O remake de Pantanal, próxima novela das 21h da Globo, traz à memória de muita gente o rosto de atores e atrizes que deram vida a inesquecíveis personagens desta trama que marcou época da televisão brasileira. Nesse grupo, uma gaúcha se destacou ao conquistar simpatia e admiração como a Guta, uma jovem bonita e independente: Luciene Adami.
A emoção com que, ainda hoje, essa porto-alegrense de 58 anos fala da novela comprova a importância que essa produção, escrita por Benedito Ruy Barbosa, ganhou na vida pessoal e profissional de quem participou do projeto.
— Quando ouço ou vejo as chamadas na TV, me dá um nó na garganta. A música é emocionante. E traz de volta tudo o que vivi, profissional e pessoalmente — conta.
Originalmente exibida em 1990 pela extinta TV Manchete, Pantanal foi a primeira novela de Luciene. Então com 25 para 26 anos, a atriz apresentava um programa na TV Cultura quando foi escolhida pelo diretor, Jayme Monjardim, para interpretar Guta – sem testes, lembra. O sucesso foi tão grande que rendeu uma capa da revista Playboy para a atriz, em 1991.
A “volta no tempo” para comentar, emocionada e saudosa, sobre Pantanal faz parte de um retorno ao passado ainda maior: depois de morar por 34 anos em São Paulo, Luciene retornou à cidade natal em dezembro de 2019. Só agora, no entanto, ela começa a realmente curtir Porto Alegre, revisitando lugares que fizeram parte de sua infância e juventude – a atriz está no centro de acontecimentos importantes no cenário artístico gaúcho dos anos 1980.
— Chegamos e, em seguida, fomos para Portugal (Ricardo, com quem Luciene é casada há 11 anos, é português). Na volta, veio a pandemia. Amigos e família estavam tão reclusos quanto eu. Foram dois anos em casa, praticamente. Não deu para curtir teatro, brique, parques, museus — explica. — Me cuido ainda, porque tenho receio de passar covid para os meus pais. Devagarinho, agora vou começar a curtir a cidade.
Os cuidados com Elsa, 90 anos, e Ivo, 87, tiveram peso importante na decisão de retornar à Capital. Suas duas irmãs moram longe: uma em São Paulo e outra em Londres.
— Meus pais estão bem e merecem todo o meu cuidado e atenção — diz.
Mas pesou também uma vontade dela e do marido.
— A gente queria uma mudança. Nos jogamos. E estamos curtindo.
Confira, a seguir, o bate-papo com a atriz e relembre sua trajetória em diferentes frentes da cultura nacional!
Para você, por que Pantanal fez tanto sucesso?
Foi uma combinação de muitas coisas. Primeiro, a trama sensacional do Benedito Ruy Barbosa. Atemporal. A natureza exuberante da região, desconhecida para a maioria dos brasileiros e estrangeiros, já que a novela foi vendida para inúmeros países. A trilha sonora, as músicas emocionantes de Marcos Viana, Almir Sater, Renato Teixeira, Sérgio Reis, sertanejos raiz. A novela também tinha um ritmo de edição completamente inovador na TV brasileira. O elenco combinava atores experientes com outros que nunca tinham feito TV. Tudo isso atraiu um público que não costumava ver novelas. E a audiência explodiu.
Enquanto vocês gravavam a novela tinham essa expectativa, de que seria um sucesso?
Não! A gente não tinha a menor ideia do que ia acontecer com aquilo que estávamos fazendo naquele lugar desconhecido. Estávamos completamente entregues, apaixonados pelo trabalho, pelo Pantanal em si, sem qualquer perspectiva do alcance gigantesco que viria a seguir. Quando a novela estreou, minha vida mudou completamente. Tudo o que fazia em meia hora passou a precisar de uma hora e meia. A feira, a padaria, o supermercado, a farmácia, dando autógrafo, conversando, ouvindo.
A Guta era atrevida, impetuosa, dizia o que pensava, sendo ao mesmo tempo amorosa. Ela propunha uma nova reflexão, voltada ao feminismo. Foi muito revolucionária.
LUCIENE ADAMI
atriz e cantora
Por que a Guta foi tão querida pelo público?
Ela trazia questões femininas ao defender a mãe, a Maria Bruaca (Ângela Leal), dos abusos e ataques psicológicos do pai. Batia de frente com ele, de igual para igual. Tenho certeza de que muitas mulheres se identificaram. Porque, se hoje, o machismo ainda impera... Há 32 anos, era pior. A Guta era atrevida, impetuosa, dizia o que pensava, sendo ao mesmo tempo amorosa. Ela propunha uma nova reflexão, voltada ao feminismo. Foi muito revolucionária.
Muitas mulheres desejaram o corte de cabelo da Guta…
Sim! Várias mulheres me falaram e falam até hoje que cortaram o cabelo, na época, igual ao da Guta. Acho que eu já tinha um pouco a ver com a Guta. Já usava aquele cabelo há uns cinco ou seis anos.
Que cena como Guta você destacaria?
Uma cena especial foi com a mãe da Guta, a Maria Bruaca. Ela conta para a filha que vai fugir da fazenda com um peão. Foi especial, não só entre mãe e filha, mas para nós, as atrizes. A Guta sempre defendeu a mãe. Ela queria apoiá-la naquele momento, porque o pai a tratava mal, mas a mãe estava indo embora. A filha estava abrindo mão da mãe. Era uma cena de uma dor… foi linda. As duas atrizes também se despedindo, não iam contracenar mais. Foi uma cena que extrapolou, que a gente entregou muito mais.
