Seja por força das circunstâncias ou pelo sonho de trabalhar por conta própria, a pandemia de coronavírus mostrou-se um catalisador de negócios tocados por casais. O plano de crescer financeiramente, no entanto, envolve desafios que vão além do empreendedorismo, tendo como ponto central manter também saudável a relação a dois. E, na prática, muitas duplas comprovam que isso é possível.
— A grande vantagem é o desejo de prosperar juntos, a parceria e a confiança. Eles acabam se tornando um time, em que cada um traz a sua expertise para terem sucesso. Mas tudo depende de haver uma metodologia, que precisa ser exercitada dia a dia. É, por exemplo, cada um ter de forma bem clara as suas tarefas e responsabilidades, para que um não precise ficar cobrando o outro. Senão, criamse conflitos, desconfortos e parece que um é o líder e o outro é o subordinado — afirma a psicóloga Márcia Pettenon, especialista em terapia familiar e de casais.
Foi assim que Mayara Prestes e Guilherme Freitas Emerim – jogadores profissionais de futevôlei – se organizaram para construir a quadra de esportes de areia Arena FitFlow, em Porto Alegre, em agosto de 2021.
Os dois, que já eram parceiros de vida e pais de Antonella, três anos, passaram a ser também sócios que se orgulham de suas habilidades complementares: ela tem 30 anos, é formada em Administração de Empresas e faz toda a parte de planejamento, logística e gerência do negócio. Já Guilherme, 28, é professor de futevôlei há oito anos e ficou encarregado de ir em busca de alunos e estar junto deles na areia.
— Eu já dava aulas há um tempão, então sabia que a gente começaria o negócio bem, tínhamos 40 inscritos no primeiro mês. E a Mayara era a metade que faltava para o negócio. Desde o início, sempre foi mais eu em quadra e no relacionamento, e a parte de fechamento, listas, cobranças, pagamentos e estoque, com ela. Sou péssimo nisso, então, deu certinho, fechou perfeito — diz Guilherme.
Mayara complementa dizendo que a confiança é uma das chaves do sucesso.
— A gente não se mete no assunto do outro. Ele vai fazer o dele e eu sei que vai se sair bem, assim como ele confia no que eu faço. Não é um dando pitaco no (trabalho do) outro, deixamos fluir — conta Mayara.
A força de um time
Mayara revela que, no início, teve medo de que a sociedade estremecesse a relação e chegou a buscar aconselhamento psicológico. Hoje, ambos seguem alguns combinados, em benefício do business e do casamento.
— É difícil, são 24 horas juntos. No primeiro mês, deu faísca, tiro. Aí, implementamos a regra de que, quando estivermos bravos em casa, devemos tentar não trazer isso para a Arena. Aqui, vou sempre falar normalmente com ele e tratá-lo bem, mesmo que estejam rolando faíscas em casa — comenta ela.
Coordenar uma quadra em que os horários mais badalados são no final da tarde, à noite e aos sábados acaba forçando o casal a se alternar para “abrir e fechar a lojinha” e cuidar da filha. Para o momento família, fica reservado o domingo e, quando a ideia é sair para jantar a dois ou fazer uma viagem curta, a solução é contratar um freelancer para a Arena. A força da dupla também está em sua sintonia, conforme acreditam Mayara e Guilherme.
— Se não fôssemos apaixonados por esse esporte, não ia dar certo. É um amor em que ele me entende quando eu marco um jogo de última hora, e eu entendo ele. Quando estou jogando, ele está torcendo por mim e vice-versa — declara-se.
Cada coisa em seu lugar
Ir para casa e continuar convivendo com o colega de trabalho pode levar ao desgaste. Neste contexto, a psicóloga Márcia Pettenon reforça a importância dos acordos prévios.
— Percalços vão aparecer, mas o casal precisa saber desligar a chave do trabalho, que é um comando dado de forma racional. É tipo “então tá, fechamos empresa e agora voltamos à nossa vida pessoal”. É necessário um bom gerenciamento emocional para que não façam uma migração de conflitos — pontua.
