É chegada a hora de tirar do armário o glitter, a purpurina, as lantejoulas, as fitas coloridas, as tiaras, os maiôs e os tutus. A festa de Momo, marcada oficialmente para o próximo final de semana, já toma conta das ruas da cidade desde meados de janeiro, deixando sobre o asfalto rastros de liberdade, alegria e cor. Mas no Carnaval das mulheres, a preocupação nunca diz respeito somente à fantasia. O machismo não tira férias, tampouco faz feriadão – nem mesmo durante a festa mais popular do planeta.
— O Carnaval dos meus sonhos é sem violência, no qual as mulheres se sintam seguras para usar a roupa que elas quiserem e fazer o que quiserem, sem medo do que possa acontecer —idealiza a psicóloga Gabriela Brack, 29 anos, uma das coordenadoras do Não Mexe Comigo Que Eu Não Ando Só.
O bloco carnavalesco, composto somente por mulheres, é uma entre as iniciativas que vêm buscando construir um Carnaval mais seguro e acolhedor para as porto-alegrenses. Isso passa não somente pela ocasião da folia em si, muitas vezes marcada por experiências de assédio, mas pela própria organização enquanto coletivo, sem homens para dar pitaco.
No Não Mexe, por exemplo, a batucada é toda comandada por percussionistas mulheres. São elas que tocam, cantam e tomam as decisões. Um cenário que difere da maioria dos blocos da cidade.
— Há uma grande quantidade de mulheres tocando e participando de blocos, mas as lideranças são quase sempre masculinas — reflete Gabriela.
— Aqui, a gente se sente à vontade para tocar, experimentar e aprender. Mas também percebo que nos cobramos bem mais por sermos um bloco feminino, o que não deixa de ser um reflexo do machismo. Temos que ser perfeitas em tudo, entregar um cortejo sem nenhum defeito e tocar perfeitamente, pois, no fundo, sabemos que qualquer deslize pode ser associado ao fato de sermos mulheres — completa.
A percepção é compartilhada pela musicista Raquel Pianta, 33 anos, professora e uma das coordenadoras do grupo de percussão feminina As Batucas. Experiente no meio da música, ela sinaliza que o caminho tende a ser mais tortuoso para as mulheres. Do rock ao Carnaval, a cobrança é sempre maior, ao passo em que o reconhecimento raramente vem na mesma proporção.
— Isso não é um apontamento, é um fato, ocorre em todas as áreas — defende Raquel.
— Um exemplo: nós sabemos que o evento de Carnaval, que fazemos há sete anos na cidade, poderia ser muito mais falado, prestigiado e visto se não fosse promovido por um grupo só de mulheres. É fato – cita a musicista. Entretanto, passados nove anos desde a criação do projeto, em 2015, é preciso também reconhecer as conquistas oriundas da caminhada.
— Hoje, temos gurias tocando em vários blocos, gurias que montaram banda, gurias que saíram d’As Batucas e seguem por aí fazendo música. Nada paga você ver as gurias tomando o protagonismo para si e felizes em cima do palco — celebra Raquel.
Iniciativas como o Bloco das Pretas somam a questão racial à pauta da participação feminina no Carnaval. A rapper, apresentadora e produtora cultural Negra Jaque, 36 anos, uma das idealizadoras do grupo, destaca que, historicamente, a festa de Momo reserva um lugar ornamental às mulheres, sobretudo às mulheres pretas.
Queremos ocupar todos os espaços, mostrar que tem pretas e Carnaval no Sul
RITA DE CÁSSIA
Bloco das Pretas
— Há uma hipersexualização dos nossos corpos. Nós somos as musas, aquelas que enfeitam, que deixam tudo mais bonito; quase nunca somos quem gerencia, administra, negocia ou pensa. Parece que o nosso lugar é sempre o da subserviência, nunca o da liderança — reflete Negra Jaque.
— Por isso que nós estamos aí, fazendo o nosso Carnaval (risos) — constata a influenciadora e produtora cultural Rita de Cássia Santos, 37 anos, também idealizadora do Bloco das Pretas.
— Nós entendemos o Carnaval como um espaço para celebrarmos a nossa cultura, autoestima e estética. A gente também precisa desses momentos de falar sobre a roupa que queremos usar, a maquiagem, o penteado que vamos fazer para o cortejo. Sair para bater perna no Centro atrás de adereço, sabe? Essas coisas nos fortalecem — relata Rita.
A cantora e atriz Glau Barros, 53 anos, que há sete realiza o baile temático CarnaGlau, vê na folia uma oportunidade para que as mulheres negras, frequentemente acionadas para falar das violências sofridas, mostrem que também são feitas de alegria, festa e Carnaval.
