O universo das artes visuais está passando por um processo gradual de revisão histórica, apontam especialistas, em um movimento que ocorre em nível global, nacional e também no Rio Grande do Sul. Uma parte dos pesquisadores, artistas e curadores envolvidos nesse trabalho se propõe a estudar e a divulgar a produção artística de mulheres que não experimentaram o devido reconhecimento ao longo de suas trajetórias. São artistas que foram, em alguma medida, apagadas da história, e cujas produções ficaram de fora de acervos e de livros. Este apagamento é ainda mais grave quando se trata da produção de artistas negras.
— A mulher negra sofre opressões de gênero e de raça, e isso aparece na prática quando analisamos os acervos de museus a partir desta teoria de Interseccionalidade. Hoje no Museu de Arte do RS (Margs), por exemplo, são 615 artistas homens brancos e 23 homens negros. E são 384 mulheres brancas e apenas duas mulheres negras. É uma diferença muito grande e que precisa ser debatida — afirma a historiadora e curadora de arte, Izis Abreu, que é servidora do museu.
É por conta deste desequilíbrio que Izis e outras colegas do ramo defendem que, assim como é importante a revisão histórica, também são essenciais os esforços para valorizar no presente o que está nascendo das mãos e mentes de mulheres negras em atividade. Esta é a proposta da exposição Presença Negra no Margs, em exibição até o dia 21 de agosto no primeiro andar da instituição.
A mostra reúne produções de 70 mulheres, travestis e homens negros, cis e transgêneros e o trabalho de reuni-los ficou a cargo de Izis, de Igor Simões e da assistente de curadoria Caroline Ferreira. Segundo Izis, a iniciativa busca mostrar que, apesar da dificuldade de inserção em espaços tradicionais, por conta do racismo estrutural, a produção artística de indivíduos negros existe, é potente e variada.
— Ao longo de séculos, foi sendo construído um imaginário social que coloca a mulher negra no lugar da hipersexualização e do trabalho subalterno. Isso dificulta a inserção dela na produção, na difusão e no consumo de arte. A exposição tem, portanto, dois vieses: mostrá-las em lugares diferentes e também apresentar as artistas, negras e trans. Também estamos mostrando que pessoas negras produzem diferentes trabalhos, que podem falar sobre negritude e racismo, assim como falam de espaço, forma, afeto e corpo — afirma Izis.
Presenças e ausências nos acervos
Em 2019, o projeto Mulheres nos Acervos se dedicou a mapear quantas mulheres estavam presentes nos cinco acervos públicos em Porto Alegre: a Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, que é federal; o Museu de Arte do RS (Margs) e o Museu de Arte Contemporânea do RS, instituições estaduais; e as pinacotecas municipais Aldo Locatelli e Ruben Berta. O trabalho foi feito pelas historiadoras da arte Mel Ferrari, Cristina Barros, Nina Sanmartin e Marina Roncatto, que reuniram dados que comprovam a já esperada disparidade: as cinco instituições contavam com obras de 1.437 homens e 764 mulheres, de forma que elas compunham apenas 34,7% do total.
O desequilíbrio aumenta muito quando observa-se o número de mulheres negras. A pesquisa encontrou apenas quatro artistas, sendo que, à época, Magliani era a única presente em todos.
— Ao longo da pesquisa, reparamos que não basta pesquisar gênero. Temos que pesquisar também raça e condição social. Naquele ano, chegamos ao dado impressionante de que, na maioria das instituições, a Magliani era a única mulher negra presente no acervo. A exceção foi o MACRS, que incorporou novas obras de mulheres negras durante nossa pesquisa — afirma Mel Ferrari.
Uma mostra com cerca de 200 obras da pintora e ilustradora Maria Lídia Magliani está em exibição na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, até o dia 31 de julho. Os curadores Denise Mattar e Gustavo Possamai encararam juntos a missão de reunir as peças em diversos acervos para montar uma exposição grandiosa da pelotense. Magliani nasceu em 25 de janeiro de 1946 e viveu momentos de reconhecimento por seu trabalho nas artes, mas segundo escrevem os curadores, passou por um processo de apagamento do qual nunca se recuperou até sua morte, em 2012.
