É curioso que no palco de um monólogo sobre preconceito de idade envolvendo mulheres mais maduras esteja uma que acabou de nascer. O corpo é da mulher, atriz, bailarina, coreógrafa, produtora, empreendedora, mãe, esposa prestes a completar 48 anos em 20 de março. Mas a potência da fala entrega que ali agora está um espírito renovado (e não vencido) pela passagem do tempo.
Se a peça Velha D+ chegou aos palcos e retoma temporada no Instituto Ling nos dias 28 e 29, créditos para a Fera Carvalho Leite. Isso mesmo, Fera (não Fernanda), que veio ao mundo após um mergulho em jornadas de autoconhecimento e transformação - possivelmente inevitável a essa altura da vida da atriz, mas seguramente intensificado pelo combo medo + incertezas + reclusão fruto da pandemia, que a fez cogitar até mudar de profissão. Logo ela, nome conhecido e premiado dos palcos gaúchos, de sucessos de público como Inimigas Íntimas e de trabalhos para TV e cinema, como os filmes Nossa Senhora do Caravaggio (2005), de Fábio Barreto, e Bens Confiscados (2004), de Carlos Reichenbach.
A falta de entusiasmo que um dia assustou Fernanda ficou para trás, mas foi preciso romper com um estado “de vítima, de reclamação, de reincidência de um padrão opaco em mim mesma”, ela reconhece.
- Como resultado do entendimento de que estou além do meio para o fim da minha vida, veio uma força de luta, de grito, risada e choro, uma força feroz. E me perguntei como queria viver essa etapa final. Agradeci por tudo até então, todos que vieram antes de mim, ajudaram e ajudam, e pedi ao universo a reinvenção de mim mesma.
Nascia a Fera, codinome que Fernanda passou a adotar publicamente desde julho do ano passado. Fera Carvalho Leite: “boa selvagem como a Fera, forte como o Carvalho, doce como o Leite”, ela explica em um manifesto.
Velha demais estou é para situações em que não possa ser eu mesma.
FERA CARVALHO LEITE
atriz
- Foi nesse processo de autoestudo que surgiu a Fera, de uma conversa com uma amiga numeróloga. Ser Fera me fez rir comigo mesma e foi delicioso. Quero me divertir com a Fera e desfrutar do seu poder.
Fera vinha sendo gestada num momento em que a atriz tomava consciência da sua finitude física, da sua “envelhescência”. E aí parece que o universo conspirou a favor.
- O Bob (Bahlis) me trouxe o texto (base do monólogo) em abril dizendo que havia escrito pensando em mim. (O título era) Você está velha demais para isso. Li numa sentada e percebi a pertinência e a urgência do assunto. Aí que comecei a estudar mais sobre etarismo - explica Fera.
Conceito que está no centro do debate e ganha cada vez mais relevância, etarismo é o preconceito relacionado à idade da pessoa, que aparece em frases como “Você está velho demais para isso” ou “Você já passou da idade”. Nome associado a exemplo de beleza nos palcos gaúchos, Fera confessa que o primeiro preconceito percebido por causa da idade foi autodirigido. Foi dela contra ela. Depois, no âmbito profissional, de testes para papéis artísticos e na publicidade também.
- Ser rejeitada neste mundo de aparências me fez aprender sobre a coragem de acreditar que quem perde não me escolhendo é o outro. Vou fortalecendo a minha autoestima. Algo melhor está reservado para mim - afirma.
A palavra “velha” tem um sentido negativo. Precisamos ressignificar. Por isso escolhemos usar o sinal + no título Velha D+, para ressaltar o que há de bom no envelhecer.
FERA CARVALHO LEITE
atriz
A forma de enfrentar constrangimentos e preconceitos começa dentro da gente, ela aprendeu. A pressão por se manter jovem vem de dentro, com autoexigências, com as limitações físicas, as dores, e vem de fora, na forma de crítica, exclusão.
