Quantas pessoas, sentimentos e contextos cabem em um romance da vida real? Se estivermos falando sobre um relacionamento não monogâmico, a resposta pode variar sob diversos aspectos. Na contramão dos padrões enraizados na cultura ocidental, configurações com três, quatro ou mais pessoas — afetiva e sexualmente envolvidas — vêm ganhando mais do que espaço, mas, especialmente, visibilidade social. E não é que a realidade tenha mudado de uma hora para a outra ou derrubado magicamente alguns paradigmas consolidados há centenas de anos.
Pelo contrário. Segundo o psicólogo clínico e terapeuta de casais Filipe Starling, a maior contribuição para a quebra de tabus vem, inegavelmente, das redes sociais, ao validar a troca de ideias sobre novas possibilidades de comportamento. Soma-se a isso o fato de celebridades, como os atores Fernanda Nobre e Will Smith, terem assumido relações não monogâmicas, motivando mais gente a se abrir à experiência. Podemos acrescentar, ainda, as histórias de trisais que ganham frequência na mídia, em busca de acesso a direitos de família. Os perfis não convencionais, contudo, não são algo tão moderno assim.
— A não monogamia ocorre ao longo de toda a história humana. A questão é que sempre foi debaixo dos panos, de forma não consensual, escondida. Agora estamos tendo a possibilidade de experimentar algo consciente, ético, responsável e cuidadoso — pontua Starling.
Bem antes da existência dos aplicativos e outras ferramentas de acesso instantâneo à informação, esta desconstrução já era pauta relevante em muitas rodas por aqui. Na icônica obra de Raul Seixas, em meados da década de 1970, por exemplo, hitavam sucessos como A Maçã, que versa seu recado logo na introdução: “Se esse amor ficar entre nós dois, vai ser tão pobre amor, vai se gastar…". De lá para cá, o lançamento virou clássico e as vozes se multiplicaram.
— As pessoas estão querendo se libertar das amarras culturais que forçam todo mundo a seguir um modelo pré-estabelecido. Existem bilhões de habitantes no mundo, não é possível que um único modelo contemple as necessidades de toda essa diversidade — argumenta o psicólogo.
Autor do livro Não Monogamia Responsável: Abrindo a Relação com o Cuidado que Ela Merece (2021), o especialista defende que, mesmo não sendo possível afirmar que algumas pessoas são mais ou menos propensas do que outras a se interessar por relações poliafetivas, uma coisa é certa: segurança e liberdade estão entre as necessidades fundamentais de todos.
A afirmação é endossada com veemência pelo casal de empreendedores Geovane de Freitas dos Santos, a Gi, de 47 anos, e Cássio Gonçalves Reis, 44, de Porto Alegre. Juntos há 16 anos, dizem ter descoberto no casamento aberto sua fonte de satisfação, além de aprendizado constante sobre empatia e autoconhecimento.
— A melhor parte é poder ser inteira comigo mesma e verdadeira com quem amo. Não precisar abrir mão de quem sou não tem preço — conta Gi, que se define como pansexual (quando pode haver interesse ou atração sexual por quem quer que seja, independente do gênero), e acrescenta: — A gente fica com a autoestima mais elevada, e isso melhora tudo na vida, incluindo (e principalmente) o casamento.
Mais do que contato físico
Integrante e geradora de conteúdo do coletivo Amar e Permanecer Livre - Relações Livres, a jornalista Teca Curio esclarece que a não monogamia propõe uma quebra de estruturas. Para muito além de um conceito de liberdade sexual, a questão envolve informação e amadurecimento emocional.
— O foco não está nas múltiplas relações, mas sim no rompimento com as normas monogâmicas — sublinha.
É praticamente impossível viver um relacionamento longo sem nunca desejar e ser desejado por mais ninguém.
