“A primeira coisa é amor pelo que você faz. Se não tiver, mude de profissão até achar”. Essa é a dica fundamental da estilista de vestidos de noiva Solaine Piccoli para quem deseja ter uma carreira longa e sempre dentro da mesma atividade profissional. Nesta matéria de Donna, vamos em busca dos segredos para a longevidade na carreira, ouvindo as histórias de quatro mulheres que atuam em Porto Alegre, fincaram suas bandeiras nas artes, no design e na gastronomia há pelo menos 30 anos e não pensam em arredar pé de seus métiers.
Pode parecer romântico, mas o denominador comum que fica em evidência quando conversamos com Solaine e também com a artista Zoravia Bettiol, a cozinheira Aninha Comas e a atriz e diretora de teatro Adriane Mottola é o amor pelo que fazem diariamente, aquele que não deixa espaço para dúvidas nem abre margem para desistência. São mulheres que relatam jamais terem pensado em fazer viradas drásticas na carreira, pois encontraram o espaço onde atuam melhor e tiveram inteligência para adaptar e evoluir suas práticas de modo a se manterem atualizadas — tudo isso com pitadas de pioneirismo, autoconfiança e ousadia.
A artista visual, designer e arte-educadora Zoravia Bettiol tem quase 70 anos de carreira e sua arte está em constante mutação, não tem uma cara só. É no transitar por diferentes técnicas artísticas – por vezes associando pintura com xilogravura, misturando com arte têxtil, um pouco de poesia e, por que não, alguma fotografia – que a artista de 86 anos vai repensando sua forma de trabalhar, descobrindo novas habilidades e criando mais obras. Segundo ela, essa é uma das chaves da sua longa carreira. Formou-se em pintura no Instituto de Belas Artes de Porto Alegre, em 1955. Depois, estudou arte têxtil na Polônia, o que fez com que tenha sido a precursora da nova tapeçaria no Rio Grande do Sul, junto com Yeddo Titze. Mais tarde, estudou design de joias em São Paulo e ainda design de superfícies nos Estados Unidos.
— Eu trabalho há 67 anos ininterruptamente nas artes visuais. Que loucura, né? Nunca senti necessidade de mudar de área, porque fui ampliando as modalidades artísticas em que atuo. Pude variar muito, cada série que faço tem modificações técnicas ou estéticas. Acho que o criador tem quem se expor. Quando um artista faz sempre a mesma coisa, nunca sei se é porque ele não tem capacidade de mudança ou se ele fica repetindo, por comodismo, a mesma coisa que vende. Eu não, eu me exponho sempre. Às vezes, penso “não vai vender”, mas vou lá e faço. E, às vezes, me engano e vende — afirma Zoravia.
Autoconfiança
O objetivo de viver exclusivamente de arte foi onde Zoravia focou sua energia desde sempre. Além de buscar conhecimento e aprimoramento técnico constante, o seu início da carreira contou com muito apoio da família e do marido. Ela casou-se com seu professor de escultura, Vasco Prado, e lembra que, embora o relacionamento fosse muito bom, frequentemente o olhar das outras pessoas colocava o trabalho do companheiro em destaque, deixando-a ofuscada. Nem assim sua confiança estremecia.
— Sempre falavam do Vasco e eu acabava ficando em segundo plano. Só que, como tive uma formação de muito amor, carinho e respeito, isso me deixou forte e com autoconfiança. Eu achava graça, ficava tipo, “será que eles não veem que tenho luz própria?”. Constatava essas coisas, mas elas nunca me colocavam para baixo, pois eu sabia que uma hora eles iam, sim, me ver. Sempre tive tranquilidade em seguir meu caminho passo a passo, para ver onde iria chegar — relata.
O caminho para a carreira longa e frutífera, nas palavras de Zoravia, tem que passar pela autoconfiança, a qual só é sustentada com muito estudo e conhecimento. Depois, é preciso encontrar, de forma prática e objetiva, os meios para alcançar os sonhos.
— Perseverança eu acho uma palavra horrível, mas que é algo que a pessoa tem que ter se quer que algo se realize — ensina.
