputado estadual Marlon Santos (PDT). Em 2014, o TCE teve as solicitações negadas sob alegação do sigilo bancário.
- Ainda assim, abriu o processo 9607-0200/13-5, inicialmente baseado em análise de balanços da agência. Os apontamentos (veja abaixo) já indicavam o processo de deterioração financeira. Com o ingresso da atual diretoria em maio de 2015, o TCE passou a ter acesso aos documentos antes negados.
- Uma inspeção extraordinária foi aberta para analisar exclusivamente os casos da Iesa e da Wind Power. O relator do caso, que tramita em sigilo, é o conselheiro Iradir Pietroski. O Banco Central também abriu apurações acerca das duas negociações.
Veja algumas das informações que constam no relatório de auditoria ordinária do TCE nas contas do Badesul no exercício de 2013
- Faz referência ao forte crescimento do saldo da carteira de operações. Em apenas dois anos, o volume mais do que duplicou (104,7%). "Este tipo de ocorrência é atípica no mercado financeiro, por insustentável no médio prazo. Normalmente, o que se verifica são carteiras de crédito com taxas de crescimento estáveis e moderadas", registra o parecer.
- "No mesmo período em que se observou um crescimento vertiginoso da carteira de crédito do Badesul, o nível proporcional de provisionamento para perdas prováveis na realização de créditos (PCLD, que significa uma reserva para eventuais calotes), foi reduzido em 20,7%, de 3,2% da carteira no final de 2011 para 2,6% da carteira no final de 2013."
- "Restou óbvia a redução da proporção das operações menos arriscadas na carteira da agência de fomento. As operações mais seguras, as AA, eram 31,7% do saldo da carteira no final de 2011, e apenas 19,7% no final de 2013, uma queda de 37,9%. Cresceram as operações de risco.
As operações 'b ou pior' eram 23,1% do saldo da carteira no final de 2011 e passaram para 42,1% no final de 2013, elevação de 82,2%."
- Diz ainda o relatório: "Cruzando o incremento das operações mais arriscadas na carteira de crédito com a demonstrada redução de 20,7% no nível proporcional de provisionamento para perdas prováveis na realização de créditos, ficou entabulada uma marcante contradição, podendo significar que a instituição financeira pública está subestimando o nível de risco de sua carteira de crédito".
- "No final de 2011, as operações "B ou pior" tinham saldo de R$ 389,351 mil ou 69,7% do patrimônio líquido de R$ 558,395 mil do Badesul. Já no final de 2013, o saldo das operações 'B ou pior' era R$ 1.451,826 mil ou 198,2% do patrimônio líquido de R$ 732,290 mil do Badesul. Ou seja, se metade dessas operações 'B ou pior' desse perdas efetivas, o patrimônio líquido do Badesul estaria completamente liquidado", acrescenta o relatório da auditoria promovida pela área técnica do TCE.
CONTRAPONTOS
O que diz a IESA
A reportagem de Zero Hora enviou e-mail, na última sexta-feira, com questionamentos sobre os contratos com o Badesul para a assessoria de imprensa da Iesa. Até a noite deste domingo, a empresa não havia retornado o contato.
O que diz a Wind Power
ZH também enviou e-mail, na sexta-feira, com questionamentos para o setor de comunicação da Impsa, empresa argentina controladora da Wind Power. Até a noite de domingo, a reportagem não havia recebido retorno.