- Quando a gente se coloca ou nos colocam no lugar de estar velha demais para alguma coisa, tem de parar e perguntar: será mesmo? Por quê? Hoje, velha demais estou é para perder tempo com pessoas que não me fazem bem, com situações em que não posso ser eu mesma - diz.
Abrir espaço e se disponibilizar para práticas e cursos envolvendo inteligência emocional, comunicação não violenta, meditação e mindfulness foram fundamentais nos últimos dois anos.
- Só que tudo isso é treino. Na vida, é jogo. Estudo para praticar com meu filho um jeito de ser diferente. Não é fácil, mas dá. Requer muita consciência a todo momento pois temos padrões automatizados em termos de pensamentos, de julgamentos e, claro, de falas.
A vida nos palcos
Casada com o chef Edu Sehn desde 2015, quando já tinham quatro anos de relacionamento, Fera é mãe de Juan, oito anos. Quando o garoto nasceu, ela já acumulava quatro prêmios de melhor atriz no cinema, a popularidade e o sucesso alcançados com Inimigas Íntimas, ao lado de Ingra Lyberato, bem como o reconhecimento em outras montagens e em trabalhos na TV e na dança. Com uma trajetória marcante e consistente, mal dá para acreditar que as artes não foram a primeira escolha da adolescente Fernanda, que adorava surfar em Torres e dedicou-se à ginástica olímpica e à dança contemporânea.
Nascida em Porto Alegre, segunda filha do casal Jorge Olavo Carvalho Leite, jornalista falecido em 2019, e de Maria Regina Hübner Carvalho Leite, assistente social aposentada, Fernanda ingressou na UFRGS com apenas 16 anos e se formou bióloga. Durante a faculdade, começou a fazer teatro e trabalhar. Em seguida, trocou a bolsa de iniciação científica pela de produção e atuação em teatro, dança, cinema e publicidade. Fez especialização em Pedagogias do Corpo e da Saúde e mestrado em Artes Cênicas. No currículo, cursos nos Estados Unidos. Atualmente, integra a Companhia Espaço em Branco, que recebeu em 2019 o Prêmio Açorianos de melhor espetáculo por Tocar Paraíso. A pandemia chegou em um grande momento, provocando um baque.
- Nem conseguimos desfrutar dos prêmios Açorianos, nem apresentar Tocar Paraíso. Além disso, tínhamos ganho o edital Ponto de Cultura do Instituto Ling para a nova montagem: Paraíso Afogado. Para não ficarmos parados, começamos a ensaiar pelo Zoom e foi perturbador trabalhar com uma arte que se faz pela presença, pelo corpo a corpo, pela sincronicidade - recorda.
O formato online passou a ser a única saída. E também por isso apresentar Velha D+ para uma plateia presente fisicamente significou um renascimento. Fera também responde pelo Espaço Livre Arte Corpo Mente, em ala anexa a uma casa centenária, herança dos bisavós, onde mora no bairro Floresta, em Porto Alegre, cedendo o local para aulas e para profissionais de dança, teatro, ioga, práticas somáticas, mindfullness, constelações familiares, ensaios e agora também espetáculos. Desde 2016, o lugar integra o polo cultural Distrito Criativo de Porto Alegre. Ali, é o seu teatro, o teatro da Fera, onde metaforicamente Fernanda renasceu ao estrear Velha D+, de forma totalmente independente.
Criando uma bela velhice
No monólogo Velha D+, a personagem Ella tem 44 anos, está num casamento que sobreviveu à pandemia mas perdeu para a covid-19 a avó, que a criou. Ao longo de 75 minutos, ela reflete sobre a perigosa distância entre o que sentimos com a passagem do tempo e o que estamos de fato preparados para admitir em relação a isso. Ella compartilha com o público inquietações comuns ao universo feminino a partir de certa idade. O que é saber envelhecer? O que pode e o que não pode? Quem diz?
