Livros são parte de minha atividade profissional, de minhas horas de lazer e entretenimento e uma das poucas coisas materiais que este jornalista confessa ter demais, comprar demais e até querer demais. Desde que trabalho como setorista de livros deste jornal, há exatos 10 anos, nunca deixei de intercalar minhas leituras pessoais com obras cuja leitura era necessária para o trabalho, e devo ter liquidado três livros por semana, em média: literatura brasileira, estrangeira, em português, em inglês, em espanhol, de não ficção, de ficção, poesia, em provas tipográficas, edições de bolso, edições em capa dura, em papel jornal, em papel pólen, até em fac-símiles de originais escritos a mão. Eu só nunca havia lido um livro em qualquer dispositivo eletrônico portátil. Até agora.
Fui convidado pela editoria Digital de Zero Hora a experimentar o Kindle Paperwhite - uma incursão bastante tardia, admito, ao universo dos dispositivos digitais. De imediato, uma surpresa: ele é menor do que eu pensava - eu já havia visto aqui e ali outros modelos de tablets multifuncionais, mas nunca encontrara o aparelho leitor da Amazon assim, tête-à-tête. Como a ideia era ler alguma coisa na engenhoca, e não necessariamente o livro, contentei-me com o exemplar que já estava na biblioteca, o livro O Clube do Filme, de David Gilmour (não, não é o guitarrista do Pink Floyd, é um jornalista e escritor canadense).
Cheguei a ter em minhas mãos há um ou dois anos a obra em sua versão papel, mas uma que outra passada de olhos e o devolvi sem ler ao amigo que me havia emprestado, me pareceu agradável mas inócuo, e havia outras coisas para ler antes, muitas coisas. Minha impressão neste segundo contato é que a leitura pareceu fluir muito mais do que naquela primeira vez. Isso talvez se deva ao tipo de obra que O Clube do Filme é: um depoimento bem escrito, com as doses tão certas de humor e drama que parecem ter sido equilibradas seguindo uma receita. É o tipo de "livro de bons sentimentos" que se torna um best-seller incidental mas que eu, particularmente, sempre deixo de lado em benefício de alguma narrativa mais pesada, em mais de um sentido.
No Kindle, entretanto, a leitura se mostrou fácil, prática e envolvente - algo que usuários do aparelho provavelmente já sabiam, mas eu era praticamente um ludista dos livros até pouco antes, então deem um desconto. O fato de a luminosidade e até mesmo o tamanho do zoom da página ser ajustável também se comprovou bem prático para que a leitura fluísse. Ao final de dois dias, o livro havia sido vencido sem problemas. Eu já havia lido livros inteiros em formato digital, antes, em arquivos PDF enviados por editoras, na maioria dos casos, e a experiência havia se mostrado cansativa e desconfortável. No Kindle, a leitura não provocou incômodo nem dores nos olhos, e pareceu correr muito mais rápida. No ônibus para o trabalho, carregar o dispositivo, extremamente leve, demonstrou-se uma tremenda e positiva surpresa para quem já precisou andar pra cima e pra baixo com os calhamaços de obras como Contra o Dia, de Thomas Pynchon (1.088 páginas), 2666, de Roberto Bolaño (856 páginas), e Sangue Errante, de James Ellroy (960 páginas). Dependendo do lugar em que se esteja sentado no ônibus, contudo, o sacolejar da viagem embaralha as letras mais do que no papel - precisei chegar o aparelho bem mais perto dos olhos do que se estivesse com um exemplar físico.
Uma das características inquietantes do leitor eletrônico, para ser honesto, tem a ver menos com a face "leitor" e mais com a "eletrônica". Há um marcador localizado no canto inferior esquerdo que insiste em informar quanto já se avançou na leitura. Em um livro de papel, essa percepção é menos direta: embora você também sinta claramente quantas páginas já virou e quantas ainda faltam, a imprecisão dessa medida é mais confortável. Quando o livro avisa claramente que você só leu 23% do conteúdo total, parece provocar certa angústia para que esse percentual evolua a seu favor. E não encontrei maneira de desativar essa contagem, mas aí o problema pode ser comigo. No saldo final da experiência, uma aprovação mais entusiasmada do que eu havia imaginado no começo.