Antes mesmo do lançamento do filme Barbie, nesta quinta-feira (20), foi gerado um buzz pelo qual é difícil passar despercebido, em pleno 2023: das grifes às lojas de departamento, das marcas de calçados às linhas de acessórios, araras e prateleiras estão repletas de rosa-choque e brilho. Na internet, mais de 39 milhões de pessoas já viram o trailer e é difícil não topar com trends que tenham a ver com a boneca – em algumas, fãs montam os looks que pretendem vestir para ir ao cinema.
Até o Starbucks incluiu um café temático, cor-de-rosa, no seu menu secreto. São sinais de que a personagem de 64 anos continua a mover paixões, culturas e mercados.
— Quando se fala “Barbie”, todo mundo sabe do que se trata, em várias partes do planeta. Ela é um ícone da cultura pop, assim como Mickey, por exemplo. E hoje a Barbie também vai se relacionar muito com as pessoas na faixa dos 30 ou 40 anos pela questão da nostalgia, que é um elemento de venda muito forte — afirma Adriana Amaral, coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Cultura Pop (Cultpop) e professora de Comunicação da Universidade Paulista (Unip).
E a atriz Margot Robbie, que interpreta a protagonista no longa, está longe de ser a única boneca de carne e osso. Há anos o fascínio pelo universo Barbie incentiva artistas a criarem versões humanas da personagem e duas delas – que vivem e atuam no Rio Grande do Sul – toparam conversar com Donna sobre essa vivência.
Também entram no debate uma psicóloga e um time de pesquisadoras em comunicação, moda e mercado, que trazem outras tintas além do rosa, na tentativa de compor um quadro mais completo da relação entre a Barbie e a construção da identidade de meninas e mulheres.
Versões humanas
A boca rosada, o cabelo loiro, a maquiagem artística que aumenta os olhos e dá ares de boneca: para Leticia Leszczynski, montar-se de Barbie é como atravessar um portal para chegar a um lugar onde tudo é brilhante e bonito.
Do lado de lá, a advogada e jornalista de 44 anos se transforma na Barbie Leticia Swarovski e realiza sonhos pendentes da infância. Natural de Seberi, no norte do Estado, e vinda de uma família pobre, a única boneca a que tinha acesso pertencia a uma vizinha – e para não ficar sem ter com o que brincar, encontrou uma solução artesanal.
— Não tive oportunidade de ter uma, mas tinha muita paixão. Dei um jeito de criar minha coleção de “Barbies de milho”, pegando espigas na fase em que os cabelos crescem e vão mudando de cor, do claro ao avermelhado. Brinquei a infância inteira assim — conta.
Já adulta, em suas palavras, “para não ficar estranho uma mulher feita comprando bonecas”, Leticia relata que usou o fato de ter filhas como argumento para adquirir alguns modelos, inicialmente versões piratas e depois originais. Da primeira Barbie autêntica – uma Rapunzel –, a coleção se expandiu e já conta com pelo menos cem exemplares.
As aquisições mais recentes são personagens do novo filme, como a que veste o macacão dourado Gold Disco. De caso muito bem pensado, a peça serviu de inspiração para o figurino de Leticia na sessão de fotos para esta reportagem.
Moda e beleza, no entanto, são apenas dois aspectos dessa figura adorada pela gaúcha. Há também o slogan “Seja quem você quiser ser” e as centenas de vivências e profissões que assumiu ao longo das décadas, que serviram de motivadores.
— A Barbie vai além da beleza. É mãe, arquiteta, advogada, tem um monte de profissões que, para mim, sempre reforçaram que podemos ser o que a gente quiser. Me tornei uma pessoa bem-sucedida e responsável, tenho profissão, carro, casa, minhas filhas e meu marido. Evoluí tanto que cheguei a uma época da vida em que pensei: “Não vou me preocupar tanto com o que os outros pensam e vou buscar o que gosto” — celebra.