Separar o setor conjugal do profissional, definindo o tempo do casal, da família e do trabalho, também é essencial para a saúde da dupla e do negócio, aponta a terapeuta. Trata-se de estipular uma espécie de “turno comercial” mesmo em casos de home office, onde a tentação de trabalhar a qualquer hora é grande.
— Se esse limite não for estabelecido, pode fazer com que situações de trabalho invadam os programas da família, frustrando expectativas e fazendo aparecer queixas e cobranças — explica ela.
Novos rumos
No início de 2020, quando a pandemia começou, a situação beirou o desespero para Gabriela Bremm Ribeiro, 31 anos, e Júnior Santos, 39, diretores da agência de viagens Let’s Go, que funcionava em home office, em Cachoeirinha. Segundo a empreendedora, o cenário era mais ou menos assim: contratos cancelados, receita praticamente zerada e muito tempo livre. E foi em meio a esta inércia que Gabriela teve um insight.
— Depois de três semanas, eu disse: “Júnior, te amo, mas estou cansada. Vou chamar mulheres que também estão e fazer uma viagem só com elas”. Em duas semanas, vendemos para 48 pessoas. Aprendemos a nos superar e foi aí que eu vi que somos p*ta empreendedores — relembra ela.
Na dinâmica do casal, a briga de egos não tem vez e um embarca com fé nas ideias do outro. Assim nasceram as chamadas viagens de nicho: a exemplo dos passeios exclusivos da mulherada, os empresários apostaram nas tours para famílias com crianças e para apaixonados por cruzeiros.
Tudo marcado para mais adiante, sob o argumento de que surgiria vontade de novos ares após o período de distanciamento social. A sacada deu tão certo que logo passaram a não dar conta da demanda e o trabalho acabou invadindo a rotina da casa.
— Chegou um ponto em que eu trabalhava da manhã à noite todos os dias. Nossa filha (Theodora, cinco anos) cobrava atenção, eu ganhei muito peso, passava 24 horas pensando na Let’s Go. Até que um dia, disse: “chega, precisamos nos reorganizar” — relata a agente de viagens.
No momento em que o volume de trabalho cresceu e as fronteiras entre vida profissional e pessoal ficaram mescladas, a ousadia de Júnior tomou a frente e eles montaram, em outubro do ano passado, uma sede física em Imbituba, Santa Catarina.
— Foi um peitaço, mas conseguimos contratar duas funcionárias. Também estamos aprendendo que é melhor separar os CPFs do CNPJ, especialmente nas contas. Antes, era muito misturado e hoje a ideia é que cada um tenha seu salário e a conta PJ fique só para a empresa — diz Júnior.
De acordo com Márcia Pettenon, esta é uma boa forma de evitar que o financeiro impacte negativamente a relação.
— Muitos casais adotam essa distinção entre o faturamento e o pró-labore dos sócios. Ela é importante para garantir a saúde da empresa e também o bemestar emocional da família — defende a psicóloga.
Dicas da especialista
• No próprio negócio, a disciplina, o comprometimento e o cumprimento de horários têm que ser respeitados da mesma forma que o casal faria se trabalhasse fora. É interessante que cada um assuma suas responsabilidades e faça suas entregas, como em uma empresa tradicional.
• Quando um se destaca muito mais do que o outro no trabalho, é preciso refletir: “será que ele(a) precisa colocar mais potência?”, “está faltando ativar o seu marketing pessoal ou fazer algum curso?”. São coisas que precisam ser alinhadas.
• Na empresa do casal, os dois acabam sendo RH, financeiro, relações públicas, gestão, liderança, comercial. Vale pensar em como isso vai ser distribuído, levando em conta a expertise de cada um.
• Na relação, não dá para o casal falar só de trabalho. Então, quando um perceber que o outro está invadindo esse combinado, a dica é, gentil e amorosamente, pedir que ele se coloque no outro espaço, que é o do casal, da família e do descanso.
• Existem dois setores: o conjugal e o profissional, que podem colidir e causar conflitos, se não estiverem bem segmentados. Por isso, é fundamental estabelecer o tempo de cada um.
*Fonte: Márcia Pettenon, psicóloga