Reinventar-se parece ser com ela mesma. Depois de quase três anos afastada do trabalho após a perda do amigo Domingos Montagner, que se afogou quando se banhavam juntos no Rio São Francisco, em 2016, Camila Pitanga assumiu uma série de empreitadas que dizem muito sobre a mulher que ela é. Em julho, estreou na TV Globo a minissérie Aruanas (disponível no serviço de streaming Globoplay), que discute a necessidade de preservar o meio ambiente ao contar a história de uma ONG na Amazônia. Voltou aos palcos com a peça Por Que Não Vivemos?, que coloca em pauta os conflitos entre gerações e questões internas do indivíduo comum em uma adaptação da obra do dramaturgo russo Anton Tchekhov. E ganhou um programa de TV: ela é a apresentadora desta temporada do Superbonita, atração do canal por assinatura GNT – que, depois de ter virado um reality show de maquiagem no ano passado, retorna ao formato com entrevistas.
Na poltrona ao lado de Camila, famosas e anônimas se revezam para contar suas histórias e compartilhar experiências sobre temas que tocam em questões relativas a mulheres de todas as idades. Com Zezé Motta, o papo foi sobre as dores e as delícias da maturidade, enquanto com a também atriz Julia Lemmertz o tópico da vez foram as marcas do tempo na pele. Teve ainda conversa sobre beleza com a atriz Letícia Colin e discussão sobre uma vida sem rotina com a jornalista Andréia Sadi.
– A ideia do programa é mostrar a diversidade de mulheres brasileiras que somos. Mostrar que não existe uma beleza, que já quebramos muitos padrões e vamos derrubar outros – explica a atriz, em um papo com Donna por telefone. – Agora, estamos valorizando o processo de autocuidado. As mulheres precisam pensar sobre si.
Na nova função, Camila reflete leveza ao tratar dos mais diversos assuntos – e é assim que revela nuances de sua personalidade, cheia de força e opiniões. Em seu perfil no Instagram, compartilha com seus mais de 2,3 milhões de seguidores sua visão sobre o mundo. Por lá, desde dicas de livros e filmes (preferencialmente protagonizados por mulheres) dividem espaço com seu novo amor, o ciclismo. Mas Camila Pitanga é daquelas artistas que fazem questão de usar sua visibilidade para dar voz a questões sociais. Embaixadora da ONU Mulheres no Brasil, a atriz faz questão de se posicionar – na entrevista que você lê a seguir, por exemplo, discorre sobre os números de feminicídios no país, que cresceram 4% entre 2017 e 2018, enquanto os índices de homicídio caíram 10%, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
No nosso papo, Camila também conta suas aventuras e aprendizados como mãe de Antônia, 11 anos, fruto do relacionamento com o cineasta Cláudio Amaral Peixoto. Também adianta seus planos profissionais, como as gravações da segunda temporada de Aruanas, que estão previstas para começar no final do ano. E prevê: quer trazer sua peça para os teatros gaúchos em 2020. Promessa é dívida, Camila!
Na série Aruanas, temos mulheres nos papéis principais e atuantes na produção. Como foi para você estar em um projeto com tanto protagonismo feminino?
Era bonito ver o set de gravação, sabe? O mundo quer ver mulheres contando as suas histórias. Temos um ponto de vista sobre nossa sensibilidade, sobre os nossos desafios, que faz sentido estar retratado nas telas. Na série, são ativistas, ou seja, mulheres que ao mesmo tempo em que estão vivendo os dilemas das suas famílias e das relações amorosas, entram em uma missão que está além da causa individual. Há uma questão coletiva bonita na luta pelo meio ambiente. Aruanas junta dois temas importantes: o fato de ter liderança feminina e mulheres que pensam o seu coletivo, seu país, a sobrevivência no planeta.
Depois de tanto tempo afastada, como foi sua volta a um set de gravações?
Estava querendo muito e fui acolhida. E estar entre irmãs: Leandra (Leal) e Taís (Araújo) são amigas da vida. Tudo isso fez com que essa volta tivesse esse sentimento de carinho, de acolhimento. Foi muito significativo.
Em tempos em que os debates ambientais ganham força no país, como foi viver a Olga em Aruanas?
Para narrar a luta do ativismo ambiental, não tem como não falar de um outro lado da força, que é o agronegócio, a mineração e o pensamento que rege isso. Um pensamento individualista, classista, que não pensa nas populações indígenas daquela região, no desenvolvimento sustentável, que é o dinheiro pelo dinheiro. Isso tem que ser retratado com muita acidez e dignidade. Não é somente o idealismo de boa intenção, existe um raciocínio. Tem que ter estratégia para combater isso. É interessante como, em veículo de entretenimento, quase que num thriller, mostremos que negócio é esse que rege a destruição da Amazônia.
