O espetáculo retorna a cartaz nos dias 19, 20 e 21 de janeiro, às 21h, no Centro Histórico-Cultural Santa Casa (Av. Independência, 75). Ingresso: a partir de R$ 20 (+ taxas) no site portoveraoalegre.com.br
Texto: Caue Fonseca
Fotos: Ricardo Lage, especial
Diferentemente de grande parte dos porto-alegrenses, as atrizes Fernanda Carvalho Leite e Ingra Lyberato esperam ansiosamente pela chegada da estação mais calorenta à capital gaúcha. Desde que Ingra se mudou para o Rio de Janeiro, há cinco anos, é quando as duas amigas têm a oportunidade de se reencontrar – e também de reencontrar Lúcia e Mariana, suas personagens em Inimigas Íntimas, comédia que comemora uma década em 2017 na programação do Porto Verão Alegre.
– Na época da mudança, eu titubeei. Será que a peça vai continuar agora que a Ingra está fora? Mas a gente sempre quer voltar. Volta, retoma o ensaio, dá risada... A gente ama fazer essa peça – afirma Fernanda.
– Nunca quis parar de fazer e não faltamos em nenhum ano. A agenda ficou mais complicada, mas sempre se dá um jeito. Só de passar o texto, a gente já morre de rir – faz coro Ingra.
Escrita por Artur José Pinto e dirigida por Néstor Monasterio a partir do argumento das atrizes, a peça parte de um jantar entre duas amigas separadas há 20 anos. Lúcia, personagem de Ingra, desejava se casar e ter filhos, mas, por acaso, se torna uma atriz de sucesso. Enquanto Mariana, vivida por Fernanda, almejava ser uma estrela nos palcos e acaba se casando. E justamente com o crush juvenil de Lúcia (em uma época, é claro, em que o termo “crush” nem existia). Ou seja, uma parece ter vivido o sonho da outra.
Curiosamente, a história de amigas que passaram décadas entre alfinetadas, saudade e demonstrações de inveja faz aniversário no momento histórico em que a amizade entre mulheres está em pleno debate. Um exemplo: a série Big Little Lies, vencedora do último Globo de Ouro, é uma trama em que mulheres passam episódios e episódios entre alianças e discussões, mas se unem em um momento-chave, quando a necessidade de ser solidária se sobrepõe a picuinhas do cotidiano. Sinal de que alguns lugares-comuns, como o de que mulheres são mais propensas a competir umas com as outras do que a selar uma amizade verdadeira, vêm sendo fortemente questionados.
Inimigas Íntimas, neste novo contexto, é precursora. Salvo algumas piadas nos diálogos (sai o Orkut, entra o Facebook), é pra lá de contemporânea nos seus debates e, sobretudo, na sua conclusão.
– A peça é muito atual porque as personagens se transformam no decorrer, e a sociedade está passando justamente por essa mesma transformação. De primeiro acreditar nessa bobagem, nessa ilusão de que a outra mulher é uma ameaça. Com o amadurecimento de vida, encontra-se esse amor, essa amizade – conclui Ingra.
A convite de Donna, Fernanda e Ingra toparam realizar um ensaio fotográfico e uma entrevista juntas para falar sobre os temas tão femininos e atuais que perpassam a peça. Além da amizade entre mulheres, elas opinam sobre o peso das escolhas, a experiência da maternidade tardia conciliada com a carreira – pela qual as duas passaram – e compartilham com as leitoras o momento em que “o santo bateu” entre as duas. Com o perdão do clichê, que sigam amigas – e inimigas, no palco – para sempre.
Inimigas Íntimas
Entrevista: um papo sobre amizade
Voltando ao dia em que se conheceram. Por que o santo de vocês bateu?
Ingra Lyberato – É uma boa falar nisso, porque é santo mesmo. Eu fui ver um espetáculo, logo que cheguei aqui, que a Fê fazia com o Zé Victor Castiel (O Marido do Dr. Pompeu). No camarim, a gente conversando, eu tinha acabado de fazer um filme (Dois Córregos, 1999) do Carlos Reichenbach, que foi muito bom para minha carreira no cinema e tal. E ela ia fazer um filme com o Carlão. Já foi uma identificação muito bacana. Depois, quando eu estava grávida, fui ver outro espetáculo dela, O Concílio do Amor, amei de novo. Eu disse: “Vamos fazer alguma coisa juntas”.