— É importante fazer a denúncia, mas também é importante mostrar que as mulheres pretas não são só dores. A gente é muito mais do que isso. Nós só estamos avançando nas nossas lutas porque somos mais do que isso. Caso contrário, não teríamos forças para seguir em frente — afirma Glau Barros.
Ou seja, a mulherada não reserva espaço para racismo, machismo e nenhum tipo de violência. Na “avenida” delas só há lugar para o respeito, a liberdade e a alegria. E quem não estiver de acordo, que se retire da festa.
A seguir, Donna conversou com idealizadoras de quatro projetos que buscam construir um Carnaval mais acolhedor e seguro para as mulheres festejarem em Porto Alegre.
Bloco das Pretas
O grupo foi idealizado em 2018 pelas amigas Negra Jaque, Rita de Cássia Santos e Taís Pereira de Goes, 31 anos, estudante de Psicologia afrocentrada e gestora de projetos. Ligadas à cultura do Carnaval pelo viés das escolas de samba, as três almejavam levar o recorte da negritude para a folia dos blocos de rua, muitos deles constituídos por uma maioria branca e oriunda da região central da cidade.
— A gente vem fazendo essa conexão entre o Centro e a periferia. Ensaiamos na Cidade Baixa, ensaiamos no Morro da Cruz. Queremos ocupar todos os espaços, mostrar que têm pretas e Carnaval no Sul e seguir quebrando esses paradigmas — explica Rita de Cássia.
O bloco se prepara para realizar, neste ano, seu primeiro cortejo pelas ruas da cidade – nos anos anteriores, as pretas não cumpriram trajeto, apresentando-se apenas com concentração fixa. No dia 10 de fevereiro, elas serão responsáveis por abrir oficialmente o circuito de blocos da Orla do Guaíba, a partir das 14h. Uma responsabilidade tão grande quanto o entusiasmo das gurias.
— Pensar que vamos estar na rua, em um espaço disputado como a Orla, levando cultura e alegria para as pessoas, é de uma grandeza sem tamanho, um felicidade que transborda — diz Negra Jaque.
— Só temos pela frente o desafio de levar o pessoal para a Orla às duas da tarde (risos). Quem for, eu garanto que não vai se arrepender — brinca a artista.
Jaque e Taís, as puxadoras do bloco, passam por samba-enredo, axé, pagode, funk, samba de roda, MPB, forró e pop brasileiro. O repertório abraça um pouco de tudo, para ninguém botar defeito, privilegiando sempre a autoria de artistas negras.
Contudo, na bateria e na harmonia que acompanham o bloco, a formação ainda é mista. As organizadoras encontram dificuldade para conseguir formar um grupo só com percussionistas que sejam mulheres negras – o recorte racial faz parte da identidade do Bloco das Pretas. É um sonho que fica para os próximos carnavais.
— Mulheres pretas que quiserem colar com a gente, aqui o espaço é aberto — convoca Negra Jaque.
As Batucas
Biba Meira, icônica baterista do rock gaúcho, conhecida por fazer história na música brasileira com a banda DeFalla, é a idealizadora d’As Batucas. O projeto surgiu a partir de um incômodo sentido por ela durante as aulas de bateria que ministrava: enquanto alunos homens nem bem aprendiam a tocar e já saíam montando suas próprias bandas, as mulheres, além de se cobrarem muito mais, quase não tinham experiências sobre o palco.
Na intenção de mudar tal cenário, Biba criou As Batucas, uma escola de música voltada somente para mulheres. Hoje, o grupo conta com cerca de 80 participantes.
São mulheres diferentes, dispostas a estarem juntas e aprenderem umas com as outras
RAQUEL PIANTA
As Batucas
Para participar, não é preciso saber tocar, cantar ou entender qualquer coisa de música. Não há nenhum pré-requisito, a não ser o gênero. Tanto é que o projeto tem integrantes de menos de 20 até mais de 80 anos, vindas das mais distintas realidades.
É isso que faz d’As Batucas, para além de uma escola de música, um espaço de troca e fortalecimento entre mulheres, conforme Raquel Pianta.
— As Batucas é um grupo que se forja na coletividade. São mulheres diferentes, dispostas a estarem juntas e aprenderem umas com as outras — define a coordenadora.
— Temos a possibilidade de trocar com mulheres que talvez a gente parasse para conversar porque são de uma outra faixa etária ou vivem em um local muito diferente. Hoje tenho amigas bem mais novas e bem mais velhas do que eu. Isso é a coisa mais incrível em fazer parte d’As Batucas — conta Raquel.
Apesar de não ter sua atuação restrita ao Carnaval, já que as atividades se estendem durante todo o ano, o grupo promove uma festa alusivo à folia todos os anos.
