No guarda-roupa de Andréa Beltrão, peças esportivas dividem espaço com calças jeans e camisetas. Nada de brilhos e saltos muito altos – pelo contrário, a atriz dá preferência a modelos baixos para os pés. Prioriza conforto e funcionalidade para dar conta do seu cotidiano: a prática quase diária de ginástica e natação, ensaios e gravações.
Mas, durante as filmagens de Hebe – A Estrela do Brasil, em que interpreta a personagem-título, Andréa teve de encarar saltos de 15 centímetros, vestidos justos de paetês e brincos que pesavam a orelha. Foi um mergulho intenso na vida da primeira-dama da televisão brasileira. Na vida e no closet.
Os casacos de pele, as joias de diamante e os sapatos importados usados na produção do filme eram de Hebe Camargo, que morreu em 2012, aos 83 anos, depois de dois anos tratando um câncer. Aproveitar a coleção de centenas de calçados da apresentadora foi possível graças a uma feliz coincidência: Andréa calça o mesmo número de Hebe, 38.
A fascite que desenvolveu na sola do pé de tanto equilibrar-se nos saltos altos lembrou a atriz de que as semelhanças com a artista param por aí. A atriz celebra a oportunidade de ter experimentado um universo feminino bem diferente do seu.
Em entrevista à Donna por telefone, conta que frequenta brechós e revela que até gostaria de “ser mais Hebe”. Na conversa, também comentou sobre a educação dos filhos, hoje adultos. Francisco, Rosa e José estudaram em escola pública até que uma longa greve levou a mãe a matriculá-los na rede privada.
Com personagens ousadas no currículo, como Zelda Scott, de Armação Ilimitada (1985), a atriz acha que estamos mais “caretas”. Mas se diz “velha” quando conta que lê jornal no papel e prefere manter-se longe das redes sociais. Gosta mesmo é de viver perto do mar. Mora em frente à praia, na zona sul do Rio de Janeiro, onde nada quatro vezes por semana, por uma hora, antes de começar seu dia para valer. O esporte é a parte mais importante da sua rotina, diz a atriz, que exibe um corpo atlético aos 55 anos.
Recentemente, Andréa esteve em Porto Alegre com o monólogo Antígona, de Sófocles, encenado no Teatro da PUCRS. No dia 21 de agosto, ela estreia como Hebe na competição do 47º Festival de Gramado. O longa é dirigido por Maurício Farias, marido da atriz, e entra em cartaz em 26 de setembro. Para quem está com saudade de vê-la na telinha – afinal, são quatro anos desde a despedida de Sueli, de Tapas e Beijos, série que ficou cinco temporadas no ar –, Andréa retornará à faixa das 21h em novela de Licia Manzo, prevista para 2020.
Você acaba de interpretar Hebe. O que aprendeu com a história dela que leva para a sua vida?
Conhecer a Hebe mais profundamente só aumentou a minha admiração. Foi muito interessante ver uma mulher tão forte, tão poderosa no trabalho, nas amizades, tão alegre, exuberante, e também tão insegura, frágil, com tantos medos. E muito solitária às vezes, apesar de estar sempre cercada de muita gente. Foi uma oportunidade maravilhosa. Hoje em dia parece que eu fui muito amiga dela. É muito curioso. Uma sensação de muito carinho.
Você chegou a conhecê-la pessoalmente?
Sim, uma vez eu fui no programa dela. Fiquei abismada com a presença dela. Dei uma entrevista que, para ela, deve ter sido medíocre, com uma jovem atriz, uma bobinha. Para mim, marcou, claro. Para ela deve ter sido insignificante, embora ela nunca tratasse ninguém como insignificante, estou sendo injusta. Ela sempre tinha alguma coisa para falar, um gesto amoroso. A menos que ela não gostasse da pessoa, aí ela escondia muito mal, o que eu também acho interessante.
É verdade que as roupas, sapatos e joias usados no filme eram dela?
A maior parte das joias eram dela, e outras eram réplicas, que ficaram muito legais, perfeitas. E a maioria dos sapatos eram dela.
Calhou de vocês terem o mesmo tamanho de pé, não é?
Com a graça de Deus (risos)! Porque o orçamento do filme jamais permitiria comprar a quantidade de, sei lá, 300, 500 sapatos da Chanel, da Dior, de Yves Saint Laurent, do “sei lá mais quem” que você possa imaginar que tenha um sapato acima de “sei lá quantos mil reais”. Era uma coleção impressionante.
Os casacos de pele usados eram todos dela. (Para) o figurino, algumas peças a gente usou dela, sim, mas imagino que 80% foram criadas e garimpadas pelo figurinista Antonio Medeiros. Não faria nenhum sentido só usar o armário dela. Todos da equipe de criação tiveram a oportunidade de fazer as suas leituras sobre a história dela. Não teria nenhum charme se a gente só copiasse, sem acrescentar a nossa visão pessoal, amorosa, e também crítica em cima dela. Isso tudo organizado e criado, primeiro, pela roteirista, Carol Kotscho. Mas a grande criação do filme é do diretor Maurício Farias, que regeu essa equipe imensa que participou de maneira ativa na construção dessa Hebe.
