Assunto constantemente em alta nas redes sociais, os relacionamentos não monogâmicos ainda são vistos com estranheza por muitos. Regras, sentimentos, comportamento: afinal, existe certo e errado no universo das relações afetivas?
Autor do livro Não Monogamia Responsável: Abrindo a Relação com o Cuidado que Ela Merece (2021), o psicólogo clínico e terapeuta de casais Filipe Starling explica, a seguir, a lógica destes formatos e como eles se encaixam na sociedade atual.
O número de pessoas que aderiram a relações não monogâmicas de fato aumentou nos últimos anos?
Apesar de não haver nenhum levantamento específico que quantifique este aumento, para nós, que pesquisamos e escrevemos sobre o assunto, é muito fácil constatá-lo. De fato está ocorrendo e acho que vários fatores ajudam a explicar. Um deles certamente são as redes sociais, que ajudam a propagar ideias e discussões sobre novas possibilidade de comportamento. Inclusive, muitas celebridades têm admitido vivenciar a não monogamia, como o ator Will Smith e a atriz Fernanda Nobre.
Outro fator que pode explicar este aumento está ligado à liberdade de expressão e à manifestação individual. As pessoas estão se sentindo mais à vontade para expressar sua singularidade e menos necessidade de se conformar às regras culturais que impõem a existência de uma única forma "correta" de se relacionar, de expressar a sexualidade, de identidade de gênero etc. Por esse mesmo motivo, estamos vendo as pessoas assumirem mais abertamente sua orientação sexual.
As pessoas estão querendo se libertar dessas amarras culturais que definem o que é certo e o que é errado, forçando todo mundo a seguir um modelo pré-estabelecido. Existem bilhões de pessoas no mundo, não é possível que um único modelo de relacionamento contemple as necessidades de toda essa diversidade. É importante que haja diferentes formas de relacionamento para contemplar as diferentes necessidades singulares de cada indivíduo.
Por que as relações não monogâmicas ainda são vistas com preconceito por tantas pessoas?
Em grande parte, isso ocorre por conta da tradição cultural. A mudança de costumes leva tempo para acontecer. Sempre existe uma resistência quanto à mudança dos valores já consolidados ao longo do tempo. Foi o que aconteceu em 1977 quando estava em discussão a lei do divórcio, por exemplo. Houve muita resistência. Também houve muita resistência para a aceitação da expressão homossexual, que ainda hoje sofre muito preconceito.
O novo gera medo, e as pessoas se protegem desse medo através do preconceito, que é uma tentativa de negar o novo, de invalidar o diferente. Nós julgamos negativamente o diferente como uma tentativa de nos sentirmos seguros afirmando a visão de mundo que consideramos que seja a correta, a legítima, a normal. A não monogamia sempre ocorreu em toda história humana, a questão é que ela sempre ocorreu por baixo dos panos, de forma não consensual, escondida. Agora estamos tendo a possibilidade de experimentar uma não monogamia consciente, ética, responsável e cuidadosa.
Qual é a melhor forma de lidar com este julgamento?
Penso que a melhor maneira seria se aproximar de pessoas que comungam das mesmas ideias, dos mesmos valores e ideais de vida. Pertencer a uma rede de pessoas que pensam semelhante ajuda o indivíduo a se fortalecer para enfrentar o julgamento dos outros. É muito difícil para uma pessoa sozinha lutar contra a maré, navegar pelo contrafluxo. Mas, quando vemos que são várias pessoas vivendo dessa mesma forma, nos sentimos fortalecidos para enfrentar todo esse julgamento. Quando participamos de uma comunidade não monogâmica, vemos que existem inúmeras pessoas que entendem que essa é uma opção de relacionamento plenamente legítima, assim como todas as outras. Cada indivíduo tem suas diferentes necessidades e todas elas merecem ser respeitadas e legitimadas.
É permitido sentir ciúme em relações não monogâmicas?
Mesmo que não fosse permitido, ainda assim as pessoas sentiriam ciúme, já que não é algo que possa ser controlado. Não escolhemos o que sentimos, apenas constatamos o sentimento. Certamente o ciúme existe tanto nas relações monogâmicas quanto nas não monogâmicas. É um sentimento universal, mas em grande parte aprendido culturalmente. Somos ensinados que devemos ter ciúme quando estamos namorando, até mesmo como uma prova de amor, pois há quem acredite que se o outro não sente ciúme ele não nos ama — o que é um grande equívoco.
