Já fomos um país mais burocrático, dependente de carimbos e firmas reconhecidas em cartório, onde se levava um tempo infinito para se obter licenças e certificados. Ainda há obras para a Copa de 2014 em andamento, o que assombra pelo retardo e comove pela perseverança, mas há que se reconhecer a facilidade de, hoje, baixarmos documentos pessoais por aplicativo e transferirmos dinheiro em segundos. Avançamos através da tecnologia, que para isso ela é uma mãe.
Ainda assim, de vez em quando me surpreendo com convites para participar de eventos literários em que é obrigatório providenciar certidões negativas, contrato social e atestados diversos, como se o escritor fosse um acusado de desfalque do Banco Central e tivesse que provar sua idoneidade moral e financeira. Nesses casos, agradeço a gentileza do convite, mas recuso. Mesmo tendo uma ótima contadora que agiliza os trâmites para mim, não compactuo com o exagero de papelada.
No meu reino encantado, a coisa funciona assim: a gente acerta as condições por e-mail, escolhe uma data, eu chego no horário marcado, o contratante deposita na conta e a vida continua, ao som dos rouxinóis. Há 30 anos que participo de bate-papos, debates e feiras (hoje menos, devido a atividades que me prendem em casa) e nunca quebraram o compromisso, nem eu deixei ninguém na mão. Uma única vez faltei a uma palestra numa escola do Interior porque me acidentei no caminho. Voltei lá uma semana depois e cumpri o combinado.
Lembra “cumprir o combinado?”.
Puxei esse assunto porque acabo de revisar o livro que lançarei no início de agosto, Um Lugar na Janela 3, o novo volume das minhas memórias de viagens, onde conto a seguinte história: em 2019, realizei o sonho de passar 30 dias em Paris. Optei por alugar um apartamento através de um site. Analisei as ofertas e escolhi um imóvel que atendia minhas pretensões de localização e preço. Estaria disponível no período proposto? Estaria.
Mandei os dados do meu cartão e fui dormir. Semanas depois, numa manhã ensolarada de segunda-feira, desembarquei em Paris, peguei um táxi e indiquei o endereço do prédio. Até ali, tudo certo, o prédio existia. Agora era torcer para que a chave do apartamento estivesse dentro de um regador de plástico verde, preso às grades de uma janela localizada no pátio interno. Era o combinado com o proprietário, que vivia na Espanha.
Caiu uma lágrima aqui, ando sentimental. Foi como voltar ao tempo das cadeiras na calçada e da palavra de honra. Que esse relato não desperte a cobiça de golpistas internautas: sou nostálgica, mas não sou pateta. Apenas corro alguns riscos. Eles valem o prazer alentador de ainda confiar nas pessoas.