Eu sou “muito mais menino”. Foi o máximo viver essa mulher (Hebe). Visitar lugares femininos, de sedução, de brincadeira.
ANDRÉA BELTRÃO
Imagino que essas marcas todas de sapatos não fazem parte do seu guarda-roupa, fazem?
Não, não (risos). Imagina a conta bancária da Hebe. E não é o meu estilo, eu sou “muito mais menino”. Foi o máximo viver essa mulher. Visitar lugares femininos, de sedução, de brincadeira. Ela esbanjava? Esbanjava, mas com muita propriedade porque tudo era dela, do trabalho dela, que ela comprou para ela. É gostoso você se dar um presente, uma luxúria de vez em quando, quando você pode. Mas, imagina… Ela tinha uma coleção de Mercedes brancas, entendeu? Eu colocava um brinco dela, entrava no cenário e parecia uma discoteca porque era brilho para todos os lados. A minha orelha inflamava por causa do peso dos diamantes!
E quando você quer se dar um luxo, que agrados gosta de fazer para si mesma?
Entro em uma livraria e compro uma pilha de livros. Vou à praia diariamente. Faço uma viagem, como bem. E, às vezes, compro uma roupa que me encante. Mas, normalmente, eu erro na compra, tenho esse problema.
Por quê?
Porque me encanto, “ai que bonito isso”. Compro, uso uma vez e tenho que revender.
E consegue passar adiante?
Consigo, consigo. Tem um monte de brechó bacana por aí.
Você compra bastante em brechó?
Sim. Gosto de roupa usada, que não tem muitas iguais por aí. Mas eu tenho meio que um uniforme: calça jeans, sapato – gosto de sapato masculino. Uma vez ou outra coloco um salto, mas, na primeira hora, me arrependo, me pergunto “o que que eu estou fazendo com esse sapato que machuca?” De vez em quando, curto um vestido. Eu trabalho muito, então é a primeira camiseta (que eu encontro) com um bom blazer, um sapato legal. Até gostaria de ser mais Hebe, mas fiquei um ano e pouco usando as roupas dela, então estou alimentada pelos próximos 10 anos.
Machucou muito o pé nas gravações?
Machucou um pouquinho. Ganhei uma fascite plantar gostosa. Porque usava salto 15, diariamente, 14 horas por dia, sobe escada, desce escada, corre no paralelepípedo. Mas não tem problema não, a fisioterapia está aí para isso mesmo.
Ai, credo, como a gente está careta, andando para trás. Tá chato. Socorro! Deus me livre! Pelo amor de Deus!
ANDRÉA BELTRÃO
Voltando para os anos 1980, em Armação Ilimitada você interpretava a Zelda, uma feminista que protagonizou um triângulo amoroso. Era mais fácil abordar temas como feminismo? Ficamos mais caretas?
Ah, mas era muito mais (fácil). Ai, credo, como a gente está careta, andando para trás. Tá chato. Socorro! Deus me livre! Pelo amor de Deus! A Hebe tinha um programa que se chamava O Mundo é das Mulheres, no qual ela e mais quatro mulheres entrevistavam um homem. E era interessantérrimo, porque elas perguntavam de tudo. E a última pergunta do programa cabia à Hebe. Ela perguntava: “Fulano, o mundo é das mulheres?”. A maioria dizia “não, absolutamente”. E uma pequeníssima minoria dizia, com um sorriso gostoso, quente: “É, é sim”. Quando diziam que “não”, ela olhava para a pessoa, dava um sorriso gaiato, virava para a câmera, dava um sorriso solar e dizia: “Até o próximo programa!”.
Maravilhosa!
Maravilhosa, né? Eu nunca ouvi uma crítica, nenhuma restrição, nada do tipo “nossa, mas ela (a personagem Zelda) sai do quarto do Juba e vai para o quarto do Lula”. Nunca! Esse assunto não existia. Como dizia Sófocles, há 2500 anos: o ser humano domina o mar, o ar, o vento, as feras, as bestas selvagens, os navios, caça, faz tudo, domina as leis, as palavras, o jogo do pensamento, mas quando ele está diante de outro homem, ou de uma outra mulher, ele não sabe o que fazer. É duro, hein? Tá difícil. Mas a esperança é a última que morre.
Em uma chamada para a peça Antígona, você diz que “qualquer semelhança com a realidade que a gente está vivendo não era mera coincidência”. Quem são as Antígonas do Brasil hoje?