Fernanda Carvalho Leite - Eu pilhei na hora: “Vamos lá”. Mas acho que nosso santo bateu muito por esse entusiasmo com a vida, sabe? Essa coisa baiana que a Ingra tem... Embora seja a baiana mais inglesa que eu conheço, porque ela é de uma pontualidade, de um rigor e de uma brancura que só uma inglesa tem (risos). Então, essa mistura incrível, de profissionalismo, de competência e, ao mesmo tempo, de alegria, de se soltar. Tanto que a gente dançava no camarim, sabe? Ela trouxe a mim essas doses maiores ainda de entusiasmo e de alegria. Até brinco quando a gente se reencontra, agora que a Ingra não está mais morando aqui: “Ai, a minha Ingralina”. Como se fosse uma cafeína, uma noradrenalina, uma dopamina...
O que vocês pensavam sobre amizade entre mulheres quando começaram a peça? Algo mudou desde então?
Ingra – Quando eu era pequena, tinha muitas amigas, de andarmos grudadas e tal. Mas tive um período, da adolescência até os 30 anos, em que meus amigos eram quase todos homens. A partir dos 30 – e talvez isso tenha exigido uma certa maturidade – comecei a descobrir a força e o valor de amizade entre mulheres, e isso perdura até hoje. Porque, nos momentos mais difíceis, pesa a sensibilidade e a compreensão femininas. Minhas amizades femininas sempre são muito profundas. De compreensão das nossas carências, dos nossos desejos, das nossas dificuldades. A gente compartilha fragilidades, multiplicidades, e se entende muito. Qualquer amizade é uma grande riqueza, mas com mulher tem um sabor especial. E acho que isso é muito recente. As mulheres começaram a dar as mãos e criar realmente laços e irmandade há muito pouco tempo.
Foram vocês que mudaram depois dos 30 anos ou foi o mundo em torno de vocês?
Ingra – A gente, por muito tempo, acreditou naquele papo de que mulher tinha que competir. Tem mais mulher do que homem, é verdade. Mas a gente pode olhar isso de outra forma. E se a gente pensar que esse número maior de mulheres pode ser um grande motivo para a gente apoiar umas às outras? Por que não? A gente precisa uma da outra. De união em vez de disputa. Essa campanha recente “Mexeu com uma, mexeu com todas” (mobilizada por atrizes da TV Globo contra o assédio) foi muito emocionante. Essa coisa de a mulher disputar e ser mais dissimulada vem de uma cultura machista, que está em transformação, e os próprios homens estão ajudando nessa transformação. Mas veio de uma cultura em que a mulher não tinha voz, não podia declarar sua vontade. Acabou isso, entendeu? A mulher sustenta, diz o que quer. Então, as coisas estão mudando muito profundamente.
Fernanda – Outro movimento interessante, que inclusive é daqui, é o Vamos Juntas? (criado por Babi Souza). Também mostra esse poder de a gente se juntar, se aproximar de quem não conhece para evitar risco de violência. Essa percepção de que, se há uma mulher sozinha, posso me aproximar dela e nós irmos juntas para o destino, ou desviarmos um pouco dos destinos iniciais, porque juntas nós somos mais fortes, vai além da fisicalidade. Há muito tempo, quando estudava Biologia, algo me marcou muito. A gente sempre acreditou que a evolução se dava pela competição – uma mentalidade darwiniana. Mas há outras correntes que colocam o valor da cooperação como um grande fator evolutivo. Se a gente for por essa linha de se ajudar, de colaborar, cresce muito mais tanto como humanidade quanto na posição da mulher na sociedade, no mercado, na vida amorosa.
Ouvindo vocês, lembrei de uma coluna de ZH, do Paulo Germano, observando que as filas de visitantes dos presídios, tanto o feminino quanto o masculino, são compostas quase totalmente por mulheres. Será que essa história de competição feminina não foi sempre balela?
Fernanda – Acho que a gente tem essa coisa da leoa, da maternidade, do território, da sua herança, dos seus. Acho que a gente ganha muita força nessas situações de proteger os seus.
Ingra – Talvez fosse mesmo (balela). Mas a gente acreditou durante muito tempo, né? Que outra mulher poderia ser uma ameaça para o nosso território. Estamos começando a ver que não. Assim como os homens estão experimentando muitas coisas maravilhosas que as mulheres viviam, como participar muito mais da criação dos filhos, poder chorar, se emocionar e sentir as coisas declaradamente. Já as mulheres estão começando a experimentar essa irmandade, que os homens sempre alimentaram em confrarias. E isso que a Fê fala sobre colaboração é muito legal: esta é uma grande transformação pela qual a humanidade está passando. Existe um trabalho de trazer o feminino para as relações humanas. Essa coisa da amorosidade das relações. Os homens também têm o feminino dentro deles, assim como a gente tem o masculino.
