Renata Bittencourt Munivrana, de 35 anos, fixou residência na Croácia em 2014. Ela vive com o marido, que é croata, e com seus dois filhos em Podstrana, região metropolitana de Split. Assim como muitas brasileiras que vivem no Exterior, Renata viveu experiências de assédio no mundo do trabalho. Uma delas foi com um superior que telefonava lhe prometendo uma "vida de rainha", se a brasileira virasse sua amante no navio em que trabalhavam.
— Também percebi que muitas vezes o tom da conversa com estrangeiros muda quando eles descobrem nosso país de origem. O que eles pensam ser elogio, como o "amo brasileiras, vocês são quentes", é, na verdade, ofensa mascarada. O que realmente queremos é respeito e viver em paz. Desse estereótipo estamos cansadas e de saco cheio. Hora de virar o disco e tocar outra música — destaca Renata.
A analogia ao universo musical não é por acaso. O debate entoado pela imigrante vem na esteira da mais recente polêmica envolvendo a cantora Anitta. No topo da carreira internacional, com o hit Envolver reconhecido como a canção mais ouvida no Spotify Global em março e número um na lista das canções mais populares da Billboard Global 200, a carioca vive um sucesso estrondoso. Tanto que foi escolhida para estar na capa da edição comemorativa da revista norte-americana Nylon Magazine. Divulgada na segunda-feira (5), e prevista para circular no festival de música Coachella, no final de abril, na Califórnia, a publicação, no entanto, seguiu um rumo diferente da expectativa: além da imagem da cantora, traz a citação "No Brasil, todo mundo quer se divertir e transar e eu quero trazer essa energia para cá".
A frase gerou reações nas redes sociais, aquecendo o debate acerca da imagem da mulher brasileira no Exterior e sobre como a reprodução de frases como esta poderiam reforçar o turismo sexual e o estereótipo de que a brasileira é "fácil" — conceito que já impõe desafios para muitas que vivem fora do país. Anitta, por sua vez, se diz revoltada com a capa, manifestando no Twitter que a frase foi tirada de contexto, a partir de uma entrevista que durou duas horas. "Meu Deus. Tira o ódio de dentro de mim pq a vontade é de mataaar", exclamou ela, em um dos posts sobre o caso na rede social.
Convidada por Donna a refletir sobre o tema, a curadora e pesquisadora na área de artes e feminismos no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, Talita Trizoli, aponta que é preciso levar em conta a possibilidade de que a publicação tenha, realmente, pinçado uma frase de efeito fora de contexto para impulsionar o interesse na entrevista e nas vendas, já que sexo ainda é muito utilizado como estratégia de marketing. No entanto, o imaginário de hiperssexulização da mulher brasileira está consolidado há anos e não decorre da figura de Anitta.
— Apenas a frase dela na revista não é suficiente para consolidar um mercado sexual. Ela pode reforçar e alimentar um imaginário de desejo e de acessibilidade sexual no país, mas o mercado de prostituição e da indústria do sexo é muito mais complexo e violento do que a frase de uma artista. Sim, acaba reforçando um estereótipo, mas essa construção erotizada da mulher brasileira é muito mais antiga do que a cultura pop brasileira, que data dos anos 1980 — aponta.
Embora tenha equívocos no momento em que faz uma generalização do povo brasileiro, a frase na capa da Nylon não surpreende a professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Simone Pereira de Sá, que coordena um grupo de pesquisa sobre cultura pop no país e é autora do livro Música Pop-Periférica Brasileira: Videoclipes, Performances e Tretas na Cultura Digital", que tem vários trechos dedicados ao fenômeno Anitta.
— Não achei tão grave quanto está sendo falado e não é surpreendente a Anitta falar isso, já que em sua trajetória ela tem construído sua persona midiática em torno das ideias de que sexo é bom, de que mulher pode transar, de que isso é uma dimensão importante da vida. Claro que a frase permite muitas interpretações, principalmente para quem não conhece Anitta, e é infeliz por conta de duas palavras: "todo mundo", a generalização. Mas fato é que muitas vezes fala-se "no Brasil todo mundo gosta de Carnaval" e é claro que um monte de gente não gosta — afirma Simone. — A gente tem que começar pensando: "Para quem que Anitta está sempre falando? Qual é seu público?". É um público jovem que efetivamente gosta de se divertir e o gênero musical no qual Anitta está aciona esses valores. Não há contradição entre o que ela disse e o que ela tem construído como persona — pontua.
Há um histórico de cobrança exacerbada toda vez que alguma figura brasileira rompe as fronteiras e alcança o estrelato no Exterior, a qual é ainda mais intensa quando a estrela é mulher, observa Simone, lembrando o que ocorreu com Carmem Miranda. Apelidada de "Brazilian Bombshell", a artista teve muito sucesso nos EUA e foi "cancelada" no Brasil, sendo acusada de ter perdido a sua brasilidade e tendo que se justificar, o que fez através de canções como Disseram Que Eu Voltei Americanizada.
