Deram para surgir espinhas no meu rosto a essa altura da vida. Deve ser o chocolate amargo. Três quadradinhos de uma barra 80% cacau e um pequeno cálice de Lemoncello ou Cointreau, lá pelas 10 da noite, e a felicidade, tão metida a difícil, se senta ao meu lado e puxa conversa.
Aciono o portão da garagem com o controle remoto e, enquanto a operação não se conclui, abro o Spotify e escolho uma música aleatória na playlist. Saio com o carro sonorizado e a sensação de que vou pegar a estrada, o que não é verdade, estou apenas indo ao mercado, mas na minha imaginação a mochila está jogada no banco de trás e em poucas horas verei o mar.
Sonolenta em frente ao computador, entra um áudio de oito minutos de uma amiga que mora fora do Brasil, e eu que, ao contrário de tanta gente, adoro um áudio longo, sem jamais acelerar a gravação, me atiro no sofá rindo sozinha das maluquices que ela apronta e me comovo com a perícia com que ela usa as palavras, e no mesmo instante respondo com um áudio mais longo ainda, e a gente fica o resto da tarde nessa visita sonora e vadia que salva nossa quinta-feira, ou quarta, ou terça.
Em frente aos cabides que eu queria que fossem de madeira, mas são de plástico, seguro a ponta da toalha que encobre meu corpo úmido enquanto escolho com que roupa eu vou, e não estou indo para nenhuma balada, e sim a um cinema em que ficarei no escuro, mas valorizo o ritual de me vestir de acordo com meu espírito, mais do que com a temperatura lá fora, o que me faz, às vezes, colocar uma jaqueta em dias escaldantes, sempre a alma na contramão – nunca fiz selfies dentro do elevador.
O namorado custa a visualizar minhas mensagens no WhatsApp e me irrito por essa bobagem, prendo e solto o cabelo que ainda não cortei, as canetas somem, nunca sei o volume de água que minhas orquídeas precisam, leio as projeções de uma astróloga americana e meu inglês vem melhorando, mas sobre meu futuro, só sei que daqui a três dias jantarei na casa de uma amiga que cozinha melhor do que qualquer Masterchef.
Segunda passada acordei com uma angústia que até me assustou, no dia seguinte passou. Ainda não sei que título colocar em meu novo livro, minhas unhas não crescem desde a pandemia, acho que foi pelo excesso de álcool gel, mas pode ser falta de vitamina. O mundo gira e ando exausta de tantos fatos insólitos, então saio de fininho. Chocolate amargo não é ruim como pensam. Tomara que toque agora uma música que dê vontade de viajar. Nasci privilegiada, mas tem dedo meu nesta serenidade. Não dou muito trabalho ao meu anjo da guarda, Leão e Capricórnio se complementam no meu mapa astral e, sinceramente, ando de boa com a vida banal.