Clarissa Ferreira não se deixa enredar por perguntas que possam levar a clichês sobre a figura feminina. Ao ser questionada, por exemplo, sobre sua infância em Bagé, na Campanha, e se recebeu apoio da família para ser artista, ela responde que os pais sempre a incentivaram e afirma não ter qualquer história de dificuldade para contar, como pode acontecer com mulheres do Interior que sofrem alguma resistência ao escolherem carreiras menos convencionais.
— Meu pai e minha mãe são responsáveis pelo que sou. Sempre me apoiaram. Me incentivam e me admiram. Falam: “Vamos lá” — diz.
Ela começou a tocar violino aos 12 anos, no Instituto Municipal de Belas Artes, onde conheceu a música erudita. Logo depois, entrou em uma orquestra de Bagé.
Aos 16, passou a estudar Música na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Enquanto aprendia sobre Bach e Mozart, recebeu o convite para tocar em Centros de Tradições Gaúchas (CTGs). Foi no tradicionalismo que Clarissa se profissionalizou, apresentando-se em diversos festivais nativistas, e consolidou-se como uma das raras mulheres a empunhar um instrumento.
Ganhou diversos prêmios como violinista, até passar a questionar a cultura gaúcha e o papel que ela reserva às mulheres – no passado, no presente e também na forma como elas são retratadas nas composições. A partir de então, buscou outras inspirações.
— Eu era respeitada e benquista, mas porque não discordava de nada. Não problematizava. Aparecia nos shows e fazia o que me pediam para fazer. Mas sei que meu jeito causava um pouco de incômodo. Sempre fui de entrar em um lugar e falar com todo mundo. Extrovertida, mesmo. Não me escondia. Falava bobagem, ria, saía dos festivais e dava meus rolês. Não era o esperado — relembra.
Aprofundou-se tanto nos estudos sobre a cultura e a música gaúchas que fez mestrado e doutorado no tema. Foi para o Rio de Janeiro, voltou e estabeleceu-se em Porto Alegre, onde fez parcerias musicais que a permitiram dar vazão à artista plural que é, capaz de misturar ritmos do regionalismo a influências brasileiras, dando uma roupagem contemporânea a um estilo tradicional.
Depois de ter conquistado voz própria, espaço e independência, já não sente mais necessidade de estabelecer distâncias com o gauchismo. Aos 36 anos e lançando seu primeiro disco, intitulado La Vaca, que em breve poderá ser conferido nas plataformas de streaming, reconhece as particularidades da cultura gaúcha e as valoriza – tanto na música quanto na aparência.
No dia desta entrevista, usava adereços imitando pelos de animal presos aos tornozelos:
— Mudei, porque vi que algumas formas de falar não funcionam. Hoje, penso em conquistar as pessoas pelo som, em tentar me aproximar. Desde que comecei a agir assim, tudo começou a fluir um pouco mais.
Com roupa, cabelo e maquiagem impecáveis e arrojados, Clarissa começou esta conversa rechaçando a ideia de que feministas não podem valorizar sua imagem. Confira:
Não existe um estereótipo de que as mulheres se preocupam demais com a estética?
Existe o mito da beleza, construído socialmente e que favorece o mercado que vende produtos e lucra com esse mito. Mas é preconceituoso pensar que as mulheres – e feministas – não possam ter vontade de cuidar da aparência.
Acho esse pensamento até machista. Particularmente, valorizo a beleza natural, no sentido de não passar por procedimentos estéticos, mas gosto de cuidar da minha imagem e da forma como me visto. Isso comunica quem sou.
Você sempre se preocupou com a questão da aparência?
Sim, bastante. A música é uma arte e as artes são múltiplas. Em todos os meus trabalhos, clipes, fotos, tento comunicar o tipo de som que estou fazendo, e o visual é importante.
Sempre tive muito respeito e preocupação em estar do melhor jeito possível para o público. Na época em que participava dos festivais nativistas, sempre mandei fazer muitas roupas. Gostava de criar meus looks mais contemporâneos, sem babados.
Incomoda quando perguntam sobre machismo no meio musical?
Acho que a mídia se alimenta dessas dores e desigualdades que as mulheres enfrentam. A gente pode falar sobre as conquistas que estamos efetuando em nossas vidas, as curas que estamos promovendo. É uma questão de olhar.
Embora tenha se afastado da música nativista, você não se desenraizou totalmente.
E nem quero. Em algum momento, houve um rompimento e não queria nada que me identificasse com o nativismo. Mas depois de estudar bastante a cultura gaúcha – fiz doutorado sobre o tema e lancei o livro Gauchismo Líquido – vi que temos características peculiares no Rio Grande do Sul.
