À frente da Acadêmicos de Gravataí, Rita Bitencourt é a única presidente mulher das 10 escolas do Grupo Especial de Porto Alegre | Foto: André Ávila Rita Bitencourt é presidente da Escola Acadêmicos de Gravataí, referência para as mulheres no carnaval | Foto: André Ávila Dona Onira, porta-estandarte ícone da escola Bambas da Orgia | Foto: Anderson Fetter Onira estreou como porta-estandarte nos anos 1970 e fez história e escola no Rio Grande do Sul | Foto: arquivo pessoal A porta-bandeira Simone Ribeiro mantém uma escola de samba para crianças e adolescentes | Foto: Carlos Macedo Kaya Rodrigues, do grupo Não Mexe Comigo Que Eu Não Ando Só, formado só por mulheres | Foto: Bruno Alencastro Kaya Rodrigues é puxadora do Bloco da Laje e uma das fundadoras de um bloco só de mulheres | Foto: Bruno Alencastro
Por Rossana Silva, especial
Ó abre alas, que elas vão passar... E mostrar que lugar de mulher no Carnaval vai muito além de exibir ginga e beleza. Elas querem assumir a linha de frente da folia, como já se vê em tantos blocos de rua e escolas de samba, onde a evolução é mais lenta, mas contínua.
Em Porto Alegre, há apenas uma mulher entre os 10 presidentes das escolas de samba do Grupo Especial. Parece pouco – e é. Ainda assim, Rita Bitencourt, 48 anos, dos Acadêmicos de Gravataí, é um nome a ser celebrado. Criada em meio a bailes e ao universo carnavalesco, a professora acompanhou as agruras da escola do coração em busca de um substituto para seu pai, cuja gestão completou 25 anos.
Ninguém se habilitou ao cargo e Rita resolveu que era o momento de assumir, ela mesma, o bastão. Há 11 anos, tomou posse em meio a burburinhos de que não daria conta do recado. Desde então, construiu uma trajetória que fez dela um dos nomes mais respeitados do meio. Em 2016, a Onça Negra, como a escola é conhecida, conquistou o vice-campeonato depois de uma competição emocionante. Alcançou os mesmos 239,5 pontos da campeã, Imperatriz Dona Leopoldina, mas ficou em segundo lugar pelos critérios de desempate.
– A gente acorda Carnaval e, quando vai deitar à noite, põe a cabeça no travesseiro e está pensando no Carnaval. E quando dorme, chega a sonhar que a escola está prestes a entrar na avenida e ainda está faltando alguma coisa – diz Rita.
Rita tem uma colega de função fora do Grupo Especial, a presidente da Praiana, Ilza Angonese, que compete no Grupo de Acesso. E antes delas, foram duas as mulheres que marcaram época ao presidir agremiações: Rosalina Conceição, dos Bambas da Orgia, a escola mais antiga do Estado, do Grupo Especial, e a pioneira, Tia Regina, nos Fidalgos e Aristocratas, do Grupo de Acesso. O trabalho dessas mulheres foi incentivar que novos nomes sejam acrescentados a essa lista.
– Já ajudei a fazer carro alegórico, já subi em carro alegórico e já empurrei carro alegórico. Tudo o que tu imaginares dentro de uma escola de samba, eu já fiz. É importante que mais mulheres ocupem cargos como este para mostrar que o nosso lugar não é em casa, passivas. Temos de estar presentes nas atividades, ir pra frente – afirma Rita.
O desejo de Rita é compartilhado pela secretária municipal de Cultura do Rio de Janeiro, Nilcemar Nogueira, ex-diretora de Carnaval da Mangueira e criadora do Museu do Samba:
– Gostaria de ver as mulheres dominando a direção de todas as escolas de samba. Porque são ousadas, organizadas e, efetivamente, poderiam harmonizar a administração das escolas, que são o principal reduto de encontro e de fomento desta tradição.
Neta de Dona Zica e de Cartola, Nilcemar se refere às mulheres como a sustentação do samba brasileiro: ainda que por muitos anos tenham desempenhado um papel praticamente invisível dentro das escolas, são a força motora da difusão de tradições e memórias. E desde os primórdios da folia. Embora hoje ainda seja raro encontrar puxadoras de samba ou instrumentistas na avenida, por exemplo, elas tinham papel ativo no Entrudo, festa com brincadeiras e jogos populares que antecedeu o Carnaval como o conhecemos hoje.