Assim começou a ideia de ser uma Barbie humana, que já dura nove anos. Além da realização pessoal, imitar a boneca hoje é tanto um negócio quanto uma ação voluntária. Leticia faz parte da Pink Tour, um grupo de artistas interessados neste universo, liderado pelo colecionador de bonecos Ken Bernardo Guedes.
Com eles, realiza viagens pelo Rio Grande do Sul e outros Estados brasileiros, participa de eventos em empresas, faz “presenças VIP”, tira fotos com adultos fãs, além de visitar entidades que atuam na assistência de crianças.
— Lembro de uma menina que chegou para mim e disse, muito feliz: “Vi todos os teus filmes!”. Mexeu comigo, foi um marco para começar a me transformar e fazer o que realmente queria, que era trabalhar com crianças, satisfazer o meu sonho de ser uma Barbie e trazer alegria para as pessoas dessa forma — revela.
No entender da pesquisadora Adriana Amaral, envolver-se profundamente em contextos diferentes, como o da Barbie, pode ajudar a conquistar realização em diferentes áreas da vida.
— Às vezes, esse afeto ou o hábito de colecionar faz com que as pessoas ampliem o seu mundo de uma forma que talvez não conseguiriam de outro jeito. Há pesquisas mostrando que pessoas que são fãs e participaram de fandoms, muitas vezes, desenvolvem habilidades que depois acabam ajudando-as no trabalho. É algo importante tanto na formação de identidade pessoal quanto profissional — aponta.
Representatividade
A porto-alegrense Bruna Campos, 18 anos, transita entre o samba e o mundo Barbie com a naturalidade de quem está no salto alto há muitos anos. Atual Segunda Princesa do Carnaval de Porto Alegre, da escola Fidalgos e Aristocratas, a designer de moda é também Barbie Negra, a personificação de um tipo raramente encontrado nas prateleiras de anos atrás.
— Sempre amei a boneca, mas me perguntava: “Por que tem branca, homem, mas negra, igual a mim, não?”. Lembro da minha mãe rodar Porto Alegre e não conseguir uma para mim — relata.
A passos lentos, a situação foi mudando. As coleções tornaram-se mais inclusivas e hoje a Barbie da Restinga é abraçada em eventos por meninas que levam suas bonecas pretas. Segundo Bruna, ver o brilho no olho de quem se reconhece nela é uma motivação para continuar.
— Fico emocionada quando uma menina me encontra e fala: “Bruna, te sigo, você é minha inspiração”. Elas, como eu, estudam em escola pública e têm menos condições, então tudo é mais difícil. Mas elas têm esperança e veem representação em mim, e me sinto muito feliz. Ser uma Barbie negra é mostrar que nem tudo é conto de fadas, mas que é possível transformar sonhos em realidade — reflete.
Mutação
A professora da ESPM Cátia Ines Schuh realizou em 2003 uma dissertação de mestrado com o tema “44 anos de Barbie”, para a qual investigou como o produto consegue manter-se vivo no mercado por tanto tempo. Uma das conclusões foi de que trata-se de um “mutante”, alguém que se adapta para acompanhar a sociedade da sua época.
Passados quase 20 anos da conclusão do trabalho, a pesquisadora tornou-se também mãe de menina e voltou a frequentar os corredores das lojas de brinquedos. Sua percepção é de que, atualmente, as mudanças ocorrem em ritmo mais acelerado.
— Nos últimos 10 anos, aproximadamente, a Barbie talvez tenha se adaptado mais do que em outras décadas inteiras. Deu um salto de adaptação para o público contemporâneo. Hoje, vemos nas lojas Barbies mais gordinhas, em cadeiras de rodas, negras, carecas, em modelos andróginos, coisa que há 20 anos existia somente em coleções particulares e sites de colecionadores. Acredito que as crianças contemporâneas tenham exigência por essa nova visualidade, por modelos diferentes daquela Barbie idealizada, e têm uma maior aceitação e adaptação a esses novos modelos — explica.