- A palavra “velha” tem um sentido negativo. Precisamos ressignificar - diz Fernanda. - Por isso escolhemos usar o sinal + no título Velha D+, para ressaltar o que há de bom no envelhecer.
A plateia da primeira temporada, encerrada em dezembro, foi composta majoritariamente por mulheres com mais de 35 anos.
- Elas se identificaram com as questões etaristas, ser ou não mãe, ser profissional, ser alvo de críticas machistas - conta. - Cada uma sai da peça com a certeza de que a felicidade está na sabedoria de ter um espírito jovem e uma alma velha, buscando o equilíbrio destas forças.
Homens também reagem, geralmente se dizendo surpresos por nunca terem pensado naquela perspectiva que o monólogo mostra.
- Mas a figura masculina na peça não é um vilão. A vilania está muito dentro da gente mesmo. É preciso haver um processo de cura pessoal contra aquilo que nos poda por dentro - destaca a atriz.
Agora, Fera se prepara para dar voz a Ella num outro palco, o do Instituto Ling, também na Capital, nos dias 28 e 29 de janeiro:
- Estou trabalhando na adaptação de uma cena que faço no trapézio para uma chair dance.
As fotos do acervo pessoal da família (onde estão ela, a irmã mais velha, quando crianças, as avós e sua mãe) que compuseram a parede do cenário no Espaço Livre, estarão em grandes porta-retratos no Ling. Não é à toa que elas se fazem presentes. Assim como não parece ter sido por acaso que a peça acabou sendo o programa de grupos de amigas. As mulheres que nos precedem e nos cercam têm peso sobre quem nos tornamos.
Ao longo da entrevista, Fera citou diversas mulheres muito significativas na sua vida. Entre elas, três da família: a mãe, a irmã, Adriana Stürmer, empresária, e sua sogra e grande musa, Lori, prestes a completar 93 anos em fevereiro.
- A Lori me inspira com seu jeito de ver a vida, leve, espirituoso. Digo pro Edu que casei com ele por causa dela, que queria esse DNA pro meu filho - brinca a atriz.
Outra amizade de peso é com Ingra Lyberato, 55 anos. As duas atrizes construíram um relacionamento de muita cumplicidade desde que atuaram em Inimigas Íntimas por mais de 10 anos, como conta Fera:
- Nós nos acompanhamos nessa "envelhescência". A Ingra me inspira muito na sua determinação, na sua disciplina. Uma firmeza, sabe? Para criarmos uma bela velhice, temos de estabelecer esses limites, a fim de ganharmos outras liberdades.
Jovens de espírito
Quem são as mulheres que inspiram o texto de Velha D+:
- Madonna e seu discurso de 2016, ao receber o Prêmio Mulher do Ano da Billboard, símbolo de força e resistência.
- Clarissa P. Estés, autora de Ciranda das Mulheres Sábias, referência no tema “jovem enquanto velha e velha enquanto jovem.
- Anne Kaupf, que aborda o envelhecimento sem fórmulas prontas em Como Envelhece.
- Naomi Wolf, autora de O Mito da Beleza, que questiona a identidade feminina pautada por uma beleza jovem.
- Mirian Goldenberg, que revê a idade madura em A Invenção de uma Bela Velhice.
EM CARTAZ
Fera Carvalho Leite apresenta dois espetáculos dentro do Porto Verão Alegre neste mês e retorna em outras duas atrações em fevereiro. Para as apresentações a seguir, os ingressos custam R$ 50.
- VELHA D+
Monólogo com texto Bob Bahlis e Fera Carvalho Leite e direção de Bahlis. Em cartaz nos dias 28 (às 21h) e 29 (às 20h), no Instituto Ling (Rua João Caetano, 440, bairro Três Figueiras, Porto Alegre). - LEONEL
Peça sobre Leonel Brizola, com direção de Caco Coelho. Apresentações neste sábado (22) e domingo (23), às 20h, no Teatro Dante Barone da Assembleia Legislativa (Praça Marechal Deodoro, s nº).