– Apesar da sociedade machista da época do Entrudo, em meados do século 19, esta celebração era um momento no qual a mulher tinha capacidade de ação direta sobre seu destino. Ao jogar um limãozinho de cheiro em um garoto, ela podia estar dizendo que queria namorá-lo. Agora, temos um caminho que recomeça, com a mulher buscando retomar o poder neste novo Carnaval. Elas estão se apropriando da sensualidade como uma forma de afirmação do poder feminino. E, paralelamente, estão trabalhando com sua capacidade de organização e criação, como presidentes de escola de samba e carnavalescas - explica o coordenador do Centro de Referência do Carnaval da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Felipe Ferreira.
No Rio Grande do Sul, a tradição do Carnaval é guardada por personagens do samba como Onira Pereira, que fez história nos Bambas da Orgia. Aos 66 anos, ela é reconhecida como uma das maiores porta-estandartes que o Estado já teve. Quando Onira adentra as quadras, seu semblante é observado pelas mais jovens a ocuparem o posto. Se Onira estiver de cara feia, é porque alguma delas não estava bem no ensaio. Nesse caso, ela vai apontar o problema e, invariavelmente, escutar agradecimentos pela correção.
– Desfilei pela primeira vez aos 22 anos, quando era solteira. Minha mãe não queria, mas aceitou que eu saísse nos Bambas. E depois conheci meu marido, que não era de Carnaval. Mas o levei para a escola, e ele se tornou conselheiro, até falecer – lembra Onira.
Tradicionalmente gaúcha, a figura da porta-estandarte não costuma estar presente no Carnaval carioca. Ainda assim, em situações especiais, como em homenagens ao Rio Grande do Sul, Onira carregou na Marquês de Sapucaí os estandartes do Estácio de Sá, da Grande Rio e da Vila Isabel. Ela parou de competir em 1984, mas nunca abandonou a avenida, como convidada dos Bambas e de outras escolas ou acompanhando de perto todos os desfiles. Em 2011, foi tema da escola Império do Sol, de São Leopoldo, com o samba-enredo Onira Pereira - A trajetória de uma estrela. De prontidão para acudir as mulheres da avenida, já tirou brinco da orelha para dar a destaques que perderam a tarracha e até ficou sem sapato para socorrer passistas que extraviaram um par em meio à dança. Independentemente da agremiação.
– Naquela hora, não tem bandeira. A gente ajuda todo mundo. Quem gosta da coisa gosta de todas as escolas. Eu vou na concentração e visito as quadras, adoro estar envolvida. E as minhas gurias são iguais a mim – comenta, entre gargalhadas, citando as filhas, Kizzy e Guislaine, que seguiram seus passos.
A trajetória da eterna porta-estandarte é referência para quem se dedica ao Carnaval, como a porta-bandeira Simone Ribeiro, 47 anos, dos Embaixadores do Ritmo. Nos últimos três anos, ela conquistou a nota máxima do júri - 40 pontos - ao desfilar pelos Imperadores do Samba. Para tanto, ensaia ininterruptamente durante o ano e mais e mais horas às vésperas do desfile. Tudo para fazer bonito no Porto Seco, nos apenas 12 a 15 minutos que leva para atravessar a avenida.
– É muito pouco tempo, mas também é interminável. Quando estamos na frente dos jurados, parece que os segundos não passam. Ao cruzar a linha amarela para entrar na avenida, estou concentrada e focada, porque preciso executar o que planejei, acompanhando o momento da escola. Temos que chegar ali muito seguros, confiantes e, sobretudo, felizes. Porque transparece para quem está assistindo – explica.
Além de mostrar o que sabe na quadra e na avenida, a porta-bandeira quer formar novos nomes de destaque no Carnaval. Ela é presidente do Padedê do Samba, escola que ensina aos alunos – desde crianças até idosos – o beabá da dança. Criada em 2010, a iniciativa para formar dançarinos também é uma forma de resistência diante dos desafios da crise econômica. Neste ano, a prefeitura anunciou que não repassará recursos públicos para a festa. A boa notícia, aponta Simone, é que a falta de verba motivou a união da comunidade carnavalesca, incluindo a ala feminina.
– O Carnaval tem mulheres competentes e respeitadas, mas caminha como toda a sociedade, que ainda é machista. Vejo ideias equivocadas, de quem não vivencia o meio, a respeito das mulheres no Carnaval. Ao longo do tempo, estamos provando que nossa arte tem tanto valor quanto a das tradicionalistas. Tudo o que é artístico, para a mulher, tem um pouco de preconceito, mas estamos quebrando essas barreiras – afirma a porta-bandeira.
