Mary Del Priore vive de contar histórias. Não à toa, já lançou mais de 50 livros em que percorre a origem e as particularidades da sociedade brasileira, da paixão de Dom Pedro II pela Condessa de Barral à vida das mulheres, passando por sexualidade, consumo, intimidade, infância e, em seu livro mais recente, o racismo. Embora se dedique a compreender e explicar o passado, é no presente que ela se encontra, quando cuida de si, seja nas horas de atenção ao jardim – seu hobby –, nas aulas de pilates ou nos encontros com a família.
— Tenho uma vida muito equilibrada, de muito trabalho, uma ótima relação com meus filhos, meus netos. O segredo talvez seja esse, a gente viver no dia a dia as pequenas alegrias, não ficar esperando a suprema felicidade que não vai chegar nunca — afirma a historiadora, professora, pós-doutora na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, de Paris, e best-seller, com mais de 20 prêmios literários nacionais e internacionais, incluindo três Jabutis.
Mãe de três filhos – Pedro, 46, Paulo, 43, e Isabel, 40 –, Mary começou a estudar quando o trio era pequeno. Em seu primeiro ano na faculdade, a historiadora ainda voltava para casa para amamentar a mais nova. Equilibrar profissão e maternidade, no entanto, foi mais prazeroso do que imaginava. A pesquisadora conta que sempre teve apoio do ex e do atual marido – casou-se duas vezes – e se diz satisfeita por ter acompanhado de perto o crescimento dos filhos, trabalhando de casa.
O segredo talvez seja viver no dia a dia as pequenas alegrias, não ficar esperando a suprema felicidade que não vai chegar nunca
MARY DEL PRIORE
Historiadora
— Sou um exemplo para aquelas que casam, têm filhos e depois abandonam a carreira. Quando comecei a estudar tinha três filhos, tive que fazer vestibular. Tive a sorte, portanto, de entrar na universidade nos anos 1980 — recorda.
Neste período, em que dava início às suas pesquisas, chegava ao Brasil a segunda onda feminista e se falava cada vez mais sobre o tema mulheres e a sua relação com a família, a religião e a sociedade. Na mesma época, Mary foi convidada para escrever uma coluna no jornal O Estado de S. Paulo, o que lhe abriu mais portas e contribuiu para que ela trilhasse o caminho que a levaria ao patamar de uma das historiadoras mais influentes do país.
— Trabalho muito e gosto do que faço. Talvez meu diferencial seja essa paixão pela história, essa capacidade de comunicar ao grande público e a vontade de que os brasileiros se interessem pelo passado.
Hoje, aos 69 anos, Mary vive com o marido, Charles Lisbona, em Teresópolis, na região serrana do Rio de Janeiro. Afastada do agito dos centros urbanos, encontra a paz necessária para suas pesquisas e análises da história e da atualidade do Brasil. A escritora é uma das conferencistas do projeto literário Diálogos Contemporâneos e estará no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, no dia 29 de novembro, para explanar sobre “a construção da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Em entrevista por telefone à Donna, ela falou sobre a importância da educação, as lutas femininas, padrões de beleza, política e sua vida pessoal — uma daquelas conversas em que se lamenta ter chegado ao fim. Há muita história para contar.
Como começou seu gosto pela história? Foi uma caminho natural seguir a carreira acadêmica?
Sempre fui uma criança solitária, numa casa grande, com uma biblioteca grande, mas nenhuma censura de acesso aos livros, e comecei a ler o acervo. Acho que a leitura caminha mais ou menos para questões que estão ligadas à história. Adorava ler sobre viagem, sobre aventuras, e a história é um pouco de tudo isso, só que contando a história de figuras de verdade, que fizeram parte do nosso passado.
Qual a diferença entre a sua geração e a das mulheres que têm 20, 30 anos hoje?
Essa geração que vem aí é revolucionária, tanto nos projetos de afirmação sexual quanto nos projetos coletivos. É uma sociedade menos consumista, há muito jovem que não quer ter carro, não quer ter casa, quer ir viajar. Uma vontade de experimentar, não tem mais aquela preguiça de ficar no mesmo emprego a vida toda. Tenho muito a aprender com eles, sou muito entusiasta das gerações que estão chegando.
Seus primeiros livros são do início dos anos 1990. Hoje, registrar e analisar a história é ainda mais desafiador do que há 30 anos?
Mudou tudo. Hoje nós temos tanta opção historiográfica, tanta tese, tantos livros mostrando exatamente o que procuro mostrar nos meus, que as mulheres sempre resistiram à violência, que o machismo nunca foi um obstáculo para elas se tornarem letradas, escreverem, participarem da política. O interesse dos dias de hoje é mostrar que o empoderamento sempre existiu, a mulher sempre soube resistir e ela está longe de ser uma vítima o tempo todo.
No projeto literário Diálogos Contemporâneos, você falará sobre violência contra a mulher. A pandemia jogou ainda mais luz sobre uma epidemia antiga?