O que motivou tais transformações, para a especialista em cultura pop Adriana Amaral, foi a demanda da sociedade por opções que reflitam uma gama maior de corpos, raças e vivências, aliada à percepção da fabricante, Mattel, de que seria necessário adaptar-se para continuar relevante no mercado.
— Assim como tem acontecido com todas as marcas, seja de brinquedos ou outras coisas, as pessoas começaram a fazer críticas e a querer se ver representadas naqueles produtos, e isso faz uma pressão. Para não perder dinheiro, a marca acaba tendo que dar uma resposta —pontua a pesquisadora.
Contraditória
Quando foi criada pela Mattel, em 1959, a Barbie rompeu o padrão das bonecas da época, que imitavam bebês de colo, em sua maioria. Na opinião da psicóloga Marisa Marantes Sanches, diretora do Instituto de Terapia Cognitiva em Psicologia da Saúde (Itepsa), ela surge de modo quase provocativo, como uma adulta dotada de certa sensualidade e estimulando ideias que, até então, não eram relacionadas a brinquedos.
— Ela aparece quase que dizendo que “é possível ser diferente desse modelo de dona de casa, de mulher pacata”, e isso também foi alvo de uma enxurrada de críticas. A Barbie traz muito sobre autonomia, ela se ama, se curte, trabalha, estuda, é uma boneca com personalidade. O outro, o Ken, até pode chegar para complementar, mas não é ele quem vai fazê-la feliz ou mudar a forma como vê o mundo — discorre.
Ao longo das décadas, a boneca foi alvo de críticas por sua cintura fina, pernas longas e proporções de corpo humanamente inatingíveis, que levantaram debates acerca dos impactos na autoimagem das meninas.
Para Paula Puhl, professora da Escola de Comunicação, Artes e Design da PUCRS, é indispensável pensar que a Barbie é um produto do seu contexto: um cenário pós-guerra, em que a objetificação da mulher era uma realidade e no qual havia busca por luxo e exuberância.
— Ela é lançada no fim dos anos 1950 e é um produto bem dessa época. Nessa boneca adulta temos um corpo estereotipado, uma mulher alta, magra, loira, de olhos claros, que consegue estar sempre bem arrumada dentro de casa. Acredito que, sim, isso acabe influenciando na visão de gerações do que seria um corpo “perfeito” e “desejável”. Por isso, não podemos deixar de ter uma leitura mais crítica — avalia.
A pesquisadora de moda e comunicação entende que a marca fez o seu dever de casa, de certa forma, quando ampliou e diversificou suas linhas de bonecas. Mas, segundo ela, não quer dizer que a visão original tenha desaparecido do imaginário das pessoas. Tanto que propõe o questionamento: qual é a figura que vem à sua mente ao pensar na palavra Barbie?
Rosa que choca
Se por um lado pode ter “pecado” em contribuir para a busca de um corpo impossível, por outro, Barbie foi criando – para si e para quem a admira – novas possibilidades de existir no mundo. A moda foi uma de suas aliadas nesse processo, segundo Paula Puhl.
— A cor rosa traz glamour, esteve muito presente em coleções de Valentino, por exemplo, e da estilista Elsa Schiaparelli, que foi quem criou o tom rosa-choque, uma cor que tem a ver com o empoderamento da mulher. Então, a Barbie, com esse rosa, traz também a questão de poder ser glamourosa, marcante, de ser percebida — argumenta.
Contribuindo para a atmosfera de encantamento característica de tudo o que está relacionado à boneca, com o passar do tempo, ela foi vestida por dezenas de grifes e designers, como Vivienne Westwood, Alexander McQueen, Christian Dior e Dolce e Gabbana. Ela também tem os pés em posição de meia-ponta, já que sua modelagem é feita para acompanhar um sapato de salto alto – algo que também contribuiu para essa idealização, de acordo com Paula Puhl:
— Bem ou mal, as pessoas buscam nostalgia, uma fuga da realidade. É algo que vemos em todas as manifestações culturais de mainstream. A Barbie faz parte de um mundo imaginário, lúdico e perfeito, e funciona como uma fuga.