Há um chavão no mundo dos negócios que diz “Entre mudar o mundo e ganhar dinheiro, fique com os dois”, palavras que são levadas ao pé da letra pelas entrevistadas para esta reportagem: são profissionais que prosperam em negócios focados em inserir mais e mais mulheres no mundo do empreendedorismo. Através de mentorias, consultorias, aulas e projetos, Raquel Mazuco e Renata Klein, da consultoria Trampolim, Ana Fontes, do negócio social Rede Mulher Empreendedora, e Natalia Guasso, da Escola Brick de Desapegos, ocupam seus dias munindo outras mulheres de conhecimentos necessários para comandarem o próprio business.
Embora dar o primeiro passo seja um movimento repleto de desafios, a taxa de satisfação no empreendedorismo feminino tem sido grande. De acordo com a mais recente pesquisa do Instituto Rede Mulher Empreendedora (IRME), que mapeia o cenário de negócios para mulheres no Brasil há sete anos, 76% das 2,7 mil mulheres entrevistadas em 2021 consideram que o seu próprio negócio já faz “parte de quem elas são” e “não se imaginam trabalhando em outro lugar”.
As principais atividades das empreendedoras, de acordo com o relatório, são prestação de serviços e venda de produtos, sendo que as áreas de alimentação e de vestuário são as mais citadas.
Em São Leopoldo, no vale do Sinos, nasceu em 2018 uma consultoria de negócios direcionada exclusivamente a elas, a Trampolim. A ideia saiu do papel por causa da vontade que as sócias, Raquel e Renata, tinham de poupar outras mulheres dos sentimentos de desamparo e frustração que experimentaram no passado, quando tentaram começar seus primeiros negócios — nas áreas de confeitaria e de pet sitting.
Desbravando o mundo do empreendedorismo e esbarrando em dificuldades de gestão e de relacionamento, Raquel lembra que chegou a buscar aconselhamento profissional, mas se deparou com uma planilha de Excel e um atendimento técnico e frio, que não levou em consideração a complexidade da sua vida, com sua rotina, qualidades e necessidades de aprimoramento. O processo, além de não ajudar seu negócio, a fez duvidar de sua capacidade.
— Sabe o que é ver as contas chegando, dar tudo de si em energia, em conhecimento, em investimento de dinheiro, e o negócio não funcionar? Só quem já viveu isso de se sentir desamparada e não ter a quem pedir ajuda sabe como é horrível, não desejo a ninguém. Quero poder guiar a mulher e ver, ao final de uma reunião, que ela aprendeu. Ver que o que estamos fazendo está dando resultado é uma felicidade, é como se o negócio delas também fosse nosso. Nós nos realizamos através delas — afirma Raquel Mazuco.
Somando experiências pessoais à profissionalização como consultoras, as duas amigas entenderam que cada pessoa encara desafios particulares na hora de empreender, e que quando esses entraves são endereçados com empatia — especialmente de mulher para mulher —, a chance é maior de que uma iniciante em apuros não desista de tocar seu negócio. É isso que move a dupla.
Não tem bicho de sete cabeças, sabe? Toda mulher é capaz.
RENATA KLEIN
Empreendedora
Há também evidências de que, na comparação, algumas barreiras não costumam frear tanto os homens em seus negócios, como a “síndrome da impostora” e questionamentos do tipo “como é que eu gerencio trabalho, casa, filhos, amigos e relacionamento?”. Para a consultora Renata Klein, esta dificuldade está relacionada ao conceito de “economia do cuidado”, já que, embora as mulheres estejam desempenhando inúmeras funções no mercado, continua a recair sobre elas a histórica responsabilidade de serem cuidadoras da casa, dos filhos e dos outros. O acúmulo tarefas tende desestimular as empreendedoras.