Antecipando os festejos, o Carnaval d’As Batucas foi realizado no último dia 20, na Banda Saldanha, com apresentação dos grupos de percussão, do grupo vocal e do grupo de dança.
Como já virou costume, o projeto saiu de férias após a realização do evento. O retorno está previsto para março, com matrículas abertas para novas integrantes. Mais informações estão disponíveis no perfil do Instagram @asbatucas.
CarnaGlau
Colocando o nome para jogo, a cantora Glau Barros realiza, desde 2017, o seu CarnaGlau. São dois dias de festa no Café FonFon (Rua Vieira de Castro, 22), nos quais a artista apresenta repertório composto por marchinhas, sambas-enredo e música popular brasileira, entre outros gêneros que prometem transformar o FonFon em salão de baile, sempre com a participação de convidados.
Neste ano, o evento ocorre nos dias 9 e 10 de fevereiro, a partir das 21h30min, com direito a concurso de fantasia entre os foliões. Os ingressos estão à venda pelo site Sympla e diretamente no Café FonFon.
A cena só está mais fortalecida porque as mulheres abriram o próprio caminho e foram levando outras consigo
GLAU BARROS
Cantora
— A festa vai até altas horas e todo mundo vai se divertir — promete Glau Barros.
Figura reconhecida no samba gaúcho, a cantora vê com bons olhos a cena feminina do gênero no Estado. Ainda há muito o que conquistar, mas, segundo ela, o cenário vem melhorando, com aumento significativo da representação de mulheres se comparado ao período em que iniciou sua trajetória na música.
Glau atribui as conquistas à luta das mulheres. Nada veio de graça ou foi fruto da boa vontade patriarcal. Pelo contrário: tudo foi reivindicado com suor e, sobretudo, com talento. Quando foi preciso, elas construíram os próprios palcos – assim como fez Glau com o CarnaGlau.
— Se hoje a gente tem visto mais mulheres fazendo samba e colocando as suas composições na rua é por conta de uma mobilização que partiu de nós mesmas — analisa.
— A cena só está mais fortalecida porque as mulheres abriram o próprio caminho e foram levando outras consigo. Até porque, se a gente fosse depender só de nos chamarem, seguiríamos invisibilizadas. Ainda mais enquanto mulheres negras. As portas são ainda mais fechadas.
Para o futuro, o sonho de Glau é conseguir realizar uma edição do CarnaGlau aberta ao público, ocupando livremente as ruas.
Não Mexe Comigo Que Eu Não Ando Só
O Não Mexe Comigo Que Eu Não Ando Só surgiu, em 2016, com a intenção de criar um ambiente seguro para que as mulheres pudessem aproveitar o Carnaval sem se preocuparem, por exemplo, com o assédio.
O próprio nome do bloco deriva, infelizmente, de uma experiência do tipo: ao fim da primeira reunião para criação do coletivo, um grupo de homens começou a “mexer” com as gurias que estavam reunidas; na tentativa de espantar os inconvenientes, as integrantes entoaram Carta de Amor, canção de Maria Bethânia que traz justamente o verso que acabou por batizar o bloco.
Não tem como não sermos também um espaço de luta, um espaço de acolhimento para as mulheres
GABRIELA BRACK
Não Mexe Comigo Que Eu Não Ando Só
Desde então, o Não Mexe comanda anualmente cortejos pelas ruas da cidade, atraindo público majoritariamente feminino. O último cortejo ocorreu em 25 de novembro, Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres. E o próximo já tem data marcada: em 2 de março, na Orla do Guaíba.
O bloco conta com bateria, naipe de sopros e harmonia. Todos os setores são compostos exclusivamente por mulheres, que mandam ver em instrumentos como xequerê, rocar, agogô, repinique, caixa, surdo, guitarra, baixo, cavaco, trompete e saxofone. Há ainda as gurias “do terror”, responsáveis pela performance artística.
— Quem não toca instrumento, toca o terror (risos) — explica Gabriela Brack, uma das organizadoras.
O repertório privilegia artistas mulheres e a porta está sempre aberta para quem quiser se juntar ao grupo, seja para pular folia despreocupada ou participar da organização do bloco. O contato pode ser feito pelo Instagram @naomexecomigoque. Conforme Gabriela, o espaço extrapola o pretexto do Carnaval:
— A gente carrega uma pauta muito importante e não tem como evitá-la, não tem como não sermos também um espaço de luta, um espaço de acolhimento para as mulheres. Temos a preocupação de tocar, de fazer os arranjos, mas volta e meia, dentro do bloco, a gente se depara com questões que são muito mais importantes.