Foram cerca de 12 anos de gestação até o nascimento de "Mar de Dentro", primeiro longa-metragem da gaúcha de Porto Alegre Dainara Toffoli, nos cinemas desde quinta-feira (7). Com um currículo recheado de experiência na direção de séries, curtas e na criação de roteiros — algumas produções assinadas por ela são o curta "Um Homem Sério" e o documentário "Dona Helena" — Dainara agora convida os espectadores para um mergulho no mar de sentimentos que envolvem a maternidade real e o puerpério.
O filme é uma oportunidade para refletir sobre questões que estavam presas na garganta da diretora há anos: desde que viveu a gravidez de seu filho, Bernardo, e se deu conta que sabia muito pouco sobre os impactos que a maternidade teria na sua vida profissional, seu corpo e emocional. É através da atuação de Mônica Iozzi que a protagonista Manuela ganha vida, uma publicitária no topo da carreira que se vê diante de uma gravidez não planejada.
O longa busca transitar na mão contrária da maternidade idealizada, retratando a incerteza sobre o "querer ser mãe", a falta de empatia da sociedade e do mundo do trabalho para com uma trabalhadora grávida e a solidão e potência da mulher durante os primeiros meses de vida do filho.
Após o período nos cinemas, "Mar de Dentro" poderá ser conferido nos canais do Telecine e no streaming da marca. Confira abaixo uma entrevista com Dainara Toffoli.
Do que "Mar de Dentro" fala? É um filme sobre maternidade real?
Eu queria fazer um filme que falasse de maternidade de uma maneira mais honesta. Quando fui mãe, senti que tinha sido sonegada de informações sobre a maternidade durante a minha vida toda. Mesmo vinda de uma família super matriarcal, eu percebi que não sabia de nada e que ninguém mais sabia. Eu fiquei grávida aos 36 anos e não sabia sequer que peito rachava. Como é o puerpério? O que ia acontecer com minha vida e com meu trabalho, como eu deveria me preparar para aquele momento?
À época, eu era diretora de publicidade freelancer e coordenava um monte de projeto. Aí a barriga começou a crescer e acabou, não tinha mais trabalho. Passei a ser enxergada somente como uma mulher grávida em uma sociedade onde a gravidez é tratada, não como algo natural, mas como sinônimo de "ficar de fora do jogo". Eu estava fazendo uns quatro filmes por mês e, do nada, fiquei sozinha com a minha barriga e os meus pensamentos. Depois que tive filho, entendi a coisa do peito, do leite, das noites insones, a exaustão completa e falei: "Nossa, por que a gente não fala sobre isso? Por que a gente não conversa?".
Esse filme vai por caminhos que se cruzam com a tua própria biografia? Tem aspectos autobiográficos?
Eu queria fazer um filme que a minha experiência de vida pudesse me ajudar a dirigi-lo. Ele não chega a ser autobiográfico pois não tem nada ali que eu tenha vivido, mas guarda semelhanças principalmente na parte sensorial. Há várias situações no filme que eu senti de alguma maneira, como a sensação de isolamento e aquela coisa se olhar no espelho e se questionar "quem é essa pessoa?".
O filme foi caminhando para lugares difíceis muito por causa da força de interpretação da Mônica Iozzi, que fez com que a personagem acontecesse mesmo nos silêncios. Ela chegou num lugar que eu não imaginava, trazendo vivência, corpo, exaustão e outros sentimentos para o filme. Eu inclusive cortei algumas cenas que tinha previsto, de papinho, pra não correr o risco de banalizar o filme. Eu queria muito conseguir ser honesta com os processos que a gente vive.
Por que o título "Mar de Dentro"? Parece remeter a uma ideia da profusão de sentimentos e emoções que a mulher tem no interior, alguns transbordando, outros não. É por aí?
É exatamente por aí. A gente é aquoso por dentro, então tem essa questão física dos nossos líquidos, o sangue, o leite que jorra do peito, a placenta que nutre o bebê. Para além disso, tem uma questão dos humores: às vezes estamos numa calmaria, às vezes numa tensão, e tudo isso é um pouco incontrolável durante a gestação e o puerpério, que são períodos que o filme mostra bastante. Estamos com um monte de coisa acontecendo dentro da gente e também estamos dentro da casa da gente. Lembro da primeira vez que saí de casa no puerpério — um momento marcante para todas nós — e de pensar "Que maravilhosa é a vida, os pássaros, os carros!". Tomar um caldo de cana, ver a vida passar, qualquer coisa é um pequeno prazer. O título tem a ver com respeitar o nosso mar interior e os nossos sentimentos. Não temos que dar conta de tudo, não temos que nos moldar a um padrão.
Há alguma mensagem em especial que tu espera que seja passada pelo filme ao público?
Aos poucos fui percebendo que o filme que estava fazendo não tinha um fim em si, mas sim que ele seria uma obra para inspirar a conversa sobre algumas questões. O cinema se presta muito a isso. Adoro ter filho, mas acho que a gente tem que ser mais generoso com a mulher e com as mães, temos que ter um olhar mais realista. A maternidade é potência, não é fragilidade. A mulher mãe sequer dorme, tá dando conta de mil coisas e precisa de apoio e de acolhimento. O cinema já foi muito um veículo que criou papéis inalcançáveis para a mulher; a mulher musa, a mãe perfeita, a mulher que dá conta de tudo e tá ali impecável.
A protagonista é uma profissional bem-sucedida que não é bem acolhida pela empresa diante da gravidez. Como o mercado de trabalho trata as mães?