Ao longo desta entrevista, Zoravia lembrou com carinho da criação voltada à arte e à cultura que teve em casa, incentivada principalmente por seu pai, um advogado com formação humanista que fez questão de ensiná-la e a seus irmãos acerca de ecologia e da desigualdade social no país. São temas caros à artista e que até hoje aparecem em suas produções e nas atividades do Instituto Zorávia Bettiol – situado provisoriamente no primeiro andar da sua casa em Ipanema até que seja concluído o trabalho de restauro da sede, na Rua da Praia.
— Acho que, na velhice, somos o resumo da nossa vida: se a gente foi otimista, se foi empreendedor, isso aparece. Como também aparece se a pessoa foi pessimista ou se foi um sujeito parado. Sou uma pessoa de projetos. Faço um, termino ele e, de repente, começo outro numa direção completamente diferente. Em 2020, participei de 20 projetos, não só no Brasil como no Exterior. Eu até queria ficar deprimida, mas não consegui tempo — brinca.
Potência na simplicidade
A comida caseira, com ingredientes simples, é um conceito de alimentação que não perde o encanto. Tanto é verdade que já se passaram 40 anos desde a criação da marca de pratos congelados de Aninha Comas e a empresa continua firme. Foi inclusive uma das poucas que saíram fortalecidas da pandemia, lembra a cozinheira de Porto Alegre.
— A pandemia, para nós, foi uma coisa de louco, cresceram muito as vendas. Eu até ficava chateada, via que muitos negócios iam mal. Mas foi um momento em que a gente vendia até o que não tinha. Agora, o ritmo já voltou ao normal — conta ela, que tem 73 anos.
Em 2022, Aninha mantém a vaidade que levava para a televisão nos anos 1980, visível no batom vermelho, no blazer de veludo e no colar de pérolas que usou durante o encontro com as outras entrevistadas desta matéria. Naquela década de 1980, a profissional foi apresentadora de diferentes programas de culinária – começou na TV Guaíba e depois transitou por outras emissoras – sempre valorizando o trabalho custoso das donas de casa e cozinheiras da época, tentando mostrar uma gastronomia prática e fácil, com todos seus imprevistos.
— Eu já dava cursos de culinária quando me chamaram para fazer isso na televisão, algo que eu nunca tinha feito na vida. Decidi encarar e vi que conseguia ser muito natural, não me travava diante da câmera. Fui uma das primeiras a fazer culinária na TV e foi um sucesso. Era ao vivo e tinha vários percalços, mas eu achava que a gente tinha mesmo é que mostrar, porque, se não, passávamos uma imagem perfeita que não animava as pessoas a cozinhar. De certa forma, eu desmistifiquei a cozinha — relembra a empresária.
Cozinhar já era uma paixão quando decidiu estudar na escola familiar Maria Adelaide. A instituição, lembra ela, tinha o apelido de “pega marido” pois preparava moças para casar. Mas a cozinheira garante que só a frequentou por entender que seria a melhor opção. Munida de suas experiências, incluindo uma vivência nos Estados Unidos (em uma época em que os congelados se tornaram febre por lá), encarou a empreitada de montar sua marca, tornando-se pioneira na Capital. Entre os sucessos estão o feijão, o strogonoff e as almôndegas.
Ao completar a quarta década, o negócio já conta com o trabalho da filha e do genro de Aninha na administração, enquanto a cozinheira começa a ensaiar uma passagem de bastão. A ideia é desacelerar e reservar um tempo maior para os netos, mas enquanto isso não ocorre, ainda vai à empresa todas as tardes e zela pelo “padrão de qualidade Aninha Comas” cujo principal crivo é seu próprio paladar: é ela quem testa e implementa cada nova receita que entra no cardápio.
Atenta aos sinais
O primeiro vestido de noiva que Solaine Piccoli costurou foi em 1972. Era uma peça sob medida para sua professora do Curso Normal, repleta de rosas de cetim costuradas à mão. Atualmente, está exposto em seu ateliê, em Porto Alegre, e representa uma espécie de “marco zero” da carreira da estilista, que aos 75 anos já teve ateliê em Gravataí, loja em Novo Hamburgo, foi pioneira nos aluguéis de vestidos de luxo na Capital, criou uma marca de sucesso e viu suas filhas Julia, Camila e Gabriela juntarem-se ao negócio, cada uma trazendo seu estilo.
Solaine aprendeu a costurar com a mãe e suas avós, e as técnicas de berço se espalharam para as gerações seguintes. Essa base familiar e o amor pelo fazer moda são parte do que mais a fortalece.
