Desde fevereiro deste ano, cresce em ritmo mais acelerado o número de buscas na internet pelo termo red pill (do inglês, pílula vermelha), expressão que tem origem no filme Matrix (1999). Na trama, o protagonista Neo deixa de lado a pílula azul, que lhe permitiria continuar vivendo num mundo de ilusão, e opta por usar a vermelha, que garante a consciência da realidade.
Fora das telas, o termo tem sido utilizado há pelo menos 10 anos por homens que fazem parte de grupos masculinistas, ou seja, que supervalorizam os valores da masculinidade. Eles se opõem a um suposto sistema que "favorece as mulheres", do qual tomaram consciência.
Segundo a pesquisadora Joanna Burigo, professora do MBA em Diversidade e Inclusão da Universidade La Salle e autora de Patriarcado Gênero Feminismo (2022), movimentos organizados que propagam discursos de ódio contra as mulheres não são novidade, e ocorrem pelo menos desde 1980.
— É um movimento amplo que contempla os redpillados e outros, como os Celibatários Involuntários (Incells) e os MGTOW, sigla em inglês para “homens seguindo seu próprio caminho". São movimentos misóginos e machistas que se organizam pela internet, em grupos ou a partir de um líder carismático, de maneira a criar narrativas de que eles sejam as grandes vítimas das relações de gênero, um entendimento muito equivocado e falacioso — afirma a pesquisadora.
Um destes redpillados é o coach de masculinidade Thiago Schutz, que em seu perfil no Instagram, Manual Red Pill Brasil, compartilha com cerca de 340 mil seguidores sua visão sobre como tratar as mulheres e como a "pretendente" ideal deveria agir e se comportar. O público brasileiro mais amplo tomou conhecimento de sua existência recentemente, quando a atriz e roteirista Lívia La Gatto registrou boletim de ocorrência contra ele em São Paulo por ameaça.
Por meio de mensagens privadas nas redes sociais, Thiago a advertiu: “Você tem 24 horas para retirar seu conteúdo sobre mim. Depois disso, processo ou bala. Você escolhe". Ele se referia a vídeos em que a artista satiriza suas falas – porém, sem citar nomes.
Após o envolvimento da polícia no caso, Schutz publicou um vídeo argumentando não ter dito “bala no sentido literal". Ao portal g1, a advogada de Lívia afirmou que entrará com pedido de medida protetiva contra o influenciador.
O conteúdo
Em uma das publicações de Lívia, que data de fevereiro, a atriz aparece como o personagem Gabizera Campari e debocha de um vídeo de Thiago que viralizou nas redes sociais. As imagens são de uma entrevista de Schutz ao podcast Buteco e relata um episódio de sua vida amorosa para exemplificar suas teorias.
— Eu tomando o meu Campari e a mina tomando uma breja (cerveja). (Ela disse:)“Ah, mas se eu pagar, você toma comigo?”. E eu falei: “Ah, mano, não vou tomar agora. Estou tomando Campari”. (Ela:) “Pô, mas você não toma comigo?”. Eu: "Mano, eu não tomo, entendeu?". Então, assim, a mulher tem muito a coisa de tentar moldar, colocar o cara debaixo dela — diz Thiago, em um trecho.
Por conta da repercussão na internet, apelidos como o “coach do Campari” passaram a definí-lo em milhares de comentários e discussões provocadas na rede. O fato, inclusive, incomodou a marca italiana de bebida.
Em nota, a companhia diz não ter vínculo com Thiago, além de se solidarizar com mulheres envolvidas no “caso de misoginia e ameaças”. Diz ainda que “rechaça veementemente toda atitude preconceituosa e violenta manifestada pelo influenciador”.
Discurso de ódio
Os males do mundo têm sido atribuídos às mulheres há milênios. Basta olhar para as histórias de Pandora, Eva, Medusa. E quando movimentos como o red pill ganham campo, conforme defende Joanna Burigo, eles consolidam narrativas falaciosas de que as mulheres são más, rivais entre si e existem para tirar vantagem dos homens.
E ainda que eventualmente existam mulheres que se encaixem no perfil “aproveitador”, lembra a pesquisadora, fato é que os números contam outra história. Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2023 mostrou que são registrados 822 mil estupros por ano no Brasil.
Segundo a pesquisa “Visível e invisível: vitimização de mulheres no Brasil” do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, todas as formas de violência contra mulher aumentaram em 2022, atingindo principalmente as negras, divorciadas e com filhos.
— Falta muito mais o nome do pai nas certidões de crianças do Brasil do que da mãe. A maioria das famílias chefiadas por uma pessoa só é comandada por mulheres, e muitos homens mal pagam pensão pelos filhos. Esses coaches se beneficiariam muito de dar uma conferida nos números da realidade para entender que, por mais que seus ressentimentos causem uma série de maus sentimentos em relação às mulheres, isso é uma questão a ser resolvida em terapia. Socialmente, precisamos mesmo é de políticas públicas que protejam as mulheres e meninas, as maiores vítimas de infanticídio, de tráfico sexual e de controle social — aponta Joana.
Ainda conforme a pesquisadora, fazer pouco caso de discursos de ódio dirigidos a elas contribui para um cerceamento da sua liberdade, através da naturalização de que “está tudo bem” odiá-las, demonizar a forma como expressam sua sexualidade, chamá-las de “p*ta” e “piranha”, julgá-las pela aparência das suas curvas e unhas.
— Quando a gente permite que se sedimente um discurso de ódio, naturaliza que elas recebam, em média, 70% do valor que um homem ganha pelo mesmo trabalho. Ou que tenham que sair de casa segurando molho de chave como se fosse um soco inglês, já que correm o risco de serem estupradas. Com tudo isso, estamos causando um impacto negativo na vida das mulheres. Precisamos desenraizar a naturalização de uma série de diferenças sociais que as colocam em posições de vulnerabilidade, e que beneficiam homens em detrimento delas — conclui.