GEOVANE DE FREITAS DOS SANTOS (GI)
Empreendedora, em relacionamento aberto há 16 anos
Nas relações abertas, como a de Gi e Cássio, mesmo se envolvendo com outras pessoas, existe o casal principal. Os porto-alegrenses ressaltam que a verdade é o principal pilar de sua vida juntos, respeitando a individualidade e as escolhas um do outro.
No início, relatam, nem todos os momentos foram fáceis. Influenciados pela cultura monogâmica predominante em suas vivências, na primeira tentativa de abrir a relação, precisaram lidar com crises de ciúmes e alguns episódios em que a necessidade de controle falou mais alto. Chegaram, inclusive, a fechar o casamento, por um tempo, até acertarem a medida do que os fazia felizes.
— Foi um processo longo e, na verdade, creio que não percebemos o rumo que estávamos tomando. Estávamos muito apaixonados e sentíamos as mesmas coisas que quase todo mundo sente... A gente é educada para entender o amor assim, né!? Ninguém quer falar que é praticamente impossível viver um relacionamento longo sem nunca desejar e ser desejado por mais ninguém. A diferença é que escolhemos não mentir um para o outro a respeito do que sentíamos — relata ela.
E conclui que a verdadeira mudança de perspectiva surgiu quando ela se apaixonou por um de seus afetos, dando o primeiro (e decisivo) passo para a virada de chave no casamento.
— Isso foi um divisor de águas, porque percebi que todo o amor que eu sentia por essa outra pessoa em nada se comparava nem se sobrepunha ao que eu sentia pelo Cássio e que meus sentimentos por ele não haviam mudado em absolutamente nada. Então, entendi verdadeiramente o conceito da palavra poliamor. Conversamos, foi uma fase difícil, mas só então começou realmente a desconstrução propriamente dita — explica a empresária.
Gi pontua que, a partir do momento em que abriu o coração para outras pessoas, se deu conta de que o medo da perda parou de fazer sentido. Considerando que existem inúmeras perspectivas para o amor — de amigo, de mãe, de filho —, se convenceu de que os riscos que se impõem a um relacionamento, muitas vezes, não têm origens externas, podendo partir de suas próprias diferenças.
— Não há espaço para que mal-entendido, fofoca, intriga ou qualquer outra situação deste tipo quebre nossa confiança, e isso nos uniu de forma muito mais profunda. Claro que o ciúme tem outras faces, mas a gente se propôs a destrinchá-las. Muito está vinculado, por exemplo, à ideia de posse sobre o corpo alheio e acreditamos que isso deve ser analisado com muita atenção — reflete.
Comum acordo
Ajustado à visão de felicidade e bem-estar conjugal de Gi e Cássio, o casamento aberto dos dois tem algumas combinações que facilitam a convivência e permitem fluidez. O empresário explica que ambos mantêm seus relacionamentos independentes um do outro. Há, no entanto, o entendimento sobre as diferenças entre as estruturas de cada relação.
— Entramos em acordo sobre não nos relacionarmos com pessoas que não entendam ou não respeitem a nossa dinâmica e procuramos não ter hierarquia sobre os sentimentos. Além disso, as pessoas com quem nos relacionamos são, acima de tudo, grandes amigos. Então, muitas vezes, nem temos mais momentos de intimidade com elas, mas o afeto, carinho, parceria e confiança perduram por vários anos — aponta o empresário, que se define como hétero.
Conforme o psicólogo Filipe Starling, estes acertos entre o casal, assim como o exercício do autoconhecimento, são fundamentais para a saúde conjugal. Quando não se consegue chegar a um denominador comum, a terapia pode ser um recurso valioso.
— Se abrir para a não monogamia significa reconhecer que o outro não tem como satisfazer todas as nossas necessidades, e isso não é falha de ninguém. É simplesmente como as coisas são. Mesmo gostando muito de alguém, em algum momento pode surgir o desejo de transar com outra pessoa, de interagir afetivamente com outro indivíduo — reforça o especialista.