Se todos nós houvéssemos nascidos em famílias cujos pais tivessem relacionamentos não monogâmicos consensuais, certamente o ciúmes não seria tão comum. Mas, desde criança, aprendemos o contrário, aprendemos a sentir segurança apenas através do controle do outro. Por isso, colocamos uma cerca em volta da relação, para ter certeza de que ninguém vai escapar. Quando alguém escapa, dizemos que o outro "pulou a cerca", ou seja, fugiu da prisão.
A melhor forma de lidar com o ciúme é, em primeiro lugar, aceitar e reconhecer o que está sentindo. Acolher os sentimentos cria espaço interno para lidar com eles. Respire fundo, sinta seu corpo e perceba que você não se resume a essa emoção. Depois, é importante fazer um trabalho de autoconhecimento para entender melhor esse sentimento. É importante se perguntar o que pode estar por baixo do ciúme. Você está se sentindo deixada de fora? É inveja porque o outro está fazendo algo que você não está conseguindo fazer? É uma necessidade de controle, de possessividade? Você está se comparando com alguém e se sentindo diminuída por causa disso? Você está se sentindo ameaçada ou desrespeitada? Aconteceu alguma coisa específica que ativou seu ciúme? Qual foi o gatilho?
Outra coisa muito importante é o diálogo com o parceiro, com amigas ou até mesmo com um terapeuta. A conversa ajuda na elaboração e na compreensão do sentimento. Muitos casais podem precisar de um apoio especializado nessa transição para a não monogamia para lidar com o ciúme e a insegurança. Nessa hora, a terapia de casal pode ser de grande valia.
O que é traição em uma relação não monogâmica?
Entendo que traição em geral significa enganar o outro, mentir, ser desonesto. Nas relações não monogâmicas é a mesma coisa. Quando existe mentira, quando existe uma quebra de acordos pré-estabelecidos, quando existe enganação, podemos dizer que há traição. Se não tem enganação, não existe traição. Se está tudo acordado consensualmente, então o que existe é honestidade, sinceridade e transparência.
É preciso desconstruir o amor romântico para se relacionar de forma não monogâmica?
Sim, em algum nível essa ideologia do amor romântico terá que ser desconstruída, pois uma das características deste modelo é que nele a derivação de todas as necessidades do indivíduo passa a vir do casamento. É justamente por isso que a exclusividade sexual é tão importante no modelo do amor romântico, porque ela confirma que o outro pode satisfazer todas as nossas necessidades, não sendo necessário mais ninguém de fora. E quando alguém demonstra interesse por outro, isso abala os alicerces dessa idealização, pois implica que o parceiro ou a parceira não são tudo na vida um do outro.
As pessoas gostam de variar os estímulos. É por isso que não viajamos sempre para o mesmo destino nem comemos sempre no mesmo restaurante.
FILIPE STARLING
Psicólogo
Então, se abrir para a não monogamia significa reconhecer que o outro não tem como satisfazer todas as nossas necessidades, e isso não é uma falha de ninguém. É simplesmente como as coisas são. As pessoas gostam de variar os estímulos. É por isso que não viajamos sempre para o mesmo destino nem comemos sempre no mesmo restaurante. O desejo pela variação é natural no ser humano. Mesmo gostando muito de alguém, em algum momento pode surgir o desejo de transar com outra pessoa, de interagir afetivamente com outro indivíduo, etc.
Existem pessoas "mais propensas" à não monogamia?
Essa é uma ótima pergunta. Não tenho certeza da resposta. Certamente algumas pessoas se sentem muito confortáveis em um relacionamento monogâmico. Tem pessoas que realmente não têm interesse em interagir afetivo-sexualmente com outros enquanto estão em um relacionamento. Já há outras pessoas que sentem falta dessa liberdade, sentem falta da adrenalina, do jogo da conquista, de se sentir desejado, da aventura, da novidade.
Mas podemos pensar que de forma geral o ser humano tem essas duas necessidades: segurança e liberdade. Como explica a terapeuta de casais Esther Perel, "de um lado, nossa necessidade de segurança, previsibilidade, proteção, dependência, confiança e permanência, todas essas experiências fundamentais das nossas vidas que chamamos de lar. Porém, temos também uma necessidade igualmente forte, homens e mulheres, por aventura, novidade, mistério, risco, perigo, o desconhecido, o inesperado e a surpresa".
* Produção: Luísa Tessuto