— Se olharmos para os dados de iniciantes, homens e mulheres aparecem praticamente em mesmo número. Mas entre os que se tornam donos de negócios efetivamente, quase metade das mulheres desiste no meio do caminho. E isso está ligado profundamente à questão de carga mental, de ter que desempenhar vários papeis — afirma Renata, citando a pesquisa Global Entrepreneurship Monitor (GEM).
A satisfação das sócias vem quando conseguem driblar esse dado e observam o nascimento de empreendedoras confiantes, que entendem seu empreendimento do começo ao fim, têm pleno conhecimento sobre o faturamento e a saúde do negócio e ainda reservam um tempo para pensar em estratégias de crescimento. A Trampolim atende cerca de 25 clientes atualmente e auxilia mais duas empreendedoras pro bono (sem cobrança de honorários) a cada mês.
Para Raquel e Renata, a melhor forma de ajudar é personalizando cada plano de ação, fornecendo independência intelectual principalmente sobre os processos que envolvem as finanças, terreno que ainda é tabu para muitas. As frases “números não são para mim” e “sou burra para isso” não encontram eco quando se encontra uma forma de gerenciar números que funcione para si.
— Atendemos uma professora de educação física, por exemplo, que tinha dificuldade com números e não conseguia ficar parada na frente de um computador. Para ela, aquilo não era trabalho. Trabalhar era estar junto dos alunos, em atividade. Começamos o processo jogando os números num quadro, depois num app, aos poucos. Quando já tinha mais clareza e conhecimento da gestão, ela mesma sentiu necessidade de evoluir e contratar um sistema para o negócio. Hoje ela não está só dando aula. Você passa lá e a encontra em sua salinha, trabalhando no estratégico. Foi uma mudança de paradigma. Não tem bicho de sete cabeças, sabe? Toda mulher é capaz — afirma Renata.
Flexibilidade e transformação
Faz 12 anos que a vida da empreendedora, publicitária e jornalista Ana Fontes é baseada em conectar mulheres, capacitá-las e acelerar seus negócios. Faz isso através da Rede Mulher Empreendedora (RME), que descreve como “um negócio social no setor dois e meio: é uma entidade que está entre o terceiro setor (das ações sociais) e o segundo setor (das empresas privadas), sendo assim uma empresa com causa. E esta causa é colocar mais mulheres na liderança de negócios — já são mais de nove milhões delas envolvidas em projetos em todo o país. Além da Rede, Ana fundou também o Instituto Mulher Empreendedora (IRME) exclusivo para mulheres em vulnerabilidade. Ambas entidades fornecem serviço gratuito às mulheres, financiados por empresas privadas parceiras, como Google, Itaú e outras.
— As mulheres querem empreender em algo que faça sentido para elas, e não necessariamente o ambiente corporativo oferece isso. Muitas não querem só o dinheiro pelo dinheiro, e sim trabalhar em algo que tenha a ver com o que gostam e acreditam. Por isso, o empreendedorismo é um caminho importante. Através dele, elas constroem negócios que têm a sua cara, que resolvem problemas reais das pessoas e ainda oferecem satisfação pessoal — relata Ana.
Se queremos mudar uma sociedade, a gente precisa investir em apoiar mulheres.
ANA FONTES
Empreendedora
Um dos pilares da Rede é reunir dados para compreender o cenário do empreendedorismo feminino brasileiro. A pesquisa IRME 2021 apurou que os dois principais motivos que levam as mulheres a empreender são “para ter mais independência e ser a própria chefe" e para realizar um desejo, quando "empreender sempre foi um sonho", frases com as quais 21% das entrevistadas se identificaram. A terceira maior motivação é a falta de trabalho e de emprego (19%).
Assim como indica o estudo, é consenso entre nossas entrevistadas que a busca por liberdade e flexibilidade também estão no centro das motivações, já que são características valiosas para as mulheres, especialmente para as que se tornam mães.