— Me parece que tem uma expectativa excessiva da cultura brasileira. É como se esse alguém que consegue sucesso fora tivesse imediatamente que se responsabilizar por uma imagem do país. Só que o Brasil não tem uma imagem única e ninguém vai conseguir levar todas para o Exterior. O que precisamos é de muito mais gente fazendo sucesso, ganhando visibilidade, de forma que múltiplos discursos e narrativas estejam representados. Sem dúvida, são legítimas as críticas vindas de um grupo que acha que a fala sobre sexo pode estimular a exploração do corpo feminino, mas não acho justo cobrar que Anitta responda a todos os nossos anseios enquanto brasileiras — sublinha a especialista.
Nas páginas da história
Parte do problema da hiperssexualização da mulher brasileira que hoje motiva a polêmica envolvendo a cantora tem origem há mais de 90 anos. Segundo a pesquisadora Talita Trizoli, foi no governo de Getúlio Vargas que a ideia de uma sexualidade acessível da mulher brasileira foi solidificada e exportada, ao mesmo tempo em que o governo investia na criação de uma identidade nacional para os homens e mulheres nascidos no Brasil.
— É desse período a cristalização dos lugares tradicionais da mulher, com uma hipervalorização da esposa, dona de casa, mãe. Mas também há a criação do imaginário da mulher sexualizada, da femme fatale, que tem como símbolo, por excelência, a mulata. E a partir disso, como um programa de governo mesmo, cria-se uma série de arquétipos que vão se propagando internacionalmente, um imaginário do que seria o Brasil e a cultura brasileira. E a mulata sambando vai nessa esteira — aponta Talita.
Eleger a mulher negra como uma figura de acessibilidade sexual tem raízes violentas, observa ela, relacionadas ao período escravocrata em que muitas eram estupradas e seus corpos entendidos como posse dos senhores brancos. Anos depois, ficou como herança um imaginário do corpo negro sensualizado e de fácil acesso, que coloca essas mulheres em um lugar de maior vulnerabilidade que mulheres brancas.
— Essa construção andou lado a lado com uma mão do Estado, na hora de construir e vender o mito da identidade brasileira, juntamente com uma sociedade patriarcal e misógina que entende o corpo das mulheres como uma propriedade pública, principalmente o corpo de negras. E também não vamos esquecer alguns políticos que estão aí e que oficialmente deram declarações de "pode vir para o Brasil que a mulherada aqui transa fácil". Há uma via de mão dupla muito equivocada entre acessibilidade e liberdade sexual, e tudo isso acaba recaindo na falta de compreensão sobre consentimento e sobre desejo — explica.
Palavra de quem vive no Exterior
Embora a questão tenha diversas facetas, boa parte das manifestações acerca da capa da Nylon foram escritas por mulheres que vivem no Exterior e entendem que a publicação vai na direção contrária dos esforços que fazem diariamente para combater os preconceitos vinculados ao seu gênero e nacionalidade. A canoense Gabriela Peixoto, que tem 25 anos e viveu na Austrália durante cinco, considera o ocorrido uma infelicidade, já que a fala é atribuída a uma cantora que tem sido referência e porta-voz de pautas importantes.
Trabalhei em um restaurante em que meu chefe enfatizava que gostava de brasileiras porque elas atraíam mais clientes
GABRIELA PEIXOTO
que viveu na Austrália por cinco anos
— Há quem acorde todos os dias em lugares onde ser brasileiro significa enfrentar o dobro de obstáculos que pessoas de outros países não encaram, principalmente sendo mulher. Qualquer comentário que os aumente está dispensadíssimo. Ela fez o Brasil inteiro se resumir exatamente àquilo que acreditam que somos, desconsiderando o trabalho que mulheres imigrantes enfrentam todos os dias pra se livrar de preconceitos — desabafa.
Algumas vivências de Gabriela escancararam os supracitados estereótipos. Ela relata que, para conter os avanços de homens de outras nacionalidades, muitas ficam na defensiva e acabam sendo entendidas como "raivosas".
— Trabalhei em um restaurante em que meu chefe enfatizava que gostava de brasileiras porque elas atraíam mais clientes. Prontamente relacionei isso à questão do trabalho duro, já que, sim, a gente vai com tudo e faz bem feito. Mas aí comecei a perceber que ele falava isso por conta da beleza e da "simpatia" — relembra a jovem, seguindo o relato. — Caso eu fosse trabalhar com uma roupa mais solta, ele falava que eu não parecia brasileira, que eu tinha que ir ao Brasil passar férias e relembrar quem sou. E nos momentos em que eu ficava mais quieta e parava de sorrir, depois de longas horas de trabalho, ele dizia que eu estava tentando ser australiana e que, se ele quisesse alguém assim, teria contratado alguma menina nativa — conta.