Em 20 anos trabalhando com exames de mama, foram poucos os dias em que a técnica em radiologia Marli Dias de Oliveira, 54 anos, entrou na sala do mamógrafo sem fazer o sinal da cruz, pedindo que Deus a livrasse do câncer de mama. Especialista em mamografias, ela torcia para jamais detectar nas próprias imagens aquilo que observou tantas vezes nas das mulheres que atende no Hospital Regina, em Novo Hamburgo.
Para dar uma força à fé, Marli inseriu-se no rito de proteção montando uma agenda: como seu aniversário é em 8 de junho, estipulou o oitavo dia de cada mês para o autoexame. Para além disso, faz mamografia anualmente, sem jamais pular uma data.
Foi por conta desse rigor no autocuidado que aprendeu o suficiente para perceber, em fevereiro de 2018, que algo não estava certo. O ritual não foi capaz de blindá-la da doença, mas foi crucial para que descobrisse rapidamente um nódulo e pudesse ter um tratamento bem-sucedido:
— Eu mesma fiz o exame, posicionei-me na máquina e tive ajuda de uma colega para disparar o raio. Nós vemos as imagens sempre antes dos médicos e, em 20 anos, fui me aprimorando. Portanto, quando olhei meu exame, já sabia o que era. A primeira sensação é de que o teu mundo acaba. Mas nunca pensei: “Ai, Deus, por que eu?”. Sou um ser humano como qualquer outro, pode acontecer — reflete.
Assim como Marli, a ginecologista especialista em oncologia Wilma Mendonça, 45, de Torres, frequentemente atende mulheres com câncer de mama e enfrentou a doença. O diagnóstico veio num período em que seu emocional estava abalado: em outubro de 2020, após sofrer um aborto enquanto tentava ter o seu segundo filho, ela foi a uma consulta ginecológica para verificar a saúde do útero e acabou descobrindo um nódulo no seio.
Ao longo desta matéria, as duas profissionais da saúde falam às leitoras de Donna sobre o desafio de assumirem o papel de paciente, e explicam como suas vidas se transformaram após o tratamento contra o câncer.
Do outro lado
Ao saber do diagnóstico, relatam as entrevistadas, a vontade maior é de partir direto para a cirurgia. Para a ginecologista, o processo ocorreu exatamente assim: foi operada para a retirada de dois nódulos da mama direita e depois fez oito sessões de radioterapia. Wilma revela que entendeu rapidamente que o melhor a fazer seria entregar a responsabilidade por seu tratamento ao médico de sua confiança.
— Eu já sabia como seria, é o meu trabalho. Mas, naquela hora, disse ao médico: “Me explica o passo a passo, como se eu não soubesse nada. Preciso que faças o que achares melhor e não quero dar palpite, me trata como paciente mesmo. Só me diz o dia da operação e vamos lá” — relembra Wilma.
Já o instinto da técnica em radiologia foi agir – é difícil abrir mão do controle quando já se sabe o que vem após o diagnóstico. Marli adiantou processos e chegou à consulta com o mastologista com os exames pré-operatórios feitos. Estava convencida de que deveria ser operada e precisou assimilar que quem daria as cartas seria o médico, que acabou optando por seguir a ordem quimioterapia, cirurgia, radioterapia.
— Ele falou: “Não, Marli, agora tu não trabalhas. Agora és paciente e eu digo o que a gente vai fazer”. Então, num primeiro momento, fui fazendo coisas por conta, mas depois me entreguei. Encarei a doença sabendo que não poderia me vitimizar, e sim ter garra e força. Nunca disse “Tenho uma doença”. Dizia “Tenho um diagnóstico e preciso resolvê-lo” — aponta Marli.
Com o avançar do tempo, foi se tornando necessário o afastamento do trabalho para focar na saúde, mas as duas resistiram no início. Wilma, por exemplo, inicialmente se manteve trabalhando meio turno. Foi somente quando teve covid-19, no meio do tratamento, que aceitou fazer uma pausa para se cuidar.
Jogando limpo
As duas entrevistadas fazem questão de recomendar que as mulheres não se isolem durante o tratamento contra o câncer de mama. Wilma lembra que, assim como sempre recomendou às suas pacientes, antecipou-se para contar ao filho (de sete anos, à época) sobre a situação que enfrentava. O esforço foi para protegê-lo de receber informações de outras pessoas e também para evitar afastar-se da família.