O importante é primeiro entender como se constroem papéis para as mulheres, que, quando negados, contrariados, incentivam essa violência. Da mesma maneira que se constroem esses papéis para as mulheres, a dona de casa, a mãe, a boa esposa, a boa trabalhadora, a mulher honesta, que carrega um peso importante na nossa sociedade, se constrói para os homens uma imagem de virilidade, de que o homem deve proteger a sua honra, deve ser forte, obedecido. Diria que é o confronto dessas duas construções que faz com que o índice de violência venha aumentando, uma vez que as oportunidades para as mulheres vão se multiplicando, tanto pela entrada no mercado de trabalho, pela emancipação sexual e pela terceira onda feminista. Quanto mais longe da caixinha, mais o homem tenta corrigir as mulheres. É esse diálogo que procuro mostrar.
A sociedade precisa reconhecer o machismo estrutural para termos uma mudança efetiva?
Esse machismo estrutural é decorrente de culturas diferentes. Tem sempre uma atenção ao machismo estrutural associado ao homem branco, heterossexual, mas lembro que o patriarcado na África é violentíssimo até hoje, com operações de mutilação da vagina, casamento de crianças, e também nas nações originárias, em que os papéis sexuais estavam muito definidos, com certas funções que só podem ser dos homens. Para os crimes, existe a lei; para o preconceito, o segredo é a educação. E uma educação que tem que vir de casa. Nós temos no Brasil um fenômeno interessante da mulher como produtora de machismo, a mãe que diz para o filho “homem não chora”. De alguma maneira, está incentivando esses papéis que são socialmente construídos.
Estamos prestes a entrar em ano de eleições. Como você vê a presença das mulheres na política?
Tem que ser um desejo verdadeiro das mulheres. A pergunta que não quer calar é: por que há tão poucas mulheres na política? Sem contar as que entraram para fazer exatamente o que políticos canalhas fazem. Então, muito mais do que desejar, é importante que tenham agendas diferentes e sejam capazes de fazer uma aliança. É preciso chamar os homens para essa conversa e mostrar que o patriarcado é tão ruim para eles quanto para elas, porque exige que o homem ganhe dinheiro, seja um vencedor, tenha o carro da moda, o nível de exigência também é alto.
Seu livro Sobreviventes e Guerreiras mostra que a mulher luta há muito tempo para ser quem é. O que é mais urgente enfrentar hoje?
A educação de mulheres, sobretudo de mulheres pobres, que se efetue com qualidade, com consistência. Quando uma menina pobre engravida aos 12, 13 anos, ela volta para a miséria mais absoluta, tem filhos de companheiros diversos, não tem como estudar, como se informar, não tem emprego, sem condições de conhecer uma vida melhor, que só a educação pode dar.
No livro Histórias e Conversas de Mulheres, você descreve a busca de um padrão estético pelas sinhás do século XIX. O que a história do Brasil pode contar sobre os padrões de beleza atuais?
Há uma pressão muito grande pela perfeição corporal. Alguns sociólogos explicam que (tem a ver com) a vida ao ar livre, a praia. E aí a gente vê o impacto da chegada das imagens como formadora de padrões de beleza, depois o cinema americano, com seus grandes atores e atrizes. Como marco dos anos 1980/90, por exemplo, lembro que Xuxa e companhia eram todas mulheres loiras, que não são nada a ver com as crianças para quem estavam falando. Hoje, a presença de homens e mulheres afrobrasileiros nas capas de revista, na televisão, no cinema, está mudando os padrões. E vamos buscando soluções para os nossos problemas. Isso que importa, que a gente não fique parado no tempo achando que modelos importados servem para a gente.
Como o envelhecimento das mulheres é encarado hoje em comparação com tempos passados?
Numa sociedade que preza tanto a juventude, envelhecer é mais difícil, sem dúvida nenhuma. Mas hoje nós temos mil formas de envelhecer com qualidade. Depende da pessoa também, precisa estar com uma boa saúde, ter uma renda mínima, precisa ter uma satisfação interior de que realizou alguma coisa ou que está realizando. A idade é uma posição diante da vida, tem pessoas de 40, 50, 100 anos com a cabeça mais aberta do que os jovens de 20, inseguros, com medo, não sabem quem são, o que vão fazer. Idade é uma posição diante da vida.
Você está prestes a fazer 70 anos. Como está sendo esse momento?
Estou feliz, realizo meus projetos. Meu trabalho hoje não sou mais eu, a pessoa, o que conta é que os livros têm servido em comunidades, sobretudo pobres, para inspirar mulheres fragilizadas, para ensinar educação sexual para jovens. Isso é bacana, quando o que você faz não é mais você, já ganha vida própria.
E a experiência como avó?
Hoje a criança tem o apelo do brinquedo tecnológico, que na época dos meus filhos não existia. Meus filhos foram criados ao ar livre, com muita natureza, muito bicho. Tenho mais que me adaptar aos meus netos do que eles a mim.
*Colaborou: Nathália Carapeços