— A exposição é relevante, primeiro, pela qualidade artística: impressiona como Magliani seguiu com o mesmo vigor durante toda sua trajetória. São quase 50 anos de produção. Uma obra potente, que merece ser conhecida. Depois, pelo fato de as novas gerações não conhecerem ou não terem acesso ao seu trabalho. Resolvemos expor o maior número de obras possível, incluindo as que se encontravam nos mais importantes museus brasileiros, embora raramente ou nunca expostas por eles. Reunimos e organizamos entrevistas, críticas e correspondências que colocassem luz sobre a sua produção — afirma Gustavo Possamai.
O curador observa ainda que a história foi escrita por homens que destacaram personagens masculinos, e é por isso que o movimento de revisão em andamento pode ser considerado uma conquista histórica, que estimula a pesquisa, a reflexão e o debate.
As exposições Presença Negra no Margs e Magliani são dois exemplos de valorização da produção de artistas negras, mas outras instituições de Porto Alegre, como por exemplo a Fábrica do Futuro, o Memorial do RS, o Instituto Goethe do RS e o Barraco Cultural também estão fazendo eventos, publicações e mostras voltados à mesma temática.
A historiadora da arte Mel Ferrari entende que esta onda de exposições é um movimento que mira em não criar novos silenciamentos de artistas negras, mas argumenta que, para que isso se sustente, são necessários esforços nas áreas de educação para arte nas escolas, acesso ao ensino superior, adequação de acervos e abertura dos espaços tradicionais para a produção artística delas.
— Exposições como a Presença Negra no Margs abrem portas para novas oportunidades, dão currículo. Quanto mais a artista aparecer, quanto mais estiver em grandes exposições, quanto mais for representada por galerias, mais vai crescendo profissionalmente. E é claro que queremos que as instituições tenham mulheres, negras, negros e trans em seus acervos, mas é preciso pensar em mudar a lógica arraigada da doação de obras. Se só entram artistas que doam seus trabalhos, então só entra quem tem condições financeiras para doar, que são poucos — pontua a historiadora.
Autorrepresentação
Quando o material de pintura, que custa caro, ficou escasso, foi a partir de retalhos de suas telas antigas que a artista visual Pamela Zorn criou as mais de 80 pequenas pinturas, as quais hoje compõem a obra Esse solo é ruim para certos tipos de flores, em exibição no Margs. Fazendo uma espécie de diário, a jovem, de 24 anos, pintou um retalho por dia ao longo de alguns meses, colocando em imagens e em palavras algumas das questões que lhe atravessam diariamente, como sua descendência, sua arte e sua identidade racial. Pamela é uma mulher negra, filha de um pai negro e de uma mãe branca.
— Em alguns desses retalhos, eu uso uma foto do meu aniversário de um aninho como referência. Sou eu, um bebezinho negro, usando a roupinha alemã que minha avó materna me deu. Acho ela uma figura muito emblemática, traz essa discussão da interracialidade. Eu sempre estive no meio disso, tentando me entender enquanto pessoa. Hoje eu me afirmo politicamente como uma mulher negra de pele clara, mas foi necessário todo um processo de construção para entender isso. A melhor parte é quando as pessoas veem essa obra e falam pra mim sobre como isso se assemelha à vivência delas. Estar em exposições abre muitos diálogos — afirma Pamela.
Acervos públicos pertencem a todos nós. Temos direito de cobrar outra programação, novas caras, novos trabalhos.
PAMELA ZORN
Artista visual
Com esse trabalho, Pamela venceu o Prêmio Aliança Francesa de Arte Contemporânea do ano passado e, como prêmio, se encaminha para uma residência artística de dois meses no Centre Intermondes, na França. Ocupar espaços que têm em seus acervos poucas ou nenhuma mulher negra, observa Pamela, é importante pois sinaliza que as instituições estão vivendo uma nova fase, em que novos nomes e novos rostos aparecem tanto assinando as obras, como também circulando mais pelos ambientes. A artista teme, no entanto, que se trate de um movimento efêmero e convoca o público a garantir a continuidade dessa busca por pluralidade:
— Olho para tudo isso e penso “nossa, é uma efervescência, estão rolando convites, está rolando trabalho”, mas aí existe sempre um medo de que acabe sendo um modismo. O que podemos fazer, enquanto público e expectadores, é cobrar para que não seja só uma moda. É mostrar que a gente tem essa demanda por novas narrativas. Acervos públicos pertencem a todos nós, temos direito de cobrar uma outra programação, novas caras, novos trabalhos.