Ela diz ter usado seu conhecimento médico como ferramenta para explicar da forma mais honesta possível:
— Cheguei a desejar o benefício da ignorância. Às vezes, não saber tanto sobre a doença é melhor. Por outro lado, o saber me ajudou a explicar para minha família o diagnóstico, falar o que eu iria fazer e por que acreditava que tudo ficaria bem — pontua.
A técnica em radiologia também contou com o carinho dos familiares, dos colegas e dos pacientes que encontrava no hospital. Mas o maior presente, ressalta, foram suas amigas que se juntaram em um grupo “informal” de apoio e se reunia a cada 15 dias para chás e almoços. Quando seus cabelos começaram a cair por conta da quimioterapia, elas fizeram questão de usar turbantes, em um gesto de solidariedade.
— Elas nunca me desampararam nem me deram pena. Me deram força. Consegui, inclusive, me sentir bonita careca — conta Marli.
Transformação inevitável
O Outubro Rosa é um período em que Wilma se dedica, há anos, à conscientização, ministrando palestras e participando de transmissões ao vivo pela internet. Foi também em outubro que ela descobriu estar com câncer de mama, há dois anos.
Isso, às vezes, traz à tona antigas angústias. Zelando pelo seu bem-estar, este ano, ela decidiu reservar uma semana para férias.
— Não dei muito espaço para a parte triste da história. Levo sempre com leveza e me cuido, faço muito exercício. Mas hoje, a cada vez que fecha um ano desde que tive a doença, repenso várias coisas. O mês de outubro é difícil para mim, então é uma semana a menos em que eu lido com esses temas — relata a médica.
Já no consultório, as mudanças foram positivas. Por ter visto de perto o sofrimento dos seus entes queridos, Wilma passou a incluir mais as famílias das pacientes nas consultas, insistindo para que se façam presentes.
— Quando vou dar o diagnóstico, sempre pergunto se a pessoa quer trazer a família junto para eu explicar a eles também. Sei, pela minha experiência, que os maridos sofrem muito com o diagnóstico das esposas, e não é só sobre aquela coisa de tirar o seio, pois os tratamentos têm preservado mais a mama. Muitas vezes, os homens têm dificuldade de compreender como será o processo. É importante que participem — argumenta.
Faltam poucos anos para a técnica em radiologia Marli se aposentar. No entanto, afirma que nunca sentiu tanto entusiasmo nem nunca viu tanto sentido em seu trabalho quanto atualmente.
A profissional, que já era detalhista na hora de conduzir a mamografia, agora soma ao seu atendimento a empatia. Passou a entender melhor, por exemplo, a dor de uma mulher que chega um pouco constrangida, sem querer tirar o lenço da cabeça.
— As pessoas acharam que eu não voltaria ao trabalho, mas voltei com toda a garra e toda a força, porque sei que tenho que ajudar outras pessoas. Encarei a doença como uma pós-graduação, pois passei a prestar muito mais atenção às pessoas, me tornei mais humana. Quando tu fazes um trabalho repetitivo, às vezes, podes ficar um pouco mecânica, mesmo diante da queixa de alguém. Passei a ter um olhar mais carinhoso a quem atendo — afirma.
Prevenção
Há uma coincidência importante entre Marli e Wilma: ambas descobriram a doença cerca de um mês antes do dia em que tinham suas mamografias anuais marcadas no calendário. Conforme explica Wilma, isso quer dizer que, mesmo que não tivessem percebido os nódulos por meio do toque, muito provavelmente constatariam o mal dali a poucos dias. Por isso, deixa um recado sobre a importância de se comprometer com as estratégias de prevenção:
— A gente tem que se cuidar, se tocar e se conhecer para perceber se tem algo diferente. Desejo que as mulheres entendam que nós fazemos a mamografia com o objetivo de não haver nada ali. E, se houver, detectar super-rápido. O que não pode é deixar de fazer. Sempre digo que me curvo diante do mamógrafo e o acho lindo. Não por ser meu instrumento de trabalho, mas porque ele também me salvou — comenta a especialista em oncologia.