— Eu nunca sonhei ter uma grande marca. Só sabia que queria costurar, que é o que amo fazer, e foi fluindo. Nós sempre fomos inovadoras, desde o começo procurei estar a par do que acontece no mundo, novos tecidos, máquinas, equipe bem treinada. E depois que minhas filhas começaram a trabalhar comigo, a gente rejuvenesceu ainda mais. É isso que deixa a marca forte, essa junção da experiência com novos conhecimentos e tecnologias — explica ela.
A estilista também compartilha duas estratégias na busca pelo sucesso: estar atenta às coincidências e conectar-se com as pessoas. Ela lembra que foi uma coincidência importante o fato de que o primeiro filme que assistiu no cinema, aos 12 anos, foi Sissi, a Imperatriz. Nele, a personagem usa vestidos deslumbrantes, que ficaram gravados na memória da então aspirante a estilista.
— Foi o primeiro vestido de princesa que eu vi — lembra ela, que, anos depois, deparou-se com o vestido original da imperatriz da Áustria, em uma exposição em Paris, na França.
Sua marca também avançou por conta de outro ato do acaso. Durante uma feira de produtos para noivas, fez um elogio à roupa que outra expositora vestia. O comentário acabou dando origem a uma amizade e a uma parceria: a mulher bem-vestida era a designer de acessórios para cabeça Niely Hoetsch, que hoje coordena um ateliê da marca gaúcha em Vienna, inaugurado há 10 anos. Além da Áustria e de Porto Alegre, a marca ainda tem um terceiro ateliê em São Paulo há 17 anos.
O que há de mais mágico em trabalhar no ramo, segundo a profissional, é ter se tornado expert em interpretar os desejos das noivas e traduzi-los em vestidos.
— Tudo que existe de tendência eu já fiz, pois cada década é uma história. Quando Lady Di se casou, por exemplo, inspirou muita gente. Como passei por todas as décadas, consigo resgatar elementos de passado e juntar isso com o contemporâneo, sempre adaptando ao estilo de cada uma. Esse é o meu autoral — comenta a criativa.
O poder do conjunto
O combustível da carreira da atriz e diretora de teatro Adriane Mottola, 67 anos, são as pessoas. O respeitável público amante do teatro, é claro, mas principalmente a família teatral que se formou através da Cia Stravaganza, criada por ela, junto com Luiz Henrique Palese e Cacá Corrêa, há 34 anos.
O grupo porto-alegrense tem em seu repertório mais de 28 espetáculos e tornou-se ainda mais forte e unido, segundo Adriane, com a criação de sua sede, o Estúdio Stravaganza, no bairro Santana.
— Adoro trabalhar em grupo e é por isso que minha história se confunde com a da companhia. Acho que um dos pontos que nos mantêm unidos é a conquista da sede, em 1998. É um lugar de encontro onde tu podes criar, guardar teu material. É mais fácil de estarmos juntos, a qualidade artística aumenta, assim como a solidariedade, o carinho, o afeto e o encontro são maiores quando tu tens um território. A gente continua, porque somos absolutamente apaixonados pelo que fazemos – declara a artista.
A morte de Palese, um dos membros fundadores, foi um baque, mas a tristeza, relembra, acabou canalizada na reforma da sede em 2004, feita pelos próprios membros da companhia. Recentemente, entre 2020 e 2021, mais uma reforma colocou o espaço nos trinques para que pudesse receber outros grupos de teatro interessados em aproveitar o palco do Stravaganza para oficinas, ensaios e apresentações.
Mesmo estando há tanto tempo na ativa, Adriane garante que jamais se viram taxados de “ultrapassados”. Isso porque o grupo busca se manter pulsante no agora, interpretando a contemporaneidade, ao mesmo tempo em que valoriza a tradição do teatro.
— Não penso em outra coisa. Se não estou trabalhando, produzindo ou criando, estou participando de oficinas com pessoas de outros lugares. Tu tens que estar atenta ao mundo em que vives, seja qual for a tua profissão, e descobrir onde estão as frestas para colaborar com um lugar mais humano. Gosto de conhecer novas pessoas, novas formas de trabalhar e acho que essa curiosidade constante e a paixão pelo que faço me fazem acreditar que é possível continuar. E saber que o que a gente faz é importante, que eu sou útil — conclui.