São milhares de Antígonas. A cada minuto uma mulher perde seu ente amado de maneira brutal. Hoje (9 de agosto), aqui no RJ, morreu um jovem de 18 anos indo para a escola. Estava no ponto de ônibus quando uma bala perdida matou ele. Ia ser jogador de futebol. Todo dia, são milhares de mulheres enterrando seus amores, seus filhos, seus irmãos, seus maridos, seus pais. De maneira brutal. As vítimas de Brumadinho, de Mariana, que estão enterrando pedaços de corpos. No mundo inteiro, vemos a ascensão de governos autoritários, que não respeitam nada, não têm compostura para exercer o cargo, humilham os cidadãos. Sófocles está cada vez mais atual. Isso é lamentável. Mas a gente não pode parar de trabalhar, de refletir por que, há 2500 anos, a gente continua no mesmo lugar. Acho que só olhando, um de frente para o outro, conversando, ouvindo, sem imposição, que vamos conseguir nos mexer para outro patamar.
Falando em conversar, não encontrei perfis seus em redes sociais. Qual é a sua relação com essas redes digitais?
Não tenho mesmo. Divulgo minha peça e todos os meus trabalhos nas redes sociais. Mas eu não me autodivulgo ali. Não tenho esse talento, esse perfil. Eu adoro a minha solidão. Adoro estar só. Adoro o silêncio. Leio três jornais por dia. Não me orgulho disso. Mas é a minha natureza. Tentei fazer um Facebook. Consegui (ficar) um mês e quase fiquei louca. Olhava no relógio e percebia que já estava havia três horas ali. E pensava: “Não li um livro. Não fiquei olhando pela janela. Não dei uma volta na rua. Não tirei um cochilo. Não conversei com um filho. Fiquei na frente de um computador vendo o que estão falando”. E tentando ser original! Mas nunca consegui postar e dizer “olha que incrível o que eu postei”. Ficava admirando e pensava “nossa, como as pessoas são incríveis!”. Chegou uma hora que me cansou um certo palavreado: “Diva, musa, tudo, deusa”. Cadê o Machado de Assis? Cadê o (Albert) Camus? Sei lá. Eu sou velha.
Você é uma referência também no humor. Acha que existe um humor tipicamente feminino? O que é mais desafiador para uma mulher que trabalha com o humor?
É difícil fazer humor. É um argumento poderoso, é uma reflexão aguda, contundente da nossa realidade, da nossa humanidade, das nossas limitações.
ANDRÉA BELTRÃO
Não sei se existe um humor tipicamente feminino. Acredito que o humor é para todos. Se existir um humor tipicamente feminino, como será ele? É um humor feito de mulheres para mulheres? Existe um humor tipicamente masculino? Aquele quando os homens fazem piadas sobre mulheres? Então não serve para mulheres? Será que é o contrário disso? Se for, não tenho nem vontade. Gostaria de fazer um humor que agradasse a homens, mulheres, LGBTQIs, crianças, velhos, jovens, todo mundo. Não uma unanimidade, mas que fosse capaz de mexer independentemente de quem quer que seja, sabe? Não sei se eu sei fazer isso. É difícil fazer humor. É um argumento poderoso, é uma reflexão aguda, contundente da nossa realidade, da nossa humanidade, das nossas limitações.
Você falou que gosta da solidão e fiquei pensando que quem tem três filhos já deve ter tido dificuldade para ficar sozinha.
Meus filhos foram vivendo a vida deles. Somos muito grudados, mas passamos por momentos separados por conta da minha profissão. E no trabalho, você pode estar só. Dá para ser sozinho até no meio da multidão. A gente é sozinho. A gente é, em última análise, só.
Seus filhos estudaram em uma escola pública e, depois de greves, vocês decidiram tirá-los. Como mãe, qual é a avaliação que você faz da educação no Brasil?
Eles estudaram em escola federal. Eu estudei em escolas públicas. Quando eu tirei eles do (colégio) Pedro II, estava acontecendo uma greve de quatro meses, e fiquei apavorada. Mas me arrependo amargamente. Devia ter esperado. A escola merecia que eu esperasse. Eles saíram muito pesarosos.
Acredito na mistura de culturas, das classes sociais, das experiências. O ensino particular cria uma distância entre quem pode pagar e quem não pode.
ANDRÉA BELTRÃO
Eles gostavam?
Amavam. Não foi uma boa atitude da minha parte. O único ensino no qual acredito é o público, que não é apenas para pessoas que possam pagar mil, ou dois, três mil reais. Acredito na mistura de culturas, das classes sociais, das experiências. O ensino particular cria uma distância entre quem pode pagar e quem não pode. Desejo que as escolas públicas sejam novamente referência, como eram quando eu estudei. É uma pena que o ensino público tenha sido tão vilipendiado, e os professores, massacrados. Mas tenho esperança de que a gente volte a ter escola pública com quadras de esporte maravilhosas, vestiários, salas de leituras enormes, centro de pesquisas. Eu ainda acredito.