— Há uma frase que usamos muito: “nasce uma criança e ao mesmo tempo nasce uma mãe e uma empreendedora” e isso ocorre por diferentes razões. Uma delas é porque os ambientes coorporativos ainda são muito hostis para essas mulheres e não costumam oferecer flexibilidade às mães. Outro motivo é porque a “economia do cuidado” ainda é majoritariamente feminina. Então quando elas empreendem é muito em busca de flexibilidade, pois estão sobrecarregadas — explica a empreendedora.
Outro reflexo positivo do empreendedorismo é que ele acaba servindo como uma ferramenta de transformação social, observa Ana, já que mulheres que conseguem ganhar o seu próprio dinheiro costumam criar oportunidades de trabalho para outras e também pelo fato de que as que são independentes financeiramente do parceiro têm mais chances de conseguirem se libertar de relações abusivas e de violência doméstica. Metade das empreendedoras que relataram à IRME 2021 terem sofrido um relacionamento violento afirmou que empreender serviu como uma porta de saída daquela situação.
— Quando uma mulher "dá certo", ela normalmente não investe só nela, mas também no bem-estar da sua comunidade, da sua família, em melhorar a educação dos filhos e em contratar outras, o que chamamos de “ciclo de prosperidade”. Elas criam um grande impacto social, e isso é muito importante. Por isso se fala que, se queremos mudar uma sociedade, a gente precisa investir em apoiar mulheres — afirma Ana.
Negócios com propósito
A primeira década de existência da tradicional feira Brick de Desapegos, em Porto Alegre, foi comemorada em dezembro do ano passado. O evento ocorre na rua e conecta o público a pequenas empreendedoras de moda sustentável, que comercializem peças de brechó ou de produção autoral. Mas a idealizadora da feira, Natalia Guasso, levou o negócio a um novo patamar em 2022: deu vazão a um desejo antigo e montou a Escola do Brick de Desapegos, um ambiente para troca de conhecimento e de estratégias para negócios em moda circular. Tanto a escola quanto a feira não são exclusivas ao público feminino, mas, de acordo com Natalia, elas são maioria no ramo.
— Muitas já buscaram outros lugares onde aprender, mas não se sentiam acolhidas, pois existem coisas bem específicas do nosso negócio. Faltava essa escuta, esse acolhimento e um entendimento de negócio, e é por isso que a escola surgiu e tem sido um sucesso, nós realmente compreendemos as demandas delas e do nosso setor — comenta Natalia.
Os encontros são realizados mensalmente e têm cerca de 40 vagas. As aulas são na Casa de Cultura Mário Quintana, dado que o Brick de Desapegos é residente do RS Criativo, projeto da Secretaria de Cultura do Estado que fomenta a economia criativa. A empreendedora explica que as aulas abordam todas as necessidades e mudanças do mercado de moda sustentável, desde temas mais urgentes como as redes sociais e o seu potencial para servir de vitrine do negócio — conversam, por exemplo, sobre como pensar uma loja no Instagram, como fazer as fotos ou uma transmissão ao vivo para apresentar os produtos — até coisas mais objetivas como a precificação dos produtos, as formas de atender o público e fazer o merchandising.
Mais do que um negócio que proporcione subsistência e uma boa qualidade de vida à empreendedora, Natalia observa que empreender neste ramo implica agir na contramão do consumo excessivo e do desperdício. Na escola, as alunas são incentivadas a montar cadeias produtivas que respeitem os trabalhadores nela inseridos e que impactem o mínimo possível o meio ambiente.
— Tocar o seu negócio tem a ver com realização pessoal, liberdade e empoderamento financeiro. Mulheres que lideram seus negócios e não precisam ficar entrando na competição desleal e muitas vezes machista que acontece no mercado de trabalho em empresas privadas, fazendo cargas horárias absurdas sem ver um propósito nisso. É muito mais prazeroso buscar o que a gente acredita, e se isso mudar o mundo, é ainda mais lindo — declara Natalia.