E como foi encarar o desafio de apresentar o Superbonita?
Foi uma loucura! Estava prestes a estrear minha peça de teatro e lançando Aruanas. Recebi o convite do programa e foi tudo praticamente junto. Mas o desafio de debater comportamento nas vozes de mulheres com histórias tão diferentes seria irresistível. Aceitei. Foi como um meteoro, nunca tinha experimentado entrevistar pessoas. Aprendi fazendo... Continuo aprendendo a cada personalidade, cada vivência que senta para o debate.
Para todas, o ponto em comum é entender que não existe uma beleza ideal, que cada uma tem a sua beleza. Que é importante respeitarmos as nossas diferenças, como uma singularidade, uma marca pessoal, uma assinatura, e que isso é o barato".
CAMILA PITANGA
Falando em beleza, como você lida com o espelho? Há pontos que não encarava tão bem e hoje são tranquilos?
Sem dúvida, a Camila de 22 anos é totalmente diferente da Camila de 42. Provavelmente, aos 22 eu tinha determinados pudores e receios de me colocar que uma mulher de 42 anos já consegue agir com mais naturalidade, com mais aceitação. Isso é muito bonito, sabe? Com o tempo, vamos amadurecendo. Um princípio que eu acho muito comum, e isso foi assim da Sasha Meneghel à Zezé Motta, é o respeito à própria identidade. Para todas, o ponto em comum é entender que não existe uma beleza ideal, que cada uma tem a sua beleza. Que é importante respeitarmos as nossas diferenças, como uma singularidade, uma marca pessoal, uma assinatura, e que isso é o barato. E que a gente pode mudar também, e isso é muito legal. Lembro que, aos 18 anos, um pouco tentando fugir do rótulo do sex symbol, cortei meu cabelo, pintei de roxo, fiz uma franja do tamanho de um dedo. Depois deixei crescer, e cortei curto de novo. O bonito é você também entender que não é uma coisa só. Que todas as mulheres têm a sua assinatura, mas essa assinatura, ao longo do tempo, pode e deve se transformar. É ter liberdade com o seu ser, com o movimento, com o tempo. Isso é algo que ouvi de todas as convidadas. É bonito saber que fazia sentido para todas essas mulheres.
Como mulher que é uma inspiração para outras, que mensagem você quer passar?
Tento passar primeiro espontaneidade, verdade. Falo das pessoas que me inspiram também, mais do que ficar só eu aparecendo. Não é algo pré-pensado para atingir um público x ou y. Não tenho métricas de postar tal horário. É realmente o que vem.
Ainda falando dos seus trabalhos, você é uma das estrelas da peça Por Que Não Vivemos?. Como tem sido essa retomada dos palcos?
Foi uma grata surpresa quando recebi o convite, porque tive a chance de voltar a trabalhar com um autor importante na dramaturgia contemporânea, o (Anton) Tchekhov. Meu último espetáculo também foi uma obra dele, e agora é a primeira peça que ele escreveu, quando tinha 18 anos, e que cai como uma luva para os tempos de hoje. Me impressiona o quanto Tchekhov, no período da Revolução Russa, pode conversar tanto com a gente hoje. É um espetáculo que narra a história de um grupo de amigos que está se reencontrando e vivendo uma reflexão sobre uma sensação de apatia, de falta de perspectivas. Tem personagens que levam de uma maneira muito cética, feroz, tem outros numa linha mais melancólica e implosiva, e os que resolvem mudar de vida. Essa pergunta, “por que não vivemos?”, é uma provocação mesmo. Por que nós não realizamos os nossos desejos, o que nos impede de nos mover no mundo para construir nossas utopias? Sair dessa apatia e dessa sensação de perplexidade e ir para uma postura mais ativa.
Sua personagem na peça, a Ana, vive um vazio por ser um tanto conformada. Percebe essa postura nas pessoas hoje?
Vejo que a Ana pode ser um personagem de grande identificação com muita gente que se sente sem rumo, sem função na vida. É um questionamento que não é para jogar a gente no fundo do poço, pelo contrário, é para acordar. Porque muitas pessoas não se dão conta de que estão nessa situação de apatia. Vivem e se movimentam na vida, nos seus trabalhos, sem se perguntar sobre o que estão fazendo, o que estão vivendo. E sem se perguntar o que podem escolher.
Em entrevista recente, você falou sobre como muitas pessoas ainda questionam sua negritude. Como você responde a isso?