Se isso é tão natural, o que pode efetivamente ter gerado essa mudança recente? Ao menos de percepção?
Ingra – Acredito que muito dessa mudança não ter ocorrido antes é porque mulheres dependiam dos homens. Essa disputa por um homem, por uma família, e o medo que a outra tomasse o que era dela era uma questão de sobrevivência. Hoje, não. Você sobrevive sozinha. Ninguém está preso a ninguém, as pessoas estão juntas porque querem. Por isso mesmo, temos que olhar para as mulheres antes da gente. O movimento feminista foi incrível para todas nós. Reverencio todas as mulheres que foram xingadas de todos os nomes, seguiram em frente e abriram caminho para hoje nós estarmos trabalhando com o que a gente quer, ganhando nosso dinheiro.
Embora Inimigas Íntimas seja uma comédia, boa parte desses temas que estamos conversando aparecem na peça. No que o texto da peça mudou nesta década?
Fernanda – A peça fala de duas amigas. Elas começam amigas, e uma casualidade do destino as afasta. Acho que, talvez por esse fator cultural ter acentuado um problema de comunicação, elas julgam que houve uma trapaça. Que uma roubou a vida da outra. Que a outra foi sacana, não era amiga de verdade, traía pelas costas, que uma roubou a carreira da outra. Há esse julgamento. Acho que, naquele tempo, se vivia um pouco mais nessa fantasia da mulher sacana, competitiva. A gente vai descobrir que esse ranço cultivado pelo tempo em que elas ficaram separadas é, na verdade, a saudade da outra, a vontade de recuperar aquela amizade perdida.
Ingra – A peça é muito atual porque as duas personagens se transformam no decorrer, e a gente está passando justamente por essa transformação. De primeiro acreditar nessa bobagem, nessa ilusão de que a outra é uma ameaça. Com o amadurecimento de vida, tirando todas essas camadas de dor e de medo, se encontra essa amizade. O arco dramático da peça, a grande mágoa que elas carregavam, não era porque uma roubou o marido e a outra roubou a carreira de atriz da outra, mas porque uma privou a outra da sua presença. Essa descoberta do amor é das relações humanas, mas acho que a mulher precisava muito desse resgate. No momento em que ganhamos voz e começamos, inclusive, a declarar nossos medos, descobrimos que temos de dar as mãos mesmo.
Fernanda – Não sei onde foi, mas li que, quando mulheres se encontram, se divertem, dão risada, elas liberam mais ocitocina, que dizem ser o hormônio do amor, o hormônio que a gente libera depois que transa, depois que goza, o hormônio que a gente libera quando amamenta.
Veja que coisa!
Outra questão que aparece na peça é a passagem do tempo. A personagem que é atriz fala em mulher ter “prazo de validade”. Quem aposta muito na carreira vai sentir falta do tempo com a família. E vice-versa. Como vocês enxergam isso hoje?
Ingra – É, a gente tem prazo de validade para ter filho. A Fê teve aos 39 anos. O meu foi aos 37, também foi tarde. O que a gente acaba descobrindo é que você não precisa deixar de ter filho para se dedicar à carreira. Tudo junto é, inclusive, mais legal, mais divertido. Os homens estão cada vez mais parceiros. E não se culpe: o filho vai crescer admirando aquela mãe que não deixou de perseguir os sonhos dela. Na época, eu tinha essa visão equivocada: achava que ou era carreira ou era família. Tinha um pouco essa ilusão de que tinha que se dedicar a uma coisa só. Não, pô! A vida é tudo ao mesmo tempo. Espero que isso comece a mudar. Você pode ter o filho mais tarde porque quer, mas não por causa da carreira.
Existe algo na peça que vocês foram ajustando com o tempo?
Fernanda – A gente atualiza algumas cenas com referências da atualidade, mas coisa pouca. A gente mexeu no final algumas vezes até chegar a este de agora. No final antigo, as duas personagens coadjuvantes se encontravam e reclamavam que as protagonistas, que antes eram rivais, agora não se largam mais. Não paravam mais em casa. Era um final mais engraçado, mais divertido. Mas optamos por reformular. Agora, a peça termina com as duas protagonistas juntas, relembrando a adolescência. Lembrando, inclusive, de uma cena que a gente mostra de outra forma. Elas revivem, relembram. Ressignificam a cena que antes era contada como se elas estivessem disputando. Relembrando, não é mais disputa: são elas se divertindo. A ideia é mostrar como, ao longo da vida, a gente vai distorcendo lembranças e criando tabus imaginários. Mostra que isso não faz sentido entre amigas. Uma forma de reforçar aquele conceito de...
Ingra – De sororidade.
Fernanda – Isso.
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