Nossa configuração geográfica, nossa linguagem, são características que nos fizeram ser como somos. Voltar-se para as coisas daqui e ressignificar isso é curativo, porque podemos nos compreender.
Prefiro estar em diálogo com músicos que estão aqui do que buscar o eixo Rio-São Paulo. Vitor Ramil fala que estamos em um eixo de outra história, uma região de fronteiras, muito rica culturalmente.
Como está sua relação com o movimento tradicionalista?
Os festivais nativistas ainda são muito masculinos. E isso me fez perceber que esse não é um espaço para estarmos com nossa potência. Parece que tenho que me encolher um pouco para caber nesse lugar.
Cheguei à conclusão de que deveria procurar outros espaços. Não posso negar que foi um ambiente onde aprendi muito, onde me profissionalizei. Foram 10 anos importantes. Foi uma escola.
É natural as mulheres serem colocadas como vilãs, é o senso comum
CLARISSA FERREIRA
Cantora e compositora
O que é a sua música hoje?
É uma música pós-gaúcha. Me alimentei de tudo o que foi feito, degluti e criei algo novo. Várias pessoas relacionam o meu trabalho com o movimento antropofágico. Mas também não deixa de ser música popular gaúcha.
Muita gente já fez isso de pegar ritmos e misturar com a bossa nova, o candombe, que é um ritmo uruguaio, a chacarera, que é argentina. Também dá para dizer que é música feminista gaúcha.
O meu novo disco, La Vaca, tem a questão das mulheres como tema principal. Não só mulheres como todas as fêmeas que habitam o pampa, inclusive animais.
Fale um pouco sobre o seu primeiro disco.
Fiz várias parcerias. Musiquei uma poesia da Angélica Freitas e até uma poesia do Mario Quintana, A Vaca, que dá nome ao disco. Tem uma poesia musicada da Maria Gabriela Saldanha, que mora no Rio de Janeiro, uma música feita durante o Peitaço da Composição do ano passado, chamada Chinaredo de Alpargatas. Parcerias com Susane Paz, Loma, Vitor Ramil, Nina Wirtti, Rhaissa Bittar.
Na música Tiranas, você canta que precisamos das vilãs. Por quê?
A letra da música diz que nosso processo de demonização é secular. É natural as mulheres serem colocadas como vilãs, é o senso comum. Mas podemos ir além. Ser mulher não significa que viemos com uma essência de mulher. Elas podem ser de inúmeros jeitos.
A música Flor de Pedra, uma letra da Susane Paz que musiquei, com participação da Loma, diz: “Nasço flor e me torno pedra”. Acho que tem a ver com o fato de as mulheres passarem por tanta coisa que acabam endurecendo.
Depois de tanto tempo tocando com homens, você tem tocado mais com mulheres. Sente-se melhor?
Com as gurias, vejo que é possível realizar as coisas que tenho vontade. Óbvio que ainda tenho parcerias com homens, mas vejo uma potência nelas que sempre ficou guardada. Temos muita vontade de fazer, de produzir.
Queremos falar sobre a questão das mulheres; consequentemente, vamos trabalhar mais com mulheres. Tento fazer valer na prática o que estou cantando.
Elas têm que ser protagonistas de todas as etapas do disco. Meu objetivo é fazer com que dominem todas as etapas do processo criativo.
Gauchismo Líquido tem um texto sobre Berenice Azambuja. Ela foi uma referência para você?
Discuto como ela trabalhava a questão de gênero no tradicionalismo, trazendo ora um eu lírico feminino, ora masculino. Ela foi uma artista transgressora dentro desse movimento, tanto pelas músicas quanto pela postura.
Não se vestia de forma estereotipada. Era quase não binária. Mas não é considerada um cânone entre os compositores, porque fazia música de baile, o que é considerado pouco intelectualizado.
Mas lá na década de 1980, cantava: “O mundo é das mulheres/ Para elas tiro o chapéu/ Homem que bate em mulher/ Não vai entrar no céu”. Era feminista desde a década de 1980.
Mas você também tem uma grande influência do Vitor Ramil.
O Vitor Ramil tem um compromisso com o estilo dele. Ele fez um trabalho em que acreditava, e não o que disseram para fazer. Isso é inspirador. É minha referência máxima. Além de gostar das músicas, gosto de ele ter valorizado as coisas daqui, de não “pagar pau” para Rio e São Paulo.
Apesar de ele admitir que, se tivesse ido para lá, talvez tivesse alcançado outro patamar de reconhecimento. Mas ele diz que foi decisão dele ficar aqui e ninguém precisa fazer igual. Sou fã.