Quando fiz o longa-metragem Pitanga, foi uma maneira de contribuir para essa discussão de uma maneira propositiva, de levantar a autoestima e narrar a trajetória de um homem negro vencedor. É a minha maneira de contribuir para essa discussão. Existem dores, mas existem conquistas, e a perspectiva em que fui criada, de diálogo, é a que tenho trazido para as minhas manifestações é de valorizar a autoestima do negro. É a minha maneira de me colocar.
E como busca passar essa mensagem para sua filha?
A Antônia só tem 11 anos, mas essa geração dá um banho na gente. Aprendo muito com a minha filha. Ela tem um grupo na escola que fala sobre feminismo e me trouxe várias perspectivas interessantes, sugeriu pessoas para entrevistar. É uma geração muito informada, consciente do seu lugar no mundo, então é uma via de mão dupla. Claro que sou mãe e tenho mais idade, mais tempo de vida. Quero que ela primeiro se respeite, respeite seu tempo de amadurecimento, de escolhas, do que ela quiser ser da vida dela como profissional, como mulher, como tudo. Mas é lindo poder receber dela todo esse arsenal de liberdade. A geração dela e da minha outra filha, Maria Luiza, de 21 anos (a enteada da atriz, filha de seu ex-marido, Cláudio Amaral Peixoto), tem esse discurso da diversidade. É muito nato de uma lucidez que adoro aprender.
Como embaixadora da ONU Mulheres, um de seus focos é a luta contra o feminicídio. Muito se fala sobre o combate à violência contra a mulher, mas, ao mesmo tempo, as manchetes ainda se multiplicam com casos de assassinatos motivados pelo gênero. Como é estar engajada neste tema?
Hoje temos números sobre isso que orientam do quão pungente e necessário é falarmos sobre o respeito ao corpo da mulher, às formas de viver, a equidade de gênero, o respeito. É uma harmonização da sociedade que não atende somente às mulheres, atende aos homens também. O feminismo não vem para combater os homens, vem para estabelecer um direito de respeito e dignidade à vida das mulheres. É uma harmonização que cuida de todos. A missão da ONU Mulheres é de conscientização, seja através dessas métricas assustadoras de mortes de mulheres ou de campanhas de educação para desnaturalizarmos práticas que há 10, 15 anos pareciam ser problema somente das mulheres. A sociedade como um todo precisa entender que é inaceitável que tantas mulheres morram ou sejam agredidas nas suas casas. Que tantas meninas sejam violadas da sua inocência, da sua liberdade, por vivermos em um país ainda muito machista e agressivo com as mulheres. Gostaria que não precisássemos falar disso, mas enquanto não houver equilíbrio, essa pautas são necessárias. Quisera eu que conseguíssemos conquistar essa equidade e que isso não tenha mais nem um nome. Por enquanto, o feminismo precisa ser falado porque significa respeito à vida.
Como é ser uma atriz que se posiciona em questões sociais e relativas às mulheres nos tempos de hoje? Como percebe o seu papel de artista?
Vou parafrasear uma declaração de Maria Bethânia que ouvi hoje: “A vida exige coragem sempre. É preciso coragem para chegar a uma situação que traga alegria”. Essa fala para mim é um ótimo retrato do que estamos vivendo hoje. Se queremos uma sociedade justa, democrática, temos que ter coragem de manifestar o que pensamos. Esse tem sido o meu norte.
Falando um pouco de seus hábitos, você postou em seu Instagram que está se dedicando ao ciclismo.
O ciclismo tem sido uma nova paixão. Ainda sou aprendiz, já levei uns tombos, mas as superações e conquistas são muito significativas. Toda vez que consigo chegar ao meu objetivo é uma alegria imensa, porque faz sentir que estou viva, que o meu corpo está vivo. É uma sensação quase que de meditação, de você se dar conta dos seus limites e ampliá-los um pouquinho. Da primeira vez, levei quase uma hora para subir na Vista Chinesa (um mirante no Rio de Janeiro), agora estou conseguindo em 45 minutos. Conhecer seu corpo é muito estimulante para qualquer profissão, não é uma coisa de atriz, não. E consigo aproveitar essa cidade que tem essa bênção da natureza aqui perto da minha casa.
Para encerrar, o que você pode contar sobre seus próximos projetos depois do Superbonita?
A peça Por Que Não Vivemos? terá temporada em Belo Horizonte (de 18 de outubro a 18 de novembro) e, no ano que vem, estará em São Paulo. Quero muito ir a Porto Alegre. Torço que possa ensaiar melhor meu sotaque gaúcho, agora ele tá um pouquinho apagadinho, mas tentando eu recupero (risos). A ideia é viajar com a peça, e tenho a segunda temporada de Aruanas para gravar.