Convívio fora de casa
Vivendo à sua maneira há tantos anos, Gi e Cássio contam que a escolha de manter relacionamentos com outras pessoas é encarada com naturalidade por familiares e amigos monogâmicos. Eles afirmam não guardar o assunto em segredo e a transparência se estende, inclusive, aos dois filhos de Gi, de 23 e 16 anos, que moram com o casal. De acordo com o psicólogo Filipe Starling, este comportamento fortalece os laços entre todos.
— Quando participamos de uma comunidade não monogâmica, vemos que existem inúmeras pessoas que entendem que essa é uma opção plenamente legítima, assim como todas as outras. Cada indivíduo tem suas diferentes necessidades e todas elas merecem ser respeitadas e legitimadas — destaca.
Sem regras nem obrigações
Em um formato de relacionamento que definem como livre, a gestora de Recursos Humanos Andressa Rigotti, 36 anos, e o gestor de Marketing Digital Wesley Drecksler, 36, de Alvorada, também não têm dificuldades em admitir sua forma de viver o amor. Declaradamente apaixonados há 18 anos, eles moram juntos, têm um filho e, há quatro anos, eliminaram a ideia de hierarquia em suas relações.
— A gente se ama muito. Crescemos juntos, nos tornamos adultos juntos, construímos uma vida, mas isso não significa que nosso relacionamento seja mais importante do que os outros que temos. Acima de tudo, temos responsabilidade afetiva com todos e buscamos estudar, entender sempre a melhor forma de conduzir as coisas — explica Andressa.
Conforme Teca Curio, nesta dinâmica, não há centralidade ou norma alguma, sendo o respeito e a responsabilidade afetiva os fatores determinantes.
— Há acordos de convivência, mas nada de "pode" e "não pode". Cada um é livre para fazer suas escolhas e as pessoas estão todas no mesmo nível. Se me relaciono com alguém há anos ou há seis meses, não importa, são iguais — diz.
O dia a dia
A decisão de deletar a monogamia foi em comum acordo entre Andressa e Wesley, que dizem não ter tido problemas conjugais que os motivassem a isso. A vontade de conhecer outras pessoas e experimentar novas situações foi encarada como algo natural, abrindo espaço para a liberdade de envolvimento com outras pessoas.
— Não queríamos trair um ao outro nem abrir mão de seguir nossa vida juntos. Eu amo a Andressa mais do que nunca e sei que não tenho obrigação nenhuma disso. Somos leais um com o outro e temos certeza dos nossos sentimentos. Então, tanto faz se ficamos com outras pessoas — relata Wesley.
No começo, havia regras e, consequentemente, muitas brigas, segundo o casal. Quando os tópicos limitantes foram deixados de lado, garantem que tudo passou a funcionar bem.
Somos leais um com o outro e temos certeza dos nossos sentimentos. Então, tanto faz se ficamos com outras pessoas
WESLEY DRECKSLER
Gestor de Marketing Digital, em relacionamento livre há quatro anos
— Precisamos entender de onde parte o ciúme, a necessidade de posse. Muitas vezes, quando estamos em uma "bad", nos sentindo inseguros, transferimos isso ao outro. Tivemos discussões homéricas antes de entender que ninguém é dono de ninguém. Ele tem relacionamentos profundos, se entrega, e eu aprendo muito com isso. É o que faz sentido para nós — complementa Andressa.
Sem se apropriar do rótulo de trisal, eles hoje têm uma namorada em comum. Passam tempo juntos e também curtem momentos separadamente, com e sem ela. Pontuam, porém, que não se trata de algo recorrente. Normalmente, acabam se interessando por perfis diferentes, sem manter parceiros em comum.
— Nós dois nos apaixonamos por ela, mas até os pedidos de namoro foram feitos separadamente (risos). Nós temos estilos diferentes, então, é muito difícil isso acontecer. Eu terminei um outro namoro, de dois anos, recentemente, que não tinha envolvimento da Andressa, por exemplo — contextualiza Wesley.