Há muito que a família brasileira já não é representada exclusivamente pelo modelo clássico "papai (homem), mamãe (mulher) e filhos". Segundo a advogada Adriana Dabus Maluf, mestre e doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), houve importantes avanços na Constituição Federal nas últimas décadas, como o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo gênero e da monoparentalidade, por exemplo.
Porém, quando se trata de formatos não monogâmicos, há pontos restritos pelo Código Civil.
— A família hoje tem vários rostos. Ela é a união de pessoas com amor e não está vinculada necessariamente ao casamento. Pode envolver união estável ou mesmo ter um único genitor e filho(s). Isso inclui também as pessoas do mesmo sexo e as que recorrem às técnicas de reprodução assistida para se tornarem pais ou mães. Vale destacar que o casamento e união estável já se tornaram também acessíveis a pessoas do mesmo sexo — pontua.
Na entrevista a seguir, a autora do livro Direito das Famílias — Amor e Bioética (editora Almedina Brasil) esclarece o ponto de vista legal sobre os vínculos familiares em suas múltiplas configurações.
A monogamia, hoje, é a única via legal da família?
O Brasil obedece os ditames do Código Civil de monogamia. Nossa família é monogâmica. Nos relacionamentos abertos, em que as pessoas de comum acordo decidem sair com outras pessoas, cada um faz como quer, mas essa terceira, ou décima, pessoa de fora não faz parte da família. Então, ela não tem direitos, pois são consideradas saídas eventuais, não relacionamentos fixos. No caso do relacionamento simultâneo entre três ou mais pessoas, com conhecimento e anuência de todos, o poliamor, é a mesma situação. Só posso me casar ou viver em união estável com uma pessoa de cada vez.
Quais critérios definem uma união estável legítima?
Quando há intenção de formar família. Os namoros de hoje são verdadeiros casamentos, mas o que difere o chamado namoro qualificado da família é a forma como as pessoas se sentem. Ela se estabelece em contrato, via cartório. Vale para quem quer incluir o par como dependente em plano de saúde, em assinatura de clube ou conta conjunta no banco. Se percebe que é um companheiro, pois quis formar família. Às vezes, você tem filho com um namorado, mas isso não significa ser família, por exemplo.
Outro conceito aceito é o de e-family, que se dá via redes sociais, pois o mundo está virtualizado. Funciona assim: eu conheço alguém pela internet, nós conversamos e resolvemos ter uma união estável. É diferente de quando um marido é transferido de cidade ou um dos dois é um profissional que atende outras regiões e precisa viajar, morar longe, quando já conviviam antes e já eram casados. A e-family se mantém exclusivamente nos meios virtuais. Isso é declarado pelas trocas de mensagens e exposição midiática (posts nas redes sociais). A união é exposta e representa que estão convivendo pela internet, demonstrando o desejo de ser uma família.
Mesmo sem contato físico?
Sim. No Japão, inclusive, já se fala em casamento com bonecos, robôs, avatares alimentados por inteligência artificial. Já existe até um viúvo digital, que desligou o parceiro e ele é considerado morto. Você instrui assuntos, faz com que o robô entenda do que quer que seja e alimenta ele com esses ditames. Assim é o convívio, é uma convivência artificial.
E os trisais? Temos visto casos em que lutam por direitos, por exemplo.
Embora tenha havido registros de escrituras de poliamor e as pessoas digam que todos devem ser livres, os trisais ainda não têm respaldo legal. Está na Constituição que a monogamia é principio estruturante. Há questões que foram até terceira instância e bateram no Supremo Tribunal Federal (STF), que é o tribunal que trata de questões constitucionais e entende que união estável e casamento são monogâmicos.
A Associação de Direito de Família e das Sucessões (Adfas) fez um pedido, em 2016, para que se parasse de lavrar estruturas para relações de poliamor, pois as famílias são monogâmicas. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também elaborou portaria dizendo que trisal não é união estável. Então, as uniões lavradas não têm efetividade. Não há direitos e deveres aos olhos da lei. Hoje. Não se sabe como será amanhã, claro.
A união poliafetiva é crime?
Não, mesmo que exista o casamento entre duas partes, pois o adultério já não é mais considerado crime contra a família. Porém, também não constitui família.
Um trisal, então, pode registrar um filho?
Não automaticamente. Toda criança tem direito de registro ao nascer, sob pena até de perder o pátrio poder, mas apenas com até duas pessoas como pais, independente do sexo. Quando são três, os pais biológicos vão poder registrar em nome dos dois. Passados dois anos, período da socioafetividade, o terceiro faz um pedido para que seu nome entre como mãe ou pai socioafetivo. Está na lei que ela forma parentesco.
Como funciona esse reconhecimento?
Ele se dá com vínculo de afeto entre as partes. Ingressa-se em juízo pedindo a inclusão, tendo em vista a socioafetividade. E essa pessoa precisa fazer parte da relação afetiva da família, tem que conviver, estar muito próxima e querer a criança como filho. Não precisa morar junto ou ser trisal. Uma vez que é feito o registro, inclui-se direitos e deveres, como guarda e afeto. Para assumir um filho, que biologicamente não é seu, em uma relação que não está nos modelos da Lei, precisa querer muito. Divorciados, por exemplo, que se casam de novo, madrasta ou padrasto não se tornam mãe ou pai automaticamente. O enteado não tem direitos e deveres.
É importante entender a responsabilidade que se tem com o menor. Educação, carinho, saúde. E o filho, na velhice, tem também essa responsabilidade para com os pais legítimos. É uma via de mão dupla.
Em relação à herança, quando uma parte do trisal morre, por exemplo. Como é feito este trâmite?
Aí precisa provar, com documentos, recibos, que viviam em sociedade. Assim como três amigos que dividem uma casa. Na herança, vai para o âmbito de direitos e obrigações. É necessário comprovar que todos contribuíram para construir a casa, adquirir os bens. Leva-se em conta, primeiro, os herdeiros necessários, filhos, netos, bisnetos, ad eternum. Em segundo lugar, para cima, pais, avós e cônjuge, que é o ser casado no civil. Não havendo herdeiros necessários, pode-se tentar em favor dos parceiros afetivos e também dividir 50% na sucessão, quando há pais vivos.
E em caso de separação do trisal?
Da mesma forma, é preciso provar o vínculo material, quando em trisal. Não existe direito a pensão alimentícia nem direito previdenciário. É válido apenas em caso de compra de bens juntos. Então, entra no âmbito do direito negocial, saindo do familiar.
Naquelas situações do trisal em que havia um casal antes da entrada da terceira pessoa, esta não terá direito a nada. Apenas pega a mala e vai embora, pois o trisal não forma família. Só será diferente se ela ajudou a comprar a casa onde moram, por exemplo. Porém, se a família já estava andando quando ela chegou, não tem direito a nada.