Para Felipe Ferreira, coordenador do Centro de Referência do Carnaval da Uerj, as escolas de samba têm um desafio extra em relação aos blocos: as estruturas e tradições mais rígidas a serem modificadas.
– As escolas trabalham com um conceito de tradição que é difícil de ser rompido. Os blocos de Carnaval, por outro lado, têm liberdade para se reorganizar e se reinventar a todo momento. Têm que expressar a vontade de diversão de qualquer grupo. Nos blocos, o caminho já está bastante trilhado para refletir a diversidade da sociedade. Assim, vão se descobrindo novos papéis para as mulheres dentro desse universo – afirma.
Foi justamente no Carnaval de rua que a atriz Kaya Rodrigues, 31 anos, encontrou um espaço para se expressar. Ela ajudou a criar o Bloco da Laje, de Porto Alegre, no qual atua como puxadora e performer. Ali, observou como, apesar da presença maciça de mulheres, funções como a de mestre de bateria ainda pareciam inalcançáveis. Depois de conversar com algumas ritmistas, criou um grupo no Facebook para facilitar a comunicação entre interessadas em criar um bloco só de garotas. Em menos de um dia, mais de 500 mulheres já estavam conectadas, muitas delas combinando os primeiros ensaios no verão de 2016. Em um dos primeiros encontros, no Largo Zumbi dos Palmares, algumas integrantes perceberam que estavam sendo seguidas por um grupo de homens e começaram a cantar a música Não Mexe Comigo Que Eu Não Ando Só, de Maria Bethânia. Estava batizado o bloco.
– Muitas meninas chegaram até nós porque não se sentiam à vontade em outros ambientes. E é muito fácil não se sentir identificada nesse meio. Além da proposta de ser um Carnaval feminista, no qual a mulher assume o protagonismo, também tentamos fazer uma organização horizontal entre todas – explica Kaya.
As cerca de 60 integrantes, entre musicistas, cantoras e dançarinas, devem estrear nas próximas semanas no Carnaval de rua – a data do evento será divulgada nos próximos dias pelo Facebook – e são presença confirmada no Festival NosOutras, que reunirá musicistas mulheres em 9 de março no Opinião. Mas a experiência de afirmação das mulheres vai muito além do bloco na rua, como percebeu a atriz:
– Como nos expressamos mais livremente no bloco, isso transpassa o Carnaval e interfere na nossa vida. Sinto que tenho menos constrangimento de falar e de dar minha opinião, justamente por estar vivenciando esse espaço com menos julgamentos.
NO FEMININO
Por Cláudio Brito*
Por menos que pareça verdade e apesar da ideia que só coloca a mulher no Carnaval se estiver seminua e com rebolados e meneios sensuais, o mundo do samba é muito feminino em sua construção, história e realização. Se falarmos dos tempos dos bailes e corsos de carros abertos pelas ruas do Rio de Janeiro, lembraremos de Chiquinha Gonzaga (1847-1935) e suas marchas que o povo inteiro cantava. Se mudarmos nosso olhar para as escolas de samba, veremos Tia Ciata (1854-1924) e outras baianas quituteiras protegendo os sambistas que a polícia perseguia.
E se buscarmos a prova do poder da mulher no Carnaval, encontraremos as presidentes Regina Celi, do Salgueiro, no Rio, Solange Bichara, da Mocidade Alegre, em São Paulo, e Rita Bitencourt, na Acadêmicos de Gravataí. Maria Augusta e Rosa Magalhães, grandes carnavalescas, criadoras de enredos inesquecíveis, ampliam a lista das mulheres que decidem em um meio que apressadamente muita gente entende como exclusivamente machista. E nessa linha dos enredos, quantas vezes grandes mulheres são homenageadas, como acontecerá este ano, seja com Zezé Motta na Acadêmicos do Sossego, da Série A carioca, seja com a mexicana Frida Kahlo entre nós, nos Imperadores do Samba. Os sambistas sempre escolhem mulheres fortes para homenagear. Por Tia Ciata é que toda escola de samba tem uma ala de baianas. Sempre que vejo o giro dessas mulheres nos momentos de maior emoção dos desfiles tenho convicção de que o Carnaval é muito mulher.
*Jornalista, coordenador da cobertura carnavalesca da Rádio Gaúcha
claudio.brito@rdgaucha.com.br