A arte “infiltrada”
"Minha motivação se baseia em é utilizar esse corpo como uma arma. Meu anseio é ocupar os lugares que diziam que eu não tinha potência suficiente para entrar. Eu tô rompendo tudo. Como uma avalanche de água. Levando tudo até desaguar em um lugar seguro. Se eu vou morrer esse ano, não sei. Sei que estou viva. Sobrevivendo mais um ano contra a maré. Eu tô feliz. Eu brilho. Eu me amo. Essa é minha vingança, essa é minha estratégia."
Este é um trecho da narração que a artista Fayola Ferreira faz durante a performance em vídeo Abebé, exposta no Margs. Fayola é travesti negra, tem 28 anos e é uma multiartista de Porto Alegre: poetiza, atriz, performer e o que mais quiser. Em uma analogia à água, ela conta que entende a sua trajetória na arte como uma “infiltração”, procurando inserir-se e causar impacto naquilo que estava solidificado.
— Meu processo em Abebé contribui para pensar possibilidades de construção de identidade que fogem da ideia de homem e mulher. Pensar na construção de uma identidade travesti, estabelecendo a travestilidade como um lugar legítimo. Acredito que a importância de estar nesses espaços (os museus) é para criar representatividade para outros corpos. Quando eu entro, é como se estivesse criando uma infiltração — revela Fayola.
A performance audiovisual tem cerca de 20 minutos e seu nome faz referência ao instrumento de Oxum — semelhante a um espelho — por onde a orixá de religiões de matriz africana enxerga a si e aos inimigos ao redor. Por meio desta mitologia, Fayola fala de seu processo de construção identitária, do ato revolucionário que é olhar para si mesma com amor e do combate ao genocídio da população trans no país. Em paralelo à sua vivência na arte, ela atua como educadora social na Fundação Fé e Alegria, uma equipe que trabalha orientando a população em situação de rua sobre serviços que podem responder às demandas por moradia, alimentação, higiene e acesso a direitos.
Como artista diversa, Fayola conta que circula por uma série de ambientes diferentes no Estado, onde a criatividade também pulsa e a cultura é fomentada. Fazer com que novos lugares sejam legitimados para a visibilidade da arte é uma de suas bandeiras, bem como fazer com que a produção também tenha espaço nos museus.
— Eu trabalho em diversos âmbitos, em baladas, em lugares alternativos, em ocupações, e nesses espaços marginais também se executa e se produz arte. A crítica que faço é que são necessários incentivos e patrocínio para que ela seja evidenciada e convocada a estarem nos espaços de poder — opina a artista.
Pespontando afetos
Em uma publicação no Instagram sobre sua estreia na exposição, a artista têxtil e ilustradora Mitti Mendonça, de 31 anos, definiu-se como uma “pulsante artista compartilhando neste agora”. Ela explica que a frase diz respeito a estar em movimento, buscando as melhores formas de articular-se com espaços de arte, com pessoas e com colegas do ramo, tanto em Porto Alegre, onde tem ateliê, como no país e no Exterior.
— Acredito muito em pensar estratégias para chegar aos acervos, fazer propostas expositivas, buscar editais, colocar-se nas instituições, que são espaços de trabalho para os artistas. Tenho uma postura ativa na minha trajetória. Estar pulsante nesse agora é refletir sobre essas oportunidades que temos hoje de assentar e enraizar o nosso trabalho, fomentando poéticas negras no campo das artes visuais — sublinha Mitti.
As três obras que levou para a exposição, Essa força invisível que conduz, O afeto abre caminho e Na derranca do caminho, são feitas com linha e agulha, através de uma técnica ancestral. Há cem anos, o bordado entrou em sua família através de sua avó materna. Depois, avançou para suas tias, bordadeiras do Carnaval de Jaguarão, que decoravam seus próprios figurinos de rainhas de bateria e porta-bandeiras para os desfiles na cidade.
A artista aprendeu na infância e há cerca de cinco anos transformou esta herança afetiva em arte, abrindo caminhos para si profissionalmente.