Segundo pesquisa da AGV, 47% das mulheres que saem de licença maternidade são demitidas em até dois anos depois que voltam para o mercado de trabalho. A personagem é publicitária e quando a gente olha para a base do quadro de funcionários das agências, há tantas mulheres como homens. Mas aí vão passando os anos, as mulheres vão tendo dificuldade para se recolocar depois de ter filhos, e acaba que o topo da empresa fica composto majoritariamente por homens. E aí a publicidade fica reproduzindo um olhar masculino.
E tive que ter uma energia imensa para retomar o trabalho, foi difícil. Por causa do medo, comecei a aceitar trabalhos bem cedo: quando o bebê tinha cinco meses já estava no set, amamentando. O trabalho é uma parte grande da vida da gente e gostava muito do meu dia a dia. O medo era de me perder totalmente, perder minha vida, perder quem era. Isso acontece com muitas mulheres, suas vidas sofrem uma quebra. Contribui para isso o fato da licença paternidade ter apenas cinco dias, que também faz com que o homem, mesmo que queira, não consiga se conectar do jeito que a gente se conecta. Em países em que a licença maternidade e paternidade têm a mesma duração, toda relação coma criança é diferente.
Algumas mães se frustram quando voltam ao trabalho por não conseguirem dedicar atenção à criança como faziam antes. A protagonista de "Mar de Dentro" vive algo parecido. Por que tu trouxe essa tensão para o filme?
Foi de propósito, ainda mais que a personagem trabalha numa função que exige uma dedicação que não é das 8h às 20h. O filme aponta que a mulher vai ter que encontrar um outro equilíbrio para a vida dela. Quando se torna mãe, essa concessão, esse ajuste tem que ser feito. É possível equilibrar maternidade e trabalho, mas durante alguns anos ela vai ter que negociar de algum jeito, se não vai acabar perdendo uma das duas coisas.
Qual a importância de incluir discussões sobre rede de apoio e abandono parental no teu longa?
Eu não queria que outros assuntos como a relação com o parceiro ou a questão econômica se sobrepusessem ao que estava acontecendo com ela, como se o estado físico e emocional da protagonista tivesse a ver com outras coisas além da maternidade. Ao mesmo tempo, achei importante trazer a figura das babás, pois dificilmente uma mulher que não cria sua rede de apoio — na maioria das vezes, pagando — vai conseguir voltar a trabalhar. Na minha experiência pessoal, dos seis meses de vida aos quatro anos do meu filho Bernardo, a Raquel (que inclusive inspirou uma das babás do filme, que também se chama assim) andava comigo pra cima e pra baixo na van, na ilha de edição. Eu tive esse suporte, se não, não teria conseguido.
Tu vens de uma carreira assinando curtas, documentários e episódios de séries. Por que agora é o momento do primeiro filme?
Comecei o projeto quando meu filho tinha dois anos, e hoje ele tem 15. O processo desse filme foi um grande parto: foi filmado no final de 2018, de forma que não fomos impactados pela pandemia na gravação, somente no lançamento. Era para ser lançado em 2020, mas acabamos segurando, tentando entender o momento. Nesse meio tempo, eu morria de medo que ele envelhecesse, mas não aconteceu. Esse filme foi encontrando o tempo certo pra ele ser como é. Se eu tivesse feito antes, talvez fosse um pouco menos corajoso. Tive algumas experiências nesse meio tempo que abriram meus olhos para outro tipo de cinema.
Estamos vivendo um momento em que há mais conversas sobre maternidade real e diversos olhares de diretoras mulheres falando sobre esse tema, tratando a maternidade com menos idealização. É a idealização que cria uma régua para as mulheres — sejam elas mães ou quem está pensando em ter filhos — que é impossível de alcançar, pois é totalmente fictícia. A idealização faz com que a gente pense que estamos sempre devendo a barriga tanquinho, o cabelo perfeito. Então queria que fosse um filme que mostrasse a potência da mulher real, que a gente olhasse e se identificasse.
Como está o mercado da produção audiovisual para as mulheres? Tu esbarras em preconceitos?
Tudo depende de quem contrata. Recentemente os streamings estão preocupados com esse tema, o que é muito legal. Eu sinto que mais mulheres estão alcançando postos de decisão, coisa que não acontecia antes. Antigamente, a mulher que chegava num posto de decisão importante invariavelmente era a única naquela situação e lutava muito para manter o seu lugar. Então talvez ela reproduzisse um pouco o que um homem faria naquele lugar. Acho que, nesse momento, estamos num lugar muito bom para as mulheres.
Como se deu a escolha pela Mônica Iozzi para o papel principal?
Acertei, né? Foi uma aposta, já que eu nunca tinha visto ela num papel dramático, que de fato ela nunca tinha feito no cinema. Eu fui ver um filme de um parceiro meu, que é uma comédia Mulheres Alteradas e algo na interpretação dela me encantou, ela estava muito presente na cena. Chamamos ela para uma leitura e coincidiu que ela estava afim de fazer projetos mais relacionados ao drama, diversificar. E foi muito legal tudo o que ela trouxe, principalmente porque eu queria uma mulher contemporânea, não uma figura doce e frágil. É uma personagem dura. Ninguém se choca com homens duros no cinema, então porque é que a mulher impressiona quando é dura? Nós somos uma diversidade imensa de personalidades, por isso queria retratar uma mulher que não tenha fantasia na maternidade, que namora, que vai bem no trabalho, o que é muito comum hoje em dia. E a Mônica é brilhante, inteligente, sensível e traz tudo isso.