Você sempre pensou em ser atriz?
Na minha primeira peça, na escola, com cinco ou seis anos, senti um friozinho na barriga antes de entrar em cena. E, já no palco, quis ficar ali para sempre. Estudava em uma escola pública e tinha uma professora de teatro chamada Nilza Ramos, atriz maravilhosa. Foi minha confirmação de que não tinha saída. Nessa época, não tinha escolinha para criança. Tive de esperar para estudar Teatro na UFRGS.
Você está envolvida com quais projetos profissionais no momento?
Acabei de filmar uma série chamada Centro Liberdade, da Prana Filmes, que entra no ar neste ano. Criada e produzida por gaúchos, uma equipe maravilhosa, jovens diretores de primeira, elenco incrível. Tenho também trabalhado com locuções e vou voltar a dar aula, na escola do meu grande amigo, Zé Adão Barbosa, na Casa de Teatro. A médio e longo prazo, não consigo dizer. Só consigo trabalhar com o agora.
Em quais lugares gosta de passear em Porto Alegre?
Amo a Redenção, que frequentei desde criança. O Auditório Araújo Vianna, onde ensaiei minha primeira peça. O Centro, a orla de Ipanema, ver o pôr do sol, as mostras de cinema, exposições de arte e teatro na Casa de Cultura Mario Quintana. A Usina do Gasômetro… a lista não tem fim. Amo Porto Alegre, mas também tenho dificuldades. Amo a distribuição da cidade, o rio, as árvores, os parques, o povo sem papas na língua. Mas tenho dificuldades com o calor exagerado, com o fato de que boas ideias morrem tão cedo, com a falta de educação no trânsito, com o machismo exacerbado. Mas acho que o amor e a gentileza podem quebrar as limitações, até as minhas. E como dizia o grande Caio Fernando Abreu, “Porto Alegre é do signo de Escorpião, para o bem e para o mal”.
O etarismo tem ganhado destaque, principalmente entre as mulheres. Como lida com essa questão?
A mulher em qualquer tempo é o ser mais desprivilegiado que existe. Não vou dizer que é fácil enfrentar isso, mas vivo bem. Crises todo mundo tem, faz parte da vida se entender, mergulhar, para poder seguir em frente mais forte. Tenho a sorte de ter uma família com mulheres fortes. E tenho um grande exemplo em casa, minha mãe, que se olha no espelho e diz: “Sou uma velhinha muito linda”. Todo dia ela acorda querendo ser melhor. Tenta entender o mundo, dá o melhor para quem a cerca. O que é isso comparado à beleza? Sinceramente, espero ter a coragem e a capacidade de ser como essa mulher é, amanhã e depois e depois.
Versão roqueira
A maioria dos principais músicos que escreveram uma nova história do rock gaúcho, nos anos 1980, fazia parte do círculo de amigos de Luciene – entre eles, Carlos Eduardo Miranda (1962-2018), que viria a se tornar um produtor reconhecido no país (lançou bandas como Skank e Raimundos). Por três anos, a artista foi vocalista da banda new wave Urubu Rei:
— Fui convidada pelo amigo Carlos Eduardo Miranda, que criou a banda. No vocal, fiquei uns três anos, desde a estreia no Teatro Renascença. A gente gravou uma faixa do Nega Vamos pra Boston no LP Rock Garagem, um vinil com várias bandas, Taranatiriça, Os Replicantes (esse LP colocou o RS no mapa da música jovem brasileira). Que mais a gente fez? Shows, clipes, eu compus uma letra, Não Me Mande Flores, que foi sucesso, gravada pelo DeFalla. A convivência artística é sempre enriquecedora. E quando é junto com amigos, ainda mais com o Miranda, meus amados Flu (Flavio “Flu” Santos), Castor (Daudt), Biba (Meira), Lila (Vieira), trazendo teatro para junto da música. Fizemos um show no Marinha do Brasil para milhares de pessoas! Mas fui para SP e encerrou minha carreira musical. Temos de fazer escolhas — relata.
Para além de Guta
A Guta, de Pantanal, é hors concours na carreira de Luciene, mas ela destaca outras personagens marcantes. No teatro, a Nina, da peça Cacilda!, de José Celso Martinez Corrêa (“Aprendi muito com ele”, diz). Da TV, a artista guarda carinho pelas produções de época, como Tocaia Grande (Manchete, 1995), dirigida por Walter Avancini, em que fez a prostituta Zezinha, e Éramos Seis (SBT, 1994), em que deu vida à mimada Maria Laura.
No cinema, outro protagonismo no cenário cultural do Estado. Luciene foi Soninha em Verdes Anos, filme de Carlos Gerbase e de Giba Assis Brasil. O filme, rodado em 35mm em Porto Alegre e em São Leopoldo, é considerado um marco no cinema gaúcho. Ambientado nos anos 1970, em meio aos conflitos políticos e sociais da época, uma turma de amigos do terceiro ano científico vive situações recorrentes da juventude: primeiro amor, questões familiares, paixões e rivalidades. No elenco, nomes como Werner Schünemann, Marcos Breda e Márcia do Canto.
— Esse filme foi incrível porque reuniu a maioria dos atores de Porto Alegre na época. Foi como participar de uma Olimpíada. Todo mundo dando seu melhor, apesar das